Parte I
Tudo o que temos, devemos a Deusa.
É, eu escuto isso nos meus 19 anos de vida. A água que bebemos, as batatas que assamos e, principalmente, nossa segurança do lado de dentro da cúpula. Sim, tudo devemos a Deusa. A guardiã do nosso povo, a escudeira celestial do lendário Artur, a professora do mestre dos mestres Merlin e aquela que matou a infame Morgana no alto relevo de Avalon.
Tudo historinha.
Quero dizer, para mim, Gwent era só a amiga meio maluca que não achava suficiente bater na minha porta uma ou duas vezes, tinha que amassar a mão no carvalho até que eu abrisse. Eu já tinha acordado ansioso naquele dia, e a Grandiosa Deusa estava lá, ajudando a encher minha paciência antes mesmo do sol despontar no horizonte.
— Não pense que vai dormir até tarde hoje, preguiçoso — ela me encarava, me encarava com seus olhinhos pequenos de um ratinho.
— Eu já estava acordado. — suspirei alto. Sim, eu queria que ela escutasse. — Que eu saiba, minha cerimônia de iniciação é só na terceira parte da manhã, tá cedo ainda. — fechei a porta na cara dela.
— E por que já não vamos indo? — ela interrompeu, vi seus dedos na saída da porta e, por fim, um sorriso travesso — Imagina só que exemplo não daria para o bispo sendo um dos primeiros a chegar?! — supus que estivesse sendo irônica. Gwent sabia bem que o bispo me detestava, ou melhor, morria de ciúmes, já que eu era o rapaz que tinha enfeitiçado e tomado a sua tão adorada Deusa como minha melhor amiga. Neguei a ideia com a cabeça, mas então, ela apelou da pior forma que poderia: — Você não negaria o pedido de uma Deusa, negaria, Tristan? — jogando sujo dessa forma quase perguntei se ela era mesmo a mulher que derrotou Morgana.
Cenawlot estava quieta naquela manhã. Era sábado, dia de feira, de gritaria, de ambulantes se colocando na nossa frente para tentar nos empurrar seus produtos e de crianças chorando por se perderem da mãe. Mas estranhamente ouvia-se os pássaros nas árvores e o farfalhar das folhas.
— O que houve? — perguntei. Caminhávamos por uma estrada de pedra passando pelas casas de madeira da vizinhança e as vielas que, mesmo com o despontar do sol, continuavam escuras.
— Como assim? Eu deveria saber? — ela nem olhou no meu rosto. Essa Deusa até podia ser maravilhosa como diziam por aí, mas nem sabia disfarçar que estava escondendo alguma coisa.
— Bem, você é a Deusa protetora da cidade — cocei a nuca e refleti, viajando os olhos entre os desenhos nas placas dos comércios. —, acho que o mínimo que se espera de você é que saiba o que acontece por aqui.
Percebi que seus olhos corriam para todos os lados. Ela ficou ansiosa.
— Bem... O que acha de irmos ao portão de entrada para descobrirmos então?
— O portão de entrada? Não é melhor simplesmente perguntarmos o que está acontecendo para alguém por aí?
— Vamos ao portão de entrada. — disse incisivamente. Com isso, não tive chance nem de negar. No caminho, passamos pela ponte do Novo Alwen e, finalmente, pela Árvore Da Misericórdia. Vi de perto seu grosso tronco coberto por musgo e levantei os olhos para os ramos que seguiam ao topo. Meu coração apertou.
— As folhas estão ficando mais pálidas. — balbuciei. A Deusa percebeu minha preocupação. Sim, afinal de contas, eu cresci vendo aquelas copas forradas de folhas que vibravam em verde pelo dia, e cintilavam num brilho que iluminava toda a cidade pela noite. Mas agora estavam sem vida, anêmicas e eu já tinha começado a perceber que sua luz pela noite já não era mais tão ofuscante. A Árvore Da Misericórdia era o símbolo do nosso vilarejo, e seu brilho, o símbolo de que a Deusa nos protegia. Se a árvore estava fraca, a Deusa estava fraca.
— É o esperado. — soaria meio deprimente, mas Gwent carregava um olhar de esperança consigo. A Deusa seguiu na minha frente e, com toda a pressa que costumava carregar consigo, ela desapareceu.
Vi uma multidão curiosa próxima aos portões do vilarejo. De cara percebi que eram os moradores sumidos. Mas o que faria aquele bando de turrões perder uma manhã de feira? Dei mais alguns passos. Meus olhos acharam a Deusa misturada a eles. Era fácil encontrá-la, mesmo no meio da multidão. A cor de sua pele era escura e diferente de qualquer um por ali. Há lendas que dizem que no extremo sul, há homens que vagam por um imenso deserto e que vestem o corpo dessa mesma cor. Sim, pensar nisso fazia o mundo parecer gigante fora do vilarejo, fora da Britânia. Mas era perigoso. Ao menos para nós, os filhos de Camelot. Por isso vivíamos dentro da cúpula, a maior benção que a Deusa nos deu.
Mas alguns podiam sair. Os Aventureiros. E eram eles que roubavam a atenção e os olhos entusiasmados de todos por ali.
— Então é isso? — me aproximei de Gwent. Foi uma pergunta redundante. Sim, os heróis do vilarejo estavam de volta. Meu irmão estava de volta. Não era surpresa eu ser um dos últimos a receber aquela notícia, afinal de contas, dada a minha relação próxima a Deusa, era compreensível que a maioria das pessoas evitassem contato. — E porque esse segredo todo? — perguntei. Não conseguia tirar meus olhos um instante que fosse da comitiva.
— Ah... Por que eu gosto de ver a surpresa no rosto das pessoas. — um riso fraco me saiu. Não era nada divertido ser o último a saber das coisas, mas não importava, Carwyn estava de volta!
Cortei a multidão sem questão de ser educado e corri até meu irmão. Lá estava ele, em cima de seu garanhão cinza. Comecei a ponderar os lugares por onde seus cascos desbravaram. Gwynedd com certeza, Powys, talvez Deheubarth e as terras longínquas de Glywysing. Carwyn estava imponente como um general. Ele sempre teve essa aura. Um olhar galanteador e seus cabelos louros que chegavam aos ombros eram todos balançados com o vento forte que batia. Ele esticou os lábios ao me ver, saltou do cavalo e me abraçou. Tenho a impressão que chorou em meus ombros.
— Meu irmão! — o escutei dizer, com a voz embargada. Acho que ele se assustou com a altura que tomei nesses últimos cinco anos.
Depois disso, o vi ajoelhar-se para a Deusa.
— Eu agradeço, minha Deusa, por manter-se ao lado de meu irmão nesse tempo todo. — vi o rosto dela ficar vermelho. Gwent claramente estava sem graça. Sério que ela era mesmo a tal da escudeira celestial do lendário Rei Artur?
— Não precisa agradecer — respondeu — Você mais do que ninguém deveria saber que sempre ficarei ao lado de Tristan. Afinal, ele é meu tesouro — ela me olhou de canto e sorriu graciosamente. Agora foi a minha vez de ficar envergonhado. Fugi o rosto.
Por conseguinte, os homens de meu irmão também desceram de seus cavalos. Um dos homens pude reconhecer. Aquelas sobrancelhas grossas como duas lagartas eram inesquecíveis. Era o velho Dyfed, já servira ao senhor meu pai e, agora, ao meu irmão. Dyfed se aproximou de meu irmão, ainda ajoelhado, segurando com as duas mãos uma pequena caixa de madeira. Dela, facilmente podia-se sentir um brilho vermelho ofuscante. Parecia um cristal, ou melhor, parecia aquele cristal.
Gwent hipnotizou-se com a luz.
— Isso é...
— Sim, minha Deusa.— disse meu irmão — É o Cristal de Outono. — pelo visto estava feito. A missão pela qual Carwyn se arriscou nesses últimos cinco anos, enfim terminou.
A Árvore Da Misericórdia estava fraca, a cúpula estava fraca, nossos inimigos rodeavam a floresta prontos para nos devorarem, mas, com o Cristal de Outono, um alvorecer de esperança reluzia no relevo um tanto indelicado de Cenawlot.
— Devemos levar o cristal à Árvore imediatamente! — o bispo Gruffudd jazia em alvoroço. Minha cerimônia de iniciação como cavalheiro santo já deveria ter acontecido, sim, deveria, mas, segundo o bispo, ela podia ser adiada já que uma mudança de rotina muito mais relevante acabou de acontecer.
Os druidas, os cavalheiros santos, meu irmão e seus aventureiros, todos se reuniam no grande Templo dos Druidas, aos pés da estátua de mármore arraigada em musgos do Mestre dos Mestres Merlin. O templo geralmente era um lugar pacífico, apaziguador de se estar. Podia-se contemplar o som das águas do Rio Alwen surrando as rochas e, como o templo não possuía paredes, mas somente vigas de mármore, podíamos aproveitar aquele silêncio e sentir profundamente a brisa gelada que costumava bater no alto do morro. Mas não naquela vez. Estávamos todos imersos numa balbúrdia que deixaria até o grande Merlin com dor de cabeça. Era compreensível essa estapafúrdia. Afinal de contas, aquilo pelo qual ansiávamos nos últimos dez anos finalmente estava na nossa frente, ou melhor, nas mãos do bispo. — Temos que levar o cristal para a árvore agora mesmo! — ele frisou com mais ênfase dessa vez. Todos os que estavam ali tinham consciência da importância de levar o cristal direto à Árvore da Misericórdia, no entanto, sabíamos que parecia uma atitude um tanto desesperada fazer isso tão imediatamente. Mas é claro, quem ousaria contestar o bispo?
A Deusa sim.
— Não podemos agir com tanta pressa, senhor Gruffudd. — Gwent estava séria. Quando ela queria, sabia agir com firmeza. — Não seria sábio.
— Minha Deusa — qualquer outro que contestasse receberia um olhar trucidante, mas ao escutar o som tênue da Deusa, tudo o que fez foi uma breve reverência e depois ele amaciou a voz. —, a senhora sabe bem que tudo o que eu faço é pela senhora e pelo povo de Cenawlot. Não podemos esperar. Sabe-se lá quanto tempo mais a cúpula irá aguentar, quanto tempo mais a senhora poderá aguentar. Por favor senhora, deixe-me salvá-la e salvar nosso povo de Ælfgar agora mesmo? — Ælfgar, como eu cresci escutando esse nome. As pessoas tinham medo de pronunciá-lo, nunca pensei que o escutaria novamente em vida. Um nome saxão, daquele povo amaldiçoado. Dizem que é um dos descendentes da infame Morgana. O que sei é que o bruxo Ælfgar é aquele que habita a floresta sombria em volta do nosso vilarejo, rondando-a com seu exército de Darach há quase mil anos, esperando uma breve oportunidade para nos massacrar e roubar o poder que herdamos de Camelot. — Ele quer reviver Morgana e destruir o que restou de Camelot! — o bispo completou os meus pensamentos aos brados, — por favor, por favor minha Deusa!
Vi os longos e cheios cabelos crespos de Gwent se mexerem junto com sua cabeça, negando. Sim, ela estava decidida.
— Sinto muito bispo. Eu entendo, de verdade, a situação aterradora em que estamos. — sua voz fluía como o sopro refrescante do alto do relevo —, mas não tenho intenção alguma de alarmar a população. Só para deixar claro bispo, eu conheço bem os meus limites, sei até onde eu aguento e sei que aguento manter a cúpula ativa por mais um dia. Amanhã faremos uma cerimônia e levaremos o cristal até a árvore. — ela olhou de canto para meu irmão — Já está decidido. — pelo visto, essa foi a ideia de Carwyn e, como a Deusa confiava em meu irmão mais do que tudo, ela tomaria a decisão que ele julgasse a mais sábia.
— Minha Deusa... — o bispo novamente roubou nossa atenção. — Ainda assim, será um risco. — ele pausou, provavelmente pensando em algum bom motivo que a fizesse mudar de ideia — E quanto aos cultistas? Sem dúvida alguma aquele bruxo maldito deve ter enfeitiçado mais de nós para agirmos conforme a vontade dele. E se ele agir antes da cerimônia? E se uma de suas marionetes estiver aqui entre nós, escutando essa conversa?
— Então coloquem o cristal sob vigilância. — subitamente, os olhos alaranjados da Deusa me encararam. Congelei, cheguei a debruçar os olhos com o gesto tão repentino. — Tristan ficará responsável por proteger o cristal.
— O garoto? — o bispo me encarou de canto, com escárnio.
— Ele já é um cavalheiro santo, não é? O mais importante é, eu estou ao lado dele o suficiente para ter certeza de que ele não é uma das marionetes controladas pelo bruxo Ælfgar. Não era essa a sua preocupação? Se for, isso já basta. Coloque mais dois ou três cavalheiros para o auxiliarem no trabalho.
A reunião terminou com mais alguns debates um tanto entediantes sobre como a cerimônia de amanhã prosseguiria, o horário e até mesmo a distância segura que as pessoas poderiam assistir o cristal ser levado até a árvore. O meu trabalho de proteger o cristal começou quando todos foram embora. Ficamos, os meus auxiliares e eu, ali mesmo no templo. Foi um dia que nos deixou depressa e, quando menos esperava, a lua já tomava a metade do céu. Não parecia que seria um trabalho difícil. Mas então, Ælfgar trouxe suas marionetes, os cultistas vieram.
(2126 Palavras)
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