XVIII - Ao som da noite
☙ Capítulo XVIII | Folhas de Outono ☙
Como se já não bastasse as segundas-feiras serem sempre um pouco desagradáveis, Evelyn teve uma surpresa igualmente desagradável. A mesa a qual Eve chamava mentalmente de mesa do Ernesto fora ocupada naquela manhã por uma mulher alta e loira. Evelyn não precisou ver seu rosto para sentir suas artérias gelarem. Disse para si mesma que não ia deixar aquilo afetá-la - afinal, ela não estava fazendo nada de errado. Ernesto não mais frequentava aquele lugar e ela nunca fez nada para acabar com casamentos alheios.
Mas a presença daquela mulher era um tanto desagradável. Sua postura e sua expressão eram intimidantes demais para Eve ignorá-la. A moça poderia achá-la bonita se não fosse tão mesquinha.
Evelyn observou-a dispensar Nicole com um gesto. Em seguida, disse algo que fez a ruiva vira-se para a moça. Eve engoliu em seco, passando as mãos pelo avental.
- Quem é aquela? - Zahir perguntou, os cenhos franzidos em direção à mulher.
- Não sei. - Eve mentiu, sentindo a aproximação de Nicole.
- Eve - a colega olhou para ela, inquieta. - Aquela mulher que falar com você. Sabe de quem se trata?
Evelyn suspirou, contornando o balcão. Seus passos determinados fizeram Zahir dar passagem.
- É ela. - Eve murmurou e, antes que mudasse de ideia, atravessou o compartimento em direção à varanda.
A loira olhou para ela de imediato. Evelyn pegou o bloco de pedidos casualmente, tentando manter-se serena. Uma ínfima irritação começou a borbulhar dentro de si. A postura e o olhar analítico de Sabrina denunciavam sua arrogância. Se aquela mulher achava que o distintivo pendurado em seu peito a fazia superior, ela estava muito enganada.
- Bom dia. O que deseja? - Evelyn perguntou, ignorando o olhar sobre ela.
- Nada. - a mulher respondeu, ainda encarando-a. - Eu não quero pedir nada. Na verdade, gostaria de falar rapidamente com você.
Evelyn baixou o bloco e a caneta, colocando-os no bolso do avental.
- O que deseja? - ela tentou não soar irritada.
- Você estava na festa no sábado. - Sabrina disse. - Eu já avisei a você uma vez, Evelyn. Esqueça a existência do meu marido. Não sei quem é você e nem o que quer com ele, mas fique longe de Ernesto.
- Não sei o que pensa de mim - Eve respondeu, sentindo seu rosto esquentar. - Mas eu nunca fiz nada com ele e nem faria. Eu nem o conheço. E na festa...eu nem me aproximei dele!
Sabrina levantou-se, jogando a bolsa marrom sobre o ombro. Com aqueles saltos altos, ela ficara ainda mais esguia. Pelas linhas de expressão por trás da maquiagem, Eve diria que ela tinha bem mais que trinta anos.
- Garota petulante - a mulher brandiu. - Dava para ver em seus olhos suas intenções. Por que não vai procurar alguém do seu nível?
- A culpa não é minha se me apaixonei pelo seu marido - ela soltou, falando mais alto que gostaria. - De qualquer forma eu não sabia que ele era comprometido. Eu nunca tentei nada.
Sabrina trincou o maxilar, avançando em sua direção. Evelyn deu dois passos cambaleantes para trás, colocando-se atrás de uma das cadeiras.
- Chega! - alguém ralhou atrás dela. Cassandra cruzou a varanda com passos duros, colocando-se ao lado de Evelyn. - Ela é só uma menina, Sabrina. Deixe-a em paz!
Sabrina encarou Cassandra, que era tão alta quanto ela. Eve sentiu-se um cachorrinho perdido entre dois pastores alemães furiosos.
- Essa menina estava tentando seduzir meu marido. - ela disse, apontando para o peito de Eve. - Você aceita esse tipo de comportamento dos seus funcionários, Cassandra? Já não basta deixar aquela mulher de véu preambular por aqui. Sabe o risco que está correndo?
- Você deveria ter vergonha de dizer isso. - a dona do Café Essência balançou a cabeça, os cachos impecáveis sacolejando. - Eu contrato quem eu quiser. Todos os meus funcionários são excelentes, e não será por um mal entendido que vou deixar que você ofenda um deles.
Zahir, que estava recolhendo copos e pratos, parou e olhou para trás boquiaberta. Não era apenas ela que havia parado para assistia à cena: todos os clientes olhavam na direção da loira. Evelyn encolheu-se, querendo sair logo dali. Mas não iria se rebaixar daquela forma. Ela ergueu a cabeça, fitando a mulher sem se deixar intimidar.
- Eu não vou fazer nada para prejudicar o seu casamento - disse, a voz falhando um pouco. Ela respirou fundo, continuando: - Eu já pedi desculpas. Se tem algo contra mim, eu entendo. Mas por favor, não ofenda meus amigos.
- Eu... - Sabrina olhou para ela, prestes a dizer algo que fizesse Eve se sentir ainda mais culpada.
- Retire-se, Sabrina, ou eu chamarei a polícia. - Cassandra disse. - Não se esqueça, querida, que também tenho amigos do seu ramo. Espero que eu não tenha que chegar a esse ponto.
A loira deu um último olhar fulminante nas duas e retirou-se. Evelyn só se sentiu confortável para respirar normalmente quando a mulher desapareceu de vista. Cassandra apertou carinhosamente o ombro de Evelyn.
- Ela não vai mais aparecer aqui - ela garantiu. - Não se preocupe.
- Que indiscreta! - Zahir exclamou, equilibrando a louça suja na bandeja. - Não acredito que ela fez isso de novo.
- Fez... - Evelyn apertou os olhos, tentando ignorar o familiar aperto no peito.
Nicole e Rael foram até elas. O rapaz pegou a bandeja da mão de Zahir enquanto Nicole limpava seu rosto sujo de ketchup.
- Se eu soubesse que era ela, teria dito algumas verdades. - Nicole disse, limpando as próprias pálpebras com um pedaço de guardanapo.
- Tsc. Não... Ela não merece suas elegantes palavras - Evelyn murmurou. - Ei, o que aconteceu? Acidente com o pote de ketchup?
Nicole deu um sorriso seco.
- Aquele grupo de adolescentes que vieram matar aula. - ela disse, apontando o nariz na direção da última mesa dentro do café. Havia quatro meninos de mais ou menos dezesseis anos levando uma bronca de Cassandra.
- Ah. É uma pena que não possamos fazer o mesmo na cara deles - Eve falou, observando os garotos saírem de suas cadeiras acompanhados de Cassandra. Suas expressões emburradas quase fizeram Evelyn rir.
Ela observou-os sair do Café Essência com satisfação.
- O que eu perdi? - Lucas apressou os passos em direção à tia. - Eram aqueles garotos de novo? E o que Sabrina estava fazendo aqui?
- Deveria prestar mais atenção às câmeras, Lucas - Cassandra alertou.
- Estava ocupado demais fazendo os pedidos que uma tal de Cassandra Bloch ordenou - o rapaz retrucou.
- Não importa - a mulher bateu palma duas vezes. Chamando atenção de todos, ela ergueu a mão com um pacote de ketchup estourado. - Nesse lugar, não quero saber de palhaçada com meus funcionários. Creio que me conheçam bem e sabe que sou responsável e respeitosa. Não tolero que joguem comida na minha equipe. - ela jogou o ketchup no lixo. - E quem vier com mais gracinhas, chamarei a polícia. Tenham um bom dia e uma ótima manhã, queridos!
Cassandra deu um sorriso triunfante. Lucas arregalou os olhos, acompanhando a tia em direção ao escritório.
Evelyn ficou boquiaberta.
- Me fala - Rael disse à Nicole. - O que aconteceu?
Nada que não tenha acontecido antes, Evelyn viu-a responder em silêncio.
●●●
O sol estava prestes a se pôr sob o horizonte quando Evelyn ajeitou o violino no ombro. Oliver estava deitado na varanda, observando a moça na tentativa de encontrar um tom no instrumento. Há tempos ela não tocava. Lembrou-se das primeiras notas de Autumn, de Vivaldi; uma das primeiras músicas que conseguira tocar por completo no violino. Ela errou uma ou duas vezes até finalmente pegar o jeito. Conforme absorvia o som que tirava do instrumento, ela tentava inutilmente se distrair.
Ela refletiu sobre os últimos meses, comparando-os com os dias entediantes. Ela desejou, sim, que aquele ano fosse diferente; mas não imaginava que seria daquela forma. Com certeza seu tédio fora substituído pela adrenalina e a ansiedade em dias que deveriam ser considerados normais.
Evelyn tinha que tomar cuidado com o que desejava.
Mas não era apenas seu interior que parecia agitado. Tudo a sua volta aparentava estar em ebulição. Até mesmo o Café Essência, que nunca havia tido maiores problemas, tivera alguns transtornos. Talvez fosse a presença apreensiva de Evelyn que houvesse causado tudo aquilo.
Ela continuou tocando mecanicamente enquanto as cenas daquele dia passava diante dos olhos de sua mente. Estava tão concentrada no som do instrumento e em seus pensamentos que não ouviu a chegada do irmão.
- Faz tempo que não escuto você tocar - Augusto disse. Evelyn afastou o arco do violino rapidamente, virando-se. O irmão estava com os braços cruzados, sentado no braço do sofá.
- Ah - Evelyn sentiu o rosto esquentar. - Eu não te ouvi chegar.
Augusto apontou para o violino, dando um sorrisinho.
- Continue.
Evelyn expirou lentamente e voltou-se para a varanda. O sol já havia desaparecido por completo, e a noite finalmente chegara. Ela apoiou o instrumento no ombro novamente, mas não emitiu nenhuma nota.
Augusto aproximou-se, apoiando no parapeito da varanda. Evelyn largou o violino em uma mesinha próxima e fez o mesmo. Oliver, esfregando-se aos pés do dono, começou a ronronar. O cheiro do pão das dezoito horas já chegava até seus narizes.
- Fico me perguntando se há dores maiores que de um coração partido. - Evelyn quebrou o silêncio, observando as primeiras estrelas surgirem no céu. O som e a escuridão da noite, por alguma razão, a fazia se sentir mais vulnerável.
- Não é possível comparar as dores - Augusto falou. - Há sentimentos diferentes, mas igualmente dolorosos.
- A dor da injustiça, talvez. - Eve sugeriu. - Ou de não ser aceito por algum motivo fútil...
- Isso também não se encaixaria no quesito coração partido? - o irmão olhou de soslaio para ela.
Evelyn deu de ombros.
- Eu não sei... - ela disse.
O irmão pegou Oliver no colo antes que ele escalasse sua calça. Pensativo, Augusto acariciou a barriga do felino; que ronronou ainda mais alto.
- Minha irmã teve uma desilusão amorosa? - ele perguntou. - Só espero que não seja aquele tal de Giovanni... Que por sinal, é bem gostoso, mas não faz seu tipo.
- Até você? - Eve franziu as sobrancelhas. - Não me diga que você também fica olhando as fotos dele no Instagram.
- Oh, bem... Não vou mentir. - Augusto fez um bico. - Mas não tenho interesse. Ele é loiro e hétero. E tem namorada. Então, espero mesmo que não seja ele por quem você esteja apaixonada.
Evelyn riu, gostando da sensação em seu ventre.
- Não. - ela garantiu. - Eu me apaixonei por um homem que não conheço.
- Não conhece? - o irmão não parecia surpreso. Augusto sabia de todos os garotos pelos quais Eve se interessou nos tempos de escola, e nenhum deles Evelyn teve algum contato. Como Yan. Mas nada se comparava àquele sentimento bizarro que ela sentia por Ernesto.
Evelyn balançou a cabeça em sinal negativo, e seu coração fraquejou ao se lembrar da última vez que o vira. Ele estava tão bonito.
A moça sentiu sua garganta se comprimir. Ela esperava que o irmão - curioso como era - perguntasse sobre o misterioso rapaz, mas ele apenas a observou.
- Bem - ela pigarreou, espantando a melancolia repentina. - Não importa. O mundo continua girando. Lamentar-se é inútil.
Augusto levantou uma sobrancelha.
- É verdade, a Terra continua rodando - ele disse, olhando para a abóbada celeste em meio a sombras e estrelas - Tudo muda o tempo todo, de uma forma ou de outra.
- O que quer dizer com isso? - Evelyn perguntou.
- Nada de mais. Só estou refletindo - o rapaz replicou.
Evelyn assentiu. O irmão tinha razão - tudo mudava o tempo todo. Sentimentos, relacionamentos - até a natureza em suas estações. Contudo, Eve tinha a sensação que era prisioneira do próprio tempo. O inverno se aproximava, mas ela continuava presa ao outono.
E, para o seu pesar, aquilo persistiria por mais tempo que ela imaginara.
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