IXX - As últimas luzes de Natal

Capítulo IXX | Folhas de Outono 

28 de dezembro de 2017

14: o4 p.m

Ernesto nunca gostou de brigas. Desde que era criança preferia evitar conflitos em família ou até mesmo na escola. Era ele quem separava os dois irmãos mais novos quando eles estavam prestes a se enforcarem - ou quando um de seus colegas da escola ameaçava a cortar o pescoço de seus rivais. Introvertido e surpreendentemente tímido, Ernesto Hernández sempre fora um pouco esquisito - aos olhos de outras pessoas, é claro. Talvez até mesmo aos seus próprios olhos. O jovem homem não se considerava um grande exemplo de homem simpático e engraçado que as pessoas adoravam.

Sua aparência, aos olhos da sociedade, também não ajudava. Quem sabe, se ele tivesse nascido uma mulher, teria sido considerado agradável aos olhos daqueles que o observava - como sua irmãzinha que acabara de completar dezoito. Eles eram muito parecidos; com exceção dos olhos esverdeados e o jeito espontâneo de se expressar da moça. Hannah não era nada tímida; compartilhando o mesmo gene extrovertido de Fernando - o do meio dos irmãos Hernández.

Ernesto parecia-se com uma estatueta de porcelana de um anjo caído. Um anjo cabeludo e alvo que cometera pecados no céu por ter desobedecido a Deus. Ele não era muito religioso, entretanto, acreditava o suficiente na lei da causa e efeito - mas, o que ele havia feito para se meter naquela confusão sem sentido, ele não sabia.

Longe de sua família, pela primeira vez ele não soube como agir ou a quem recorrer. Ernesto havia se mudado para aquela maldita cidade por causa dela. Sua esposa - e, especialmente, por Vicente. Seu filho fora o motivo para que Ernesto não largasse tudo - o casamento, o trabalho, sua vida - e se perdesse em seu mar de solidão e apatia. Ele, que não quebrava nenhuma lei sequer; seja ela divina ou humana, sentia-se tentado a romper uma.

Antes mesmo de saber da gravidez, Ernesto sempre fez de tudo por Sabrina. Ele não estava planejando se casar tão cedo, mas a exigência da namorada foi tanta que ele cedeu. Afinal, ele seria pai. Se ele a amava? Bem, o rapaz não sabia ao certo naquele momento. Ele amava seu filho, seus irmãos, seus pais. Mas mal sabia se amava a si mesmo também. Ernesto achava que não. Caso se amasse, ele se permitiria passar por aquela situação? Não, ele não se submeteria a isso se fosse o caso.

Fora Sabrina quem determinou que se mudariam de cidade, argumentando que seria melhor para eles e para Vicente. Antes mesmo de Ernesto poder avisar aos pais, a esposa já havia matriculado o filho na única escola da cidade que ensinava braille e tinha uma boa reputação quanto à educação especial. Sem questionar, Ernesto aceitou a mudança e tentou ser otimista. Poderia encontrar um trabalho melhor e, quem sabe, passar mais tempo com Vicente e fortalecer os laços com Sabrina. Contudo, para seu azar, tudo havia piorado significativamente depois de se mudar. Sua relação com a esposa havia piorado, seu novo emprego pagava menos que o interior e Vicente teve grandes dificuldades de adaptar à nova escola.

Ernesto estacionou em uma das várias vagas da rodoviária e desligou o carro. Olhou para trás, observando o filho preso à cadeirinha com Alex, seu sapo de pelúcia. Vicente balançava as pernas, ansioso, atento a todos os sons a sua volta.

- Tio Fernando já chegou? - o menino perguntou.

- Está chegando, filho - ele respondeu, olhando pelo retrovisor. Passageiros desciam do ônibus vindos da cidade vizinha, provavelmente para passar o restante das férias ou visitar amigos e parentes.

Ernesto logo viu Fernando entre eles, a mochila azul sobre a blusa cinza e calças jeans surradas. Os cabelos escuros estavam mais curtos, mas ainda bagunçados. Na mão, ele carregava uma sacola branca. Desde que o irmão começara seu projeto fitness, seu rosto e seu corpo havia mudado consideravelmente. Ao aproximar-se, Fernando bateu na lataria do carro com os nós dos dedos e se jogou no banco do passageiro.

- Tio Fernando! - Vicente exclamou no banco de trás.

- E aí, cara! - Fernando virou-se e puxou levemente a perna do sobrinho. Depois, bateu no ombro de Ernesto. Com um sorriso brincalhão, como se para elevar seu ânimo, ele disse: - E aí, meu irmão! Aqui estou eu para alegrar seu dia de merda. Já comprou a cerveja?

- Sem palavrões, Nando. - Ernesto advertiu. - E eu não bebo cerveja.

- Não é pra você - ele colocou a mochila no tapete do carro, puxando um pacote retangular verde da sacola. Fernando colocou no colo do sobrinho, que rapidamente começou a apalpar o presente.

- O que é? - Vicente perguntou, rasgando o papel. Ernesto viu quando a caixa do lego foi revelada.

- Acho melhor abrir a caixa em casa. - Fernando disse. - Tenho certeza que você vai se amarrar.

- Legos? - Vicente perguntou, balançando a caixa com um sorriso.

- Acertou. - o rapaz falou. Ernesto riu baixinho e ligou o veículo, deslizando pelo asfalto. - E Feliz Natal atrasado!

Pelo retrovisor, Ernesto viu o filho colocar a caixa de lego ao lado de Alex, abraçando-os. Era tão bom vê-lo feliz. Mais tarde, teria que se lembrar de agradecer ao irmão por aquele pequeno gesto. Apesar de Vicente ter apenas cinco anos, já era esperto e consciente o suficiente para perceber o que acontecia ao seu redor. Ao cinco anos de idade, não deve ser nada fácil escutar seus pais brigando e sentir pouco a pouco a família se desintegrando. E, o pior de tudo: a forma endurecida e muitas vezes indiferentes que Sabrina o tratava.

Fernando insistiu que parassem no mercado para comprar algumas coisas. Enquanto esperava o irmão comprar suas cervejas e outras porcarias nada saudáveis, Ernesto ficou com o filho no carro quando uma grossa chuva começou a cair de repente. O rapaz afundou-se no banco do carro, lembrando-se das vezes em que aquele lugar era seu único refúgio. Era naquele carro que se permitia chorar, espernear e xingar quando sentia necessidade. Depois disso, porém, ele se obrigava a respirar fundo e continuar a vida. Pelo seu filho. Principalmente por ele.

Quando chegaram em casa, Sabrina ainda estava ausente; como já era esperado. A árvore de Natal no centro da sala, ainda montada, parecia ser a única coisa colorida e consoladora do lugar. Vicente sentou-se no tapete próximo à árvore e se pôs a conhecer as peças do novo brinquedo. Fernando abriu um vinho que havia comprado e ofereceu uma taça ao irmão.

- Já podemos começar a comemorar seu aniversário? - ele bateu de leve sua taça na dele.

- Ainda não é meia-noite. - Ernesto tomou um gole do vinho mesmo assim.

- Não importa - Fernando sentou-se no sofá, observando o sobrinho. - Mamãe queria que eu trouxesse um bolo, mas, desastrado como eu sou, não ia dar muito certo.

- Sinto muito por não ter visitado vocês no Natal. - Ernesto lamentou-se. - Mas Sabrina queria que passássemos na cidade.

- Sabemos que sua esposa é um tanto exigente - o rapaz percebeu a solidez no timbre do irmão.

- Ela só queria algo especial, nós três - ele se sentou ao lado do irmão. - Foi bom. Não foi, Vicente?

- Sim. - o menino respondeu, interessado demais nas peças para completar a afirmação.

- Só não foi mais legal porque eu não estava aqui. - Fernando colocou a taça na mesinha ao lado e juntou-se a Vicente no tapete. Vasculhou as peças coloridas, pegando o manual. - Vamos ver o que temos aqui... Que tal fazermos um dinossauro?

●●●

Quando deu meia-noite, Vicente já dormia. Fernando beliscava pedaços de queijo e Doritos enquanto observava a porta. Depois que o irmão lhe dera felicitações e um par de novos fones de ouvido sem fio, um estranho silêncio se instalou na sala. O pinheiro artificial, carregando suas últimas luzes de natal, piscava descontroladamente sob a luz fraca da lâmpada do teto.

- Sei que nossas companheiras devem e podem ter a liberdade de sair quando quiserem, mas... - Fernando bateu o dedo na taça. - Ela não te fala nada?

- Ela não me deve satisfações. - Ernesto retrucou.

- Cara - o irmão o encarou. - Ela é sua esposa e mãe do seu filho. Não fica preocupado quando ela desaparece do nada?

- Deve estar com as amigas comemorando alguma coisa - ele deu de ombros. - Não importa. Podemos não falar sobre Sabrina?

- Não estou aqui para te ajudar justamente com isso? - Fernando insistiu. - Ernesto, por que não pede divórcio logo? Está óbvio que não vai dar mais certo.

- Isso está fora de questão - Ernesto levantou-se, levando a taça vazia consigo. Foi até a cozinha, irritado, quase quebrando o recipiente ao colocá-lo na pia.

Fernando parou atrás dele, sério.

- Você é meu irmão - ele continuou. - Meu irmão mais velho, mas ainda sim meu irmão. Você já me alertou tanto sobre as garotas as quais eu me relacionava, e eu sempre o escutei. Agora me escute, por favor...

- Nando - Ernesto trincou o maxilar; a voz grave e cortante parecendo congelar o ar a sua volta. - Você não tem filhos.

- Posso não ter filhos, mas tenho um irmão infeliz no casamento e uma cunhada abusiva. - Fernando disse teimosamente. - Você sempre baixou a cabeça para todo mundo. Nossos pais, seus amigos, colegas. Isso te faz um cachorrinho indefeso e submisso.

- O que você quer que eu faça? - Ernesto aumentou o tom de voz. - Virar as costas para meu filho? Enfrentar Sabrina?

- Você não vai virar as costas para Vicente. Você nunca faria isso, mesmo que fosse obrigado. - Fernando não se deixou afetar pela irritação do irmão. Naquele momento, era ele quem parecia o mais velho, e não o contrário. - Você não precisa confrontar Sabrina. Apenas mostre que tem valor e que não é qualquer idiota que encontrou por ai. Só porque você é bem mais novo que ela, não quer dizer que tem que ficar te tratando como um filho desobediente e...

- Fique calado! - Ernesto puxou o colarinho do irmão. Fernando arregalou levemente os olhos, mas continuou encarando o irmão. Se eles saíssem no soco ali, Nando provavelmente ganharia. Mas Ernesto não estava interessado em ganhar nada. Bem que ele merecia um soco.

- Me solte, Ernesto. - o rapaz segurou o punho fino do irmão mais velho. - Ou você nunca mais vai me ver.

- Não se meta na minha vida - Ernesto o soltou, os olhos frios voltando para o vinho sobre a bancada. Seu favorito.

Fernando havia saído da cidade, trazendo um presente para seu filho e comprando seu vinho favorito; tudo para que ele se sentisse um pouco melhor no dia do seu aniversário. E, ainda sim, Ernesto estava sendo um babaca.

Ele poderia se atirar da janela da sala se não fosse tão próxima ao chão.

Ao invés disso, Ernesto foi até o jardim. A grama estava úmida e o sino pendurado na varanda - que provavelmente pertencia à antiga dona da casa - balançava e emitia um som melancólico. Depois de seu surto importuno, ele não esperou que Fernando fosse atrás dele. Ernesto não merecia nenhum consolo naquela hora.

Algum vizinho distante colocara alguma música clássica para tocar. As cigarras berravam e poucas luzes iluminavam o pequeno jardim. Ele poderia se sentir em paz naquela hora se ele não tivesse brigado com o irmão. No fundo, entretanto, ele sabia que Fernando estava certo.

Há tempos não se sentia verdadeiramente em paz. Até mesmo no único lugar que lhe trazia conforto no meio do caos fora tirado dele pela sua esposa - e pela funcionária esquisita que parecia ter algum problema com ele. Era no Café Essência que ele conseguia se concentrar em seu livro e em seus artigos; que estavam cada vez mais mesquinhos. Isso, é claro, quando a garota de óculos não lhe deixava nos nervos.

Ernesto riu. Aquilo era tão ridículo que não parecia real. Por que diabos Sabrina achara que ele estava tendo algo com a funcionária de uma cafeteria? Ernesto gostava de mulheres mais velhas e, se ele não estava enganado, a garota era bem mais nova que ele.

Mas algo nela o intrigava. Ele não sabia exatamente o que, mas havia algo naquela moça desconhecida que não parecia certo. Por isso, às vezes, Ernesto se via observando-a - talvez para tentar entender porque ela tanto olhava - ou porque...bem, ele simplesmente não sabia o motivo de seu interesse para com ela. Contudo, nada tinha a ver com o que Sabrina havia julgado ser. Ernesto nem a conhecia.

Apesar de tudo, o rapaz sentia falta daquele lugar. Do mocaccino. E aquele olhar de cachorro perdido da funcionária esquisita.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top