VI - 𝑆𝑜𝑛𝑜 𝑝𝑎𝑧𝑖𝑒𝑛𝑡𝑒, 𝑐𝑎𝑟𝑎 𝑚𝑖𝑎
☙ Capítulo VI | Folhas de Outono ☙
Havia apenas dois clientes naquela manhã de segunda-feira quando um casal desconhecido entrou na cafeteria. O homem e a mulher de cabelos escuros sentaram-se em uma das mesas, observando com aprovação o espaço e a decoração. Pela postura de ambos, não era preciso trabalhar na cafeteria para saber que eles nunca estiveram ali antes. Eles cumprimentaram Evelyn e Nicole com um bom-dia, e a moça percebeu de imediato pelo sotaque carregado que eles não eram do país.
Evelyn olhou para Nicole e fez um gesto discreto em direção ao casal, indicando que ela seria a encarregada a atendê-los - privilégios de uma poliglota.
Nicole ainda atendia os novos clientes - expondo seu francês impecável - quando Giovanni surgiu com seu terno engomado e gravata; o qual ele desfez em uma careta de alívio. Sentando-se próximo ao casal, ele jogou o celular sobre a mesa e remexeu os ombros, como se todo o seu corpo estivesse rígido.
Notando a aproximação de Evelyn, Giovanni desviou os olhos de Nicole e sorriu para a moça a sua frente.
- Tem donuts hoje? - ele perguntou.
- Mas é claro. Todos comem donuts às nove da manhã. - ela ironizou.
- Não há hora para comer donuts. - o rapaz retrucou. - Aquele de chocolate, por favor.
- Certo. - Evelyn assentiu. - Nenhum café?
- Agora não, senhorita.
Eve virou as costas para o rapaz, indo em direção ao balcão. Ela parou quando ouviu sua voz atrás de si novamente:
- Pensou em minha proposta? - o rapaz perguntou, e Evelyn olhou com tensão por cima do ombro. Mas, ao contrário do que havia imaginado, Giovanni tinha a atenção em outra pessoa.
Nicole sorriu enquanto passava por ele e respondeu algo, mas seu tom foi tão baixo que Eve não escutou. A moça franziu o nariz e foi pegar o donuts. Colocou a rosquinha com cobertura de chocolate em um prato de porcelana e voltou-se para o freguês. Mas, antes mesmo de servi-lo, seu corpo gelou quando notou a presença dele. Do ser que estava virando a vida de Evelyn de cabeça para baixo com sua simples aparição.
Evelyn obrigou seus pés a caminharem na direção de Giovanni. Ela sentiu o olhar atento do rapaz de cabelos cacheados ao colocar o prato sobre a mesa. Eve encarou-o de volta, e Giovanni deu um sorrisinho malicioso. Evelyn voltou ao dia em que tiveram a conversa, há uma semana.
A moça teve vontade de estapeá-lo ali mesmo, mas talvez aquilo não fosse uma boa ideia. Por isso, Eve limitou-se a franzir o cenho e afastar-se. Aquele trapaceiro não ia desistir tão fácil.
Giovanni ainda mastigava um pedaço do donuts quando se levantou, levando o prato consigo. Ele colocou-o em frente a Evelyn, que o fitava como se quisesse desafiá-lo. O rapaz sentou-se na cadeira alta e apertou os lábios, colocando uma nota de cinquenta sobre o balcão.
- Nicole - ele desviou os olhos para a ruiva próxima à máquina de café. - Una tazza di caffè espresso, per favore.
Nicole respondeu em italiano, mas Evelyn não tentou compreender. Seus olhos se prenderam na imagem pálida e distante do rapaz sendo servido por Zahir. Suéter azul marinho, calças jeans e fios rebeldes sobre a testa. E, pela primeira vez desde que começara a frequentar o Café Essência, ele estava sorrindo. Não era apenas um movimento sutil nos lábios - ele exibia os dentes e ria de algo que Zahir havia acabado de dizer. Seu coração, que estava agitado desde que notara a presença da Monalisa, sacolejou ainda mais em seu tórax. Ela invejou Zahir por tê-lo feito rir. Invejou-a por estar tão perto e por oferecer-lhe seu café favorito. Evelyn sentiu-se um lixo por não conseguir ao menos cumprimentá-lo. Arrependeu-se, mais uma vez, por não ter se responsabilizado em atendê-lo desde o primeiro dia; e não apenas ficar olhando-o feito uma idiota.
Mesmo que fosse impossível, ela temeu que Giovanni pudesse escutar as batidas de seu coração - provando de vez o quão ela estava desesperadamente interessada no rapaz desconhecido. Mas Giovanni estava ocupado demais tomando seu café em pequenos goles, aproveitando ao máximo a presença de Nicole.
Evelyn observou a reação da colega diante do rapaz. Ela parecia totalmente confortável e relaxada; o que de certa forma fora um alívio para Evelyn. Se estava realmente disposta a aceitar a proposta de Giovanni, ela queria ter certeza que Nicole desejava estar com ele.
Os olhos de ambos brilhavam frente ao outro. Aquilo de repente tocou Evelyn de forma tão profunda que ela sentiu um misto de felicidade pelos dois e tristeza por ela mesma. Seus sentidos pareciam cada vez mais apurados e conflituosos - era uma briga constante entre a felicidade extrema e a tristeza desesperadora em seu interior. A sensação que tinha é que estava andando em uma corda bamba, sem saber ao certo qual caminho estava tomando - e como se a qualquer momento ela pudesse se espatifar em um solo que ela não enxergava.
Evelyn queria aliviar aquilo de alguma forma.
Giovanni empurrou a xícara vazia, suspirando alto em satisfação.
- Preciso voltar ao trabalho - ele anunciou, ficando de pé e ajeitando a gravata. Inclinando o pescoço em direção ao balcão, disse baixinho: - Sono paziente, cara mia.
Dessa vez, ele não falava com Nicole. O rapaz lançou-lhe mais um olhar sugestivo, o que a irritou. Giovanni despediu-se da ruiva e se retirou, atravessando a varanda em direção à saída - mas sem antes aproximar-se da mesa do rapaz com o notebook e cumprimentá-lo. Agora sem o suéter, ele exibia os braços tão pálidos quando o rosto; os poucos bíceps se destacando sobre a camisa preta.
Surpresa, Evelyn arregalou levemente os olhos quando observou-o dizer algo a Giovanni. Então aquele patife realmente o conhecia. Como se já não bastasse, Giovanni virou-se para ela e piscou discretamente. O rapaz sabia que sua vítima estaria atenta à sua tática depravada. Rael, que estava próximo limpando uma mesa, observou a cena com curiosidade. Seu olhar também se recaiu sobre Eve, que estava claramente desnorteada com a situação.
A moça ignorou-o e olhou para a louça a sua frente. Começou a lavar as xícaras com cuidado conforme deixava a irritação e sua angústia correr de suas mãos gélidas para o ralo. Mas nada adiantava.
Ela olhou para Nicole, observando sua expressão serena e atenta às tarefas.
- Então... - Evelyn quebrou o silêncio entre as duas. - Como estão as coisas com o Giovanni?
Evelyn sentiu-se uma intrometida. Elas podiam se conhecer há algum tempo, mas sabia que aquele era um assunto íntimo demais para conversar no trabalho. Ela quase se desculpou. Porém, Nicole não pareceu ofendida.
- Ele quer sair comigo de novo - ela contou. - Mas eu não sei... Estou tão insegura.
- Mas por quê? Quero dizer, ele parece ser uma boa pessoa. Ele é engraçado e gosta de donuts.
Nicole riu.
- Eu sei. Ele é uma graça. - ela concordou sem conseguir esconder um sorriso. - Não sei se você entenderia. Somos de mundos tão diferentes, e ele... bem, ele um pouco impulsivo. Talvez esteja enganado em relação a mim. E eu em relação a ele.
- Eu não sei se entendo mesmo - Evelyn olhou de soslaio para o sério rapaz a distância. - Mas você tem a oportunidade de conhecê-lo mais a fundo. Por quê não pede auxílio das cartas?
Nicole calou-se, e Eve temeu que houvesse dito algo errado.
- Desculpe - Evelyn começou a se sentir péssima. - Eu não deveria ter me intrometido.
- Não... - Nicole balançou a cabeça, deixando uma mecha ruiva cair sobre seus olhos. Ela colocou-a atrás da orelha novamente. - É que ler cartas para si mesmo pode levar a uma má interpretação da situação. O oráculo nunca erra, mas posso me deixar ser influenciada pelos meus pensamentos.
- Confie em sua intuição - Evelyn aconselhou-a. - Não conheço alguém que interprete aquelas cartas tão bem quanto você. E eu acredito que realmente possa ajudá-la a tomar uma decisão.
Nicole pareceu considerar a sugestão. Evelyn sentiu-se aliviada por ter tido aquela ideia. Percebeu que não se tratava de convencê-la de nada; e sim de mostrar-lhe outras alternativas. Se ela aceitasse o convite de Giovanni ou não, seria uma escolha apenas dela.
Evelyn só torcia para que as cartas fossem favoráveis.
A moça ainda estava perdida em seus devaneios quando Rael aproximou-se com um suéter azul marinho nas mãos. Eve soube de imediato a quem aquela peça pertencia. Seus olhos foram imediatamente para a mesa o qual o rapaz costumava sentar; agora sustentando apenas com um copo vazio. Ele havia ido embora e Eve mal havia notado - o que a fez questionar-se mais uma vez se ele não era um fantasma que aparecia e desaparecia quando bem entendesse.
Rael segurou o suéter com uma mão e fez uma série de gestos com a outra.
- Aquele rapaz que acabou de sair esqueceu a blusa de frio sobre a cadeira - Nicole interpretou. - Vamos guardá-la. Se ele não sentir falta hoje, devolvemos amanhã.
Nicole foi até à varanda quando um dos clientes a chamou, deixando Rael e Evelyn sozinhos. O rapaz estendeu o suéter em sua direção enquanto apontava para seu peito. Você vai entregar, é o que ele parecia dizer.
- Não. - Evelyn balançou a cabeça exageradamente, empurrando o braço do colega. O tecido macio e grosso encostou em seus dedos, e Eve teve uma súbita vontade de tocá-lo por inteiro. - Chen, não. Você guarda.
Rael franziu as sobrancelhas escuras e balançou a cabeça, estendendo o braço teimosamente em sua direção. O rapaz fez gestos rápidos os quais Eve não entendeu por completo, mas ela compreendeu claramente os sinais de MULHER e ATITUDE.
Aquilo já bastava. A moça bufou e agarrou o suéter, olhando feio para Rael. Ele sorriu, vitorioso, ignorando totalmente o estado caótico que a colega se encontrava. Nervosa, Evelyn empurrou a porta da área restrita e foi até o armário, sentindo as mãos trêmulas sobre o tecido azul. Só de pensar em devolver aquela coisa dava-lhe um terrível frio na barriga. Talvez ela pudesse entregar a Lucas, que ficava constantemente em seu escritório no andar superior. Era só subir as escadas. Mas Lucas diria para ela mesma devolver, pois ele tinha uma cafeteria para gerenciar.
Eve abriu o próprio armário e olhou para os lados. Finalmente, fitou o suéter em sua mão e apertou-o com os dedos. Passou o indicador pela gola, sentindo a textura - era como qualquer outra roupa, porém, por alguma razão ela sentiu uma enorme necessidade de tocar e observar aquela veste. Contudo, ao contrário de outras roupas, aquela havia estado em contato diretamente com aquela pele cujo contato ela tanto ansiava. Era como se, finalmente, estivesse realizando seu desejo latente.
A moça já estava se sentindo uma psicopata/delinquente/obsessiva quando levou o suéter ao nariz. Era o mesmo cheiro que havia sentido no dia em que ele passara ao seu lado: perfume amadeirado suave. E mocaccino - uma mistura inconfundível de cafeína e chocolate. Seus olhos marejaram e ela afastou a peça do rosto antes que se encolhesse em posição fetal no chão com a fuça enfiada naquela coisa. Ele com certeza não ia gostar nada de encontrar seu lindo suéter com secreções nasais e lágrimas de uma garota estranha.
Para a sua sorte, Rael sempre deixava seu armário aberto. Antes que mudasse de ideia, Evelyn abriu-o e jogou a peça dentro do armário do colega. Fechou-o rapidamente, colocando as mãos sobre a porta de metal como se a qualquer momento a roupa pudesse atacá-la.
Respirando fundo, ela ajeitou o uniforme e os cabelos; tentando fingir compostura. Evelyn saiu com passos apressados para voltar ao trabalho, deixando os armários para trás. Tentou, em vão, esquecer-se da loucura que acabara de fazer. Mas o embriagante aroma que exalava daquele tecido a fez se sentir como uma viciada em drogas - ela queria mais. No entanto, Evelyn não faria de novo. Também não devolveria ao rapaz - deixaria aquele trabalho para Rael. Afinal, foi ele que pegou aquela droga de suéter.
No fundo, Eve estava decepcionada consigo mesma. Com certeza ela não era uma mulher de atitude.
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