XXI - Um passado não tão distante
☙ Capítulo XXI | Folhas de Outono ☙
Na primeira vez que fora ao Café Essência, Ernesto ainda não conhecia muito bem a cidade. Mas, a primeira vista, o lugar parecia agradável e era muito bem localizado. Não era tão longe de casa e nem da escola de Vicente. Ele sempre se preocupava em estar próximo ao filho, que estudava durante a manhã - e durante algumas tardes pela semana. Caso os pais fossem solicitados, Ernesto estaria perto o suficiente para auxiliá-lo. Era a primeira vez que Vicente iria para a escola e Ernesto não queria estar longe. O café foi o local perfeito para poder escrever os artigos da revista que começara a trabalhar e, ao mesmo tempo, não se preocupar em estar distante do filho. Além disso, era exatamente o tipo de lugar que o agradava: não era grande, mas confortável. Da varanda, dava uma boa visão panorâmica da avenida e dos comércios próximos. Aquilo não o incomodava; ao contrário: o rapaz gostava de escrever ao ar livre e os sons ao redor o obrigava a se concentrar ao máximo.
Ele se sentou em uma das mesas laterais da varanda e pediu uma xícara de café tradicional; apesar de ser quase a hora do almoço. Ernesto queria espantar os resquícios de uma noite mal dormida - estava ansioso demais esperando a resposta da revista a qual começaria a trabalhar. Ele havia feito várias entrevistas de emprego; em pequenas e grandes empresas, e apenas uma havia mostrado interesse em contratá-lo. Quando a empresa confirmou que ele poderia começar a trabalhar na Revista Efeito, uma pequena revista da cidade, Ernesto ficou aliviado. Embora o salário não fosse muito atrativo, era um bom começo - ou recomeço.
A ruiva que o atendeu trouxe-lhe o café. O atendimento lhe agradou tanto quanto o lugar - e o café era realmente muito bom. Por isso, enquanto saboreava a bebida, ele soube que aquele lugar seria seu novo e temporário escritório. Ernesto nunca gostou muito de trabalhar em casa - a tentação de deitar-se na cama ou no sofá às vezes era forte demais. Dessa forma, ele preferia levantar pelas manhãs, trocar de roupa e ir a um local público. O Café Essência foi sua primeira e última opção. Isso se a revista o contratasse - o que aconteceu um mês depois.
Além do trabalho, há tempos estava planejando escrever um livro. Ernesto poderia muito bem conciliar ambas as coisas, já que os artigos diários que tinha que escrever e revisar não eram tão longos. Portanto, no segundo dia que fora à cafeteria, o rapaz pôs-se a trabalhar - mas sem antes pedir um café especial. Desde o dia em que vira o cardápio, ansiava por experimentar um mocaccino - sobretudo naquele dia frio e cinzento de março.
Ele olhou, através do vidro, para a parte interna da cafeteria a fim de chamar um dos funcionários. Antes que ele pudesse fazer qualquer sinal que demonstrasse sua chegada, uma nova presença chamou sua atenção. Ele costumava analisar ocasionalmente as pessoas ao redor quando estava entediado, mas ninguém demonstrava interesse pela sua débil existência. Ernesto já havia visto o garoto asiático de cabelos até o cóccix, a mulher de véu e vestimentas longas, o gerente com cara de galã e a ruiva alta e sorridente. Entretanto, uma funcionária havia sido passada despercebida por ele no primeiro dia - ou porque ela simplesmente não estava lá no momento.
Os cabelos cor de chocolate da moça estavam presos em um coque, e um óculos de grau com uma grossa armação escura pendia sobre seu nariz. Seu olhar, que antes concentrava na louça a sua frente, pairou pelo ambiente e pousou em seu rosto. Seu olhar surpreso e intenso fora o que não o fez desviar de imediato. Como um cachorrinho carente e perdido, fora impossível desviar. A garota era tão cômica quanto esquisita. Mas esquisita em um bom sentido. Ela era quase como...ele. Ernesto achou inusitada aquela identificação.
A moça desviou o olhar e encarou a pia. Ernesto viu a mesma ruiva do primeiro dia se dirigir a ele, sorridente e convidativa. O rapaz fez seu pedido e pegou o notebook. Esquecendo-se totalmente das pessoas ao redor - e da garota de óculos - ele se concentrou no primeiro artigo do dia. Às vezes, ele sentia o olhar curioso da moça às suas costas, mas Ernesto a ignorava. Ele já estava acostumado a olhares suspeitos sobre ele; geralmente causado por sua aparência delicada incomum.
Mas aquele olhar persistiu por mais tempo e por mais dias que ele imaginara. E, por alguma razão, ele às vezes correspondia. Por curiosidade. Por não entender, afinal, porque ele a instigava. Quanto mais pensava naquilo, mas a garota o irritava. E por que ela nunca anotava seus pedidos?
Ela com certeza tinha algum problema com ele. Ou, quem sabe, tivesse interessada? Não... Ernesto não podia ser tão interessante assim. A moça nem o conhecia. A pobrezinha parecia um bichinho medroso que encolhia toda vez que Ernesto surgia.
Ele realmente não entendia. Até que Sabrina, não gostando nada de seu novo local preferido para trabalhar, resolveu vigiá-lo. Não com os próprios olhos, claro - ela não seria tão imprudente. Acontece é que a esposa sempre foi controladora - para o bem de sua família, ela dizia. Trabalhar para a polícia e lidar com bandidos às vezes parecia mexer com o psicológico dela - ela via perigo em tudo e em todos. Isso incluía, notoriamente, o perigo conjugal. Sabrina percebeu, através de seus meios mais furtivos, a insistente observação da funcionária. Obviamente, ela não gostou nada daquilo.
- Quem é a garota? - Sabrina perguntou assim que Ernesto chegou em casa. Ele não esperava encontrá-la ali àquela hora.
- Quem? - ele perguntou, confuso, colocando a pasta sobre a mesa.
- Você sabe de quem eu estou falando. - sua voz dura o fez ficar alerta.
Ernesto franziu o cenho, em dúvida.
- Eu não sei. Que garota?
- Da cafeteria. Aquela que fica te olhando. - ela o encarou. - Você sabe muito bem quem é.
- Ah... - Ernesto balançou a cabeça. - Está falando de uma das funcionárias da cafeteria? Eu não a conheço. E eu nem percebi que ela...Espera. - o rapaz encarou a esposa de volta. - Você está me vigiando?
- Eu não estou te vigiando. - Sabrina negou.
- Você sabe que estou indo trabalhar. E não para paquerar - ele falou, ofendido. - Pelo amor de Deus!
- Acredito em você, Ernesto - ela pegou a chave do carro sobre a mesa. - Afinal, se se interessasse por mulheres mais novas, não teria se casado comigo. Não é?
Havia dúvida em sua voz. Como se estivesse desafiando-o para uma interminável batalha de argumentos, Sabrina esperou a resposta com a cabeça inclinada para frente. Não, ela não acreditava nele.
- Não me venha com suas paranoias. - ele olhou para a chave do carro em sua mão. - Eu preciso do carro. Tenho que resolver umas coisas no centro e...
- Resolva amanhã, por favor. E eu busco Vicente. - ela se afastou dele, o barulho dos saltos altos ressoando pela sala. Sem olhar para trás, a mulher sumiu pela porta da sala. O rapaz jogou-se no sofá enquanto ouvia o som do motor diminuir aos poucos.
Ainda tinha um dia inteiro pela frente. Ele aproveitava para terminar seus textos ou resolver alguma pendência, mas a quietação e a solidão que sentia naquela casa o deixava farto. Geralmente, era pego de surpresa por pensamentos ansiosos e depreciativos. Naquela hora, Ernesto tentava achar uma resposta: Por que Sabrina estava esperando em casa por ele, sendo que ela voltava bem mais tarde? No mínimo, a esposa desconfiava dele. Como se ele pudesse levar alguém até a sua casa e traí-la na própria cama.
Aquilo quase o fez rir. Quase. Pois era ridículo. Se a garota estava mesmo interessado nele, o que ele tinha a ver com isso? Ernesto só queria trabalhar em paz. Nem se importava tanto com a presença da garota e seus olhares sorrateiros. Ele também não a conhecia o suficiente para julgá-la. O que Sabrina achava que ele poderia fazer?
Depois que o Café Essência fora assaltado, Ernesto decidiu não voltar mais. Não só pelo susto de ter sido roubado - apesar de suas coisas terem sido recuperadas sem nenhum estrago - mas pela confusão que se instalou quando Sabrina perseguiu a garota. Ernesto não queria mais motivos para brigas sem sentido; muito menos envolver a garota naquilo.
Mas agora, quase um ano depois, Ernesto estava livre das obsessões de Sabrina. Notara o quanto era submisso e idiota ao deixar com que a ex-esposa controlasse todos os seus passos e suas ações. Agora, ele sentia-se bem para fazer o que bem entendesse - e isso incluía voltar a escrever enquanto tomava seu café favorito.
Ernesto estacionou o carro em frente ao Café Essência e observou a fachada. Havia algumas plantas a mais e as pilastras marrons pareciam mais lustrosas. Como era de se esperar, algumas poucas pessoas transitavam nas ruas. A maioria já tinha ido para as escolas ou para seus trabalhos. Tudo aquilo pertencia a um passado não tão distante, mas que parecia fazer parte de um mundo paralelo. Muitas coisas haviam mudado desde que pisara naquele lugar pela última vez.
Determinado, o rapaz ajeitou o coque desalinhado no topo de sua cabeça e desceu do carro.
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