I - Café Essência
☙ Capítulo I | Folhas de Outono ☙
1 de fevereiro de 2017
Quarta-feira
Evelyn já estava acostumada com o cheiro de pão-assado todas as manhãs, ocupando todos os cômodos do pequeno apartamento que dividia com o irmão e seu mal-humorado gato de estimação. Não era desagradável viver logo acima de uma padaria; porém, sua obsessão por pães diminuiu consideravelmente desde que alugaram aquele lugar. Era cheiro de pães a todo o momento - só perdia, é claro, para o café e todas as suas formas e cores.
A moça, que pela quinta vez consecutiva naquela semana havia tido insônia, bocejou exageradamente conforme saía do banheiro com a toalha amarrada no corpo. O familiar cheiro de café indicava que Augusto já havia acordado há algum tempo. Ao entrar no quarto, observou seu uniforme pendurado na porta do guarda-roupa. Ela enxugou seu rosto molhado e tentava, inutilmente, espantar o sono e a pressão sob seus olhos. Evelyn pegou a blusa limpa e começou desabotoar os botões escuros, perguntando-se porque diabos o uniforme tinha que haver botões.
Ela suspirou e se pôs frente ao espelho preso em seu armário. Prendeu os botões lentamente, alisando o tecido em seu corpo. Acima do peito, um bordado marrom-claro exibia os dizeres Café Essência, estabelecimento o qual Evelyn trabalhava há exatamente um ano. Um pelo branco havia grudado em sua calça também preta, o que era comum quando se tinha um gato que se esfregava e rolava em todos os móveis da casa. Com a palma das mãos, ela bateu em suas próprias coxas e, por último - e antes que se esquecesse - pegou seus óculos retangulares sobre a mesa de cabeceira. Mas é claro que nada daquilo disfarçou suas olheiras e o rosto amarrotado.
- Meu Deus, Eve - ela ouviu a voz de Augusto antes mesmo de poder encará-lo na cozinha para um bom-dia. - Um enxame de abelhas te atacou à noite?
- Cala a boca e bom dia, Augus - Evelyn murmurou, pegando logo uma caneca de café. Ela poderia muito bem tomar seu café-da-manhã na cafeteria, mas havia dois problemas: ela não poderia sair como um zumbi pela rua e não queria que nada fosse descontado no seu salário; que não era nada surpreendente para quem trabalhava um pouco mais de seis horas por dia.
No primeiro gole, Evelyn sentiu sua alma voltar totalmente ao corpo e, por fim, pôde fitar o irmão mais velho a sua frente. Seus cabelos castanhos ondulados cobriam sua testa em um penteado desajeitado. Sua camisa branca e básica já tinha uma mancha estranha próxima ao ombro - ela não sabia exatamente o que era. O irmão trabalhava em um laboratório e fazia o melhor trabalho de todos: analisava fezes alheias e outras amáveis substâncias que eram recolhidas para exames médicos.
- Insônia de novo? - ele perguntou, mordendo um pedaço de pão que provavelmente havia comprado há alguns minutos apenas descendo as escadas.
- Sim. - ela disse, colocando mais leite no café. - E o mesmo sonho todos os dias.
- Hum. E você não pretende me contar que sonho é esse? - Augusto perguntou. Um gato de pelos dourados pulou em seu colo e tentou abocanhar seu pão.
- Eu não sei explicar... - Eve mentiu, observando o gato tentar subir à mesa e derrubar a manteiga. - Oliver! Que gato teimoso.
Augusto agarrou o animal e colocou-o no chão, fazendo-o esbugalhar os olhos cor de âmbar e exibir as unhas.
- Ele faz isso de propósito - o irmão murmurou. - Não se lembra da sua caganeira, seu gato miserável? Venha, pisss pisss, vou lhe dar ração.
- Augusto, eu estou comendo - Eve falou, passando a manteiga em uma torrada. Augusto riu e desapareceu pela área de serviço. Era quase tradição falar sobre coisas nojentas enquanto comiam; entretanto, naquela manhã em particular, Evelyn se sentia um tanto enjoada.
Seria seu primeiro dia de trabalho após as férias em janeiro. Evelyn não considerava o melhor trabalho do mundo, porém, Café Essência era um lugar bastante agradável. Tanto sua chefe quanto seus colegas de trabalho eram pessoas as quais a moça tinha sorte de conviver. Além de tudo, a cafeteria era apenas seis quarteirões de seu apartamento. Ela tinha apenas que seguir em linha reta, descendo a avenida em direção ao seu destino diário. Ela aproveitava, ainda, para caminhar um pouco por baixo do sol às sete e meia da manhã e observar a cidade abrir seus comércios e os alunos chegarem na escola mais próxima.
A cidade não era muito grande, e aquele bairro em específico pertencia à classe média e alta. Desse modo, não era incomum avistar carros de luxo passando pela rua asfaltada e empresários de alto escalão pedindo um caffè macchiato enquanto conversavam entre si ou trabalhavam em seus notebooks. Por esse e outros motivos, a exigência pela organização, a higiene e a postura constantes era o que o gerente mais prezava.
Quando estava de saída, Augusto ofereceu-lhe uma carona. Eve dispensou. Ainda estava bastante adiantada e não via a hora de poder andar um pouco. Férias era algo importante e agradável; mas, quando se vive em um pequeno apartamento com um gato preguiçoso e um irmão vagamente ocioso - e em uma cidade que não havia muito o que fazer - era de se esperar que o tédio se instalasse logo na primeira semana. Então, ela se limitava a maratonar séries na Netflix e observar a monotonia de seu bairro pela pequena varanda da sala.
Apesar de não haver muitas coisas de fato interessantes em seus dias desde que se mudaram para aquela cidade, há alguns anos, Eve não era infeliz. Ela tinha um emprego que ajudava nas contas e em sua faculdade - cujas aulas eram à noite. Lidava super bem com seu irmão e seus colegas. E ainda havia Oliver que, apesar achar-se o proprietário daquela enorme caixa com paredes, dava ao seu dia um entusiasmo a mais - além de alguns pelos dourados e brancos.
Ela não esperava muitas coisas da vida. É claro que tinha sonhos e metas a serem cumpridas - mas era tudo muito distante. Eve preferia viver sem esperar nada de algo ou de alguém.
São nessas horas que ela era surpreendida por algo; geralmente bastante agradável. No ano anterior, especificamente, ela pensou sobre essas coisas. E, de repente, questionou-se porque parecia tudo tão sem graça e enfadonho. Ela já estava acostumada a acordar de segunda à sábado para trabalhar. Estudava à noite, em casa, fazendo faculdade a distância. Eram sempre as mesmas pessoas nas ruas, os mesmos programas na televisão - não que ela assistisse muita tevê.
Ela era grata por tudo o que tinha, mas às vezes era tudo tão estável que ela se perguntava quando é que poderia se surpreender. Algo que poderia tirá-la daquela rotina, causar-lhe euforia, fazê-la levantar da cama com mais fervor. Por isso, ela desejou que aquele ano fosse diferente. Quem sabe poderia recomeçar suas aulas de violino; que havia parado por causa do dinheiro. Ou, quem sabe, ganharia uma rifa de um dos eventos da cidade.
Porém, até aquele momento, nada havia mudado. Até as malditas pombas cinzentas que rondavam a pequena e velha praça, que cortava duas ruas acima da cafeteria, pareciam as mesmas.
Eve parou no meio da praça vazia (com exceção dos pombos) e observou Rael organizar as cadeiras e mesas na varanda do Café Essência. Ele usava um avental branco, cobrindo boa parte do uniforme por baixo. Seus cabelos negros estavam presos em um rabo-de-cavalo baixo que batia quase em seu traseiro. Eve acenou para o rapaz, que abriu-lhe um sorriso de boas vindas. A seguir, levou a mão direita cerrada ao peito e fez um pequeno movimento circular. Eve não compreendia muito bem a língua de sinais, mas ela entendeu aquele gesto de imediato: SAUDADE. Sorrindo, a moça fez o mesmo movimento e seguiu em direção à entrada dos funcionários.
Lucas, o gerente, esperava-lhe à porta com os braços cruzados. Ele era um rapaz alguns anos mais velho que ela, mas já ocupava uma posição bastante elevada no estabelecimento. É claro, ele tinha o privilégio de ser sobrinho da dona da cafeteria - que, se Evelyn se arrisca a dizer, era uma das mulheres mais bem-sucedidas da cidade.
- Dez minutos atrasada, senhorita Evelyn Torinno. - o rapaz disse quando ela se aproximou.
Eve sentiu as bochechas esquentarem de vergonha. Pegou rapidamente seu celular na pequena bolsa transversal. Mas, antes que pudesse olhar as horas, Lucas soltou uma risada e desfez a expressão séria.
- Estou brincando! Você está dez minutos adiantada. - ele disse com um sorriso. Seu cabelo black estava ainda mais crescido e, surpreendentemente, o rapaz estava ainda mais bonito que meses atrás. Seus olhos gentis analisavam Eve enquanto ela se recompunha do susto.
- Meu Deus, Lucas. Não faça mais isso. Você sabe que eu odeio chegar atrasada. - ela disse, passando pela porta e adentrando a cafeteria.
Lucas ergueu as mãos em rendição. Depois, ajeitou a pequena placa de metal torta de seu peito.
- Seja bem-vinda de volta. Coloquei seu novo avental em seu armário. - ele disse. - Espero que não tenha perdido o cadeado. Como passou as férias?
- Nada muito empolgante. Mas, hum, foi bom - ela desceu três degraus e foi em direção aos escaninhos. Havia uma sacola parda ali. Lucas apoiou-se na parede sobre o primeiro degrau e ergueu as sobrancelhas, observando-a.
- Acho que você se divertia mais quando tinha o melhor namorado do mundo - ele disse, passando a mão na lateral do cabelo e alisando a própria roupa. Seu tom era bem-humorado, o que deixou Eve bastante confortável. Era ótimo que eles se dessem tão bem apesar de tudo. Lucas fora seu primeiro namorado e, apesar de não chegarem a comemorar um ano de relacionamento, fora saudável e divertido. Era um rapaz inteligente e responsável. Embora se mostrasse ser bem extrovertido, ele era bastante sério quando se tratava de seu trabalho. Não admitia falhas ou atrasos constantes.
- Tenho que admitir que sair com você era mesmo bastante divertido - ela disse, colocando o avental novo e ajeitando os óculos no rosto. - Mas, agora, prefiro ficar no meu quarto assistindo a uma série com muito sangue e tiro.
- Isso é com certeza muito mais a sua cara - Lucas murmurou. - Bem, tenho que ir trabalhar. Qualquer problema com algum bêbado querendo cerveja nesse lugar, por favor, me chame.
Eve riu com humor e piscou para o gerente e ex-namorado.
- Pode deixar, chefe. - ela falou.
Enquanto colocava suas coisas no armário, a moça lembrou-se de uma tarde julho do ano interior. Um homem claramente bêbado de meia-idade entrou cambaleante na cafeteria e pediu um copo de vodka. Nicole, abordando o homem da forma mais gentil possível, disse-lhe que ali não vendiam bebidas alcoólicas. Não havia muito tempo em que, naquele exato lugar onde estava o Café Essência, encontrava-se um bar velho e fedido. A reforma e a substituição de um bar para uma cafeteria agradou muita gente - menos os viciados em cervejas e jogos de futebol aos domingos.
O homem insistiu tanto que começou a assustar os clientes. Acima do suave som do jazz que tocava baixo pelas caixas de som, a voz grave e alterada começou a perturbar a todos. E então, Lucas apareceu e enxotou o homem, ameaçando a chamar a polícia.
Desde então, o lamentável evento tornou-se uma piada interna entre os funcionários.
Eve fechou a porta de metal e saiu da área dos funcionários. O cheiro doce de café e salgados sendo assados ocupou suas narinas, e o débil som de piano e violão preenchia o ambiente elegante e rústico.
Nada mudara. Mas ela havia sentido falta de tudo aquilo.
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