Raízes que se entrelaçam
VIOLET ESTÁ EXIBINDO aquele seu familiar quê de riso banhado em malícia do qual não gosto nem um pouco.
- Você não perde tempo mesmo, não é? - ela ri, cheia de si.
É claro que eu teria que encontrá-la. Justamente ela, dentre todas as pessoas. Minha vida só pode ser algum tipo de piada suja.
- Por que você não vai procurar algo útil para fazer nessa sua existência rastejante? Começando por sair da minha frente? - digo, esbarrando no ombro dela com força o bastante para fazê-la vacilar alguns passos para trás.
Um tom vermelho escuro de raiva tinge sua face e antes mesmo que ela tente, prevejo seu ataque.
- Sua pirralha ridícula... - Violet não chega nem perto de encostar em mim antes que eu segure sua mão, interceptando-a no ato.
- Cale a boca. - ordeno entredentes, apertando seus dedos de uma maneira especialmente dolorosa que aprendi no exército. - Eu já aguentei o bastante de você. Talvez ache que tem alguma imunidade por ser a líder das cobras peçonhentas da minha mãe ou por poder sair andando por aí com tanta arrogância quanto uma rainha, mas saiba que está enganada. Sua autoridade aqui é tão mínima que, se eu quisesse, poderia acabar com você com minhas próprias mãos agora mesmo. Então pare de ficar no meu caminho de uma vez por todas antes que eu perca o único fiapo de paciência que me resta para aguentar a sua estupidez. - declaro, e então solto seu braço com força, deixando-a de lado chiando e com uma carranca de dor segurando a própria mão.
Sei que ela ficará na dela por enquanto, mas também sei que não durará muito tempo. Felizmente ou não, essa é a última coisa na minha lista de preocupações.
Atravesso o corredor e viro depressa à direita, tomando o caminho mais curto para o meu quarto. O dia todo foi um grande fiasco e sei que não irei pregar o olho durante a noite, mas preciso com urgência de um momento sozinha. Um momento para recompor a mim e a meus pensamentos e deixá-los firmes o bastante para recomeçar amanhã.
Um momento para me sentir no controle.
Abro e fecho a porta de meu quarto em um só movimento, adentrando pelo cômodo no qual sempre fora minha prisão pessoal. Levem-na para o quarto, mamãe dizia sempre que eu fazia algo com que ela não soubesse lidar. Levem-na para seus aposentos na Torre Leste.
Trancada. Aprisionada. Uma tempestade contida. Ela sempre achou que me largar em um espaço vazio e jogar a chave fora fosse o bastante para me manter longe de problemas.
Me manter longe de problemas.
Massageio as têmporas com ambas as mãos, caminhando de uma ponta do quarto a outra, pensando. Pensando e pensando e pensando.
Uma irmã deveria se sacrificar para que a outra descobrisse a verdade sobre si mesma. Tinha sido isso que Carmela dissera.
Eu não acreditara na veracidade de nada daquilo, mas se, se fosse o caso, qual seria a verdade a se descobrir a meu respeito? E o que Khalled, que não possuía absolutamente nada em comum comigo - até mesmo o fato de ser um Comandante, já que nem ao menos disso eu ainda podia ser chamada - poderia ter a ver com toda essa trama amaldiçoada e de detalhes duvidosos? E que história absurda era aquela de guardião?
Era fato de que ele havia salvado a minha vida e eu reconhecia aquilo. Eu podia contar nos dedos quantas pessoas se arriscariam por minha causa, e ele o havia feito sem nem me conhecer direito. Duas vezes, se contasse com quando nos conhecemos no meio da estrada, em que eu havia desmaiado e caído do cavalo. Desde o primeiro segundo, ele foi em meu auxílio, mesmo quando não mereci.
Mas isso não significava nada, não é? Coincidências estão por aí o tempo todo. Só aconteceu de ele estar lá quando precisei.
Exceto uma vez.
Uma irmã deveria se sacrificar para que a outra descobrisse a verdade sobre si mesma.
- Não, não, não. - sussurrei, tentando forçar as palavras a silenciarem qualquer outro pensamento que dissesse o contrário. Eu estava me deixando levar rápido demais. A linha de raciocínio que começava a surgir em minha mente não fazia o menor sentido, mas ainda assim... E se a morte de Angeline tivesse sido algum tipo de divisor de águas que tivesse alterado o meu destino e o de Khalled?
Soltei pela boca o ar que nem percebi que estava segurando. Eu não podia acreditar em mim. Tinha chegado a um nível de desespero tão grande que estava a um ponto de realmente acreditar em sina e caminhos interligados e seja lá o que era tudo aquilo. Mas eu obviamente estou me precipitando. Como o próprio príncipe de Asgoldien dissera, eu não tinha ouvido tudo o que a cigana queria dizer. E certamente não estava disposta a voltar à casa dela tão cedo depois do que já havia acontecido. Portanto, decidi que amanhã, com meu senso calculista organizado e cabeça mais fria, juntaria o pouco orgulho que ainda possuía para voltar atrás em tudo o que dissera e pedir uma explicação a Khalled.
Era a única forma de encontrar uma maneira de soltar os enormes dedos que ameaçavam se fechar ao redor da minha garganta.
⚔️
Foi fácil destinguir a silhueta de Khalled surgindo em meio ao campo de treinamento mesmo quando ainda estava a metros de distância. Ninguém que eu conhecesse chegava perto de ser nem de longe tão grande e alto quanto ele.
O sol mal tinha despontado no horizonte e o ar estava gelado e coberto por uma fina névoa - o que era bom, já que eu não pretendia que fôssemos descobertos. Na noite passada, eu havia voltado até o corredor onde o quarto de Khalled ficava e passara um bilhete informando hora e lugar debaixo de sua porta.
E mesmo sem ter recebido nenhuma resposta, sabia que ele estaria aqui.
- Achei que quisesse que eu fosse embora. - ele me cumprimentou, entrando no que costumava ser meu gabinete pessoal como comandante da Destruição, sua voz rouca provocando pequenos arrepios pela minha espinha.
- Eu ainda quero - digo, erguendo o olhar para o dele bem a tempo de vê-lo estreitando os olhos para mim. - Mas preciso saber de algumas coisas primeiro.
Há silêncio por um momento, até o príncipe dar uma risada baixa. O som faz cócegas em meus ouvidos, o que me irrita, porque não estou tentando ser engraçada.
Ele não demora a perceber o meu descontentamento.
- Perdão, Esther. A sua franqueza ainda é algo perturbador para mim - sacode a cabeça, olhando em volta. - Esse lugar é seu?
- Costumava ser - respondo. - Mas
isso não vem ao caso. Preciso que você me diga o que Carmela te falou enquanto eu estava inconsciente.
- Por quê? - ele questiona, franzindo a testa, as mãos ocultas nos bolsos do sobretudo preto que está usando essa manhã. - Você deixou bem claro que não acredita em nada. Pra que perder tempo?
- É, você tem razão. - devolvo, juntando as mãos sobre a mesa que nos separa. - Mas tenho o direito de saber. Aquela mulher falou coisas sobre a minha irmã. E tudo o que envolve Angeline, eu acredite nelas ou não, me interessa.
Khalled balança a cabeça devagar e de maneira quase imperceptível, como se ponderando sobre o assunto, causando um suspense do qual realmente não preciso.
- E então...?
- A resposta é não. - ele diz, grave e resoluto. - Tenho feito tudo o que você quer e você só me retribui com desdém e piadas de mau gosto. O que importa é sempre o que te convém. Você não liga se quero descobrir o motivo de eu aparentemente ser o seu guardião em uma missão da qual você ainda não sabe que faz parte ou em como me sinto em relação a isso. Porque o mundo todo gira ao seu redor, não é? Maria Esther, o mártir. - engulo em seco sem saber o que responder, porque ele está certo. Khalled passa a mão pelo rosto, seus olhos prendendo os meus com firmeza quando diz: - Eu sei que você sofreu e sei que ainda está sofrendo, mas saia dessa. Você tem que superar. Dez anos já se passaram e você se afunda mais e mais no luto. Chega. Não puna ainda mais a si mesma quando você não tem culpa. Você ouviu isso, Esther? Você não tem culpa.
- E o que você quer que eu faça? - indago, a voz trêmula, sabendo que estou a um segundo de começar a gritar. Um segundo se passa. Estou gritando. - O que você sugere que eu faça?!
- Que me deixe ajudá-la. - ele diz, contornando a mesa até mim, o espaço entre nós dimunindo drasticamente. - Que pare de tentar me afastar por causa desses escudos estúpidos que levantou ao redor de si mesma.
- Mas eu tenho medo. - deixo escapar, e então acho que vou morrer. Algo despencou dentro de mim e a queda é longa demais para que eu me permita parar agora. - Eu tenho muito, muito, muito medo. Não quero que você entre na minha vida achando que pode me salvar e acabe se machucando por isso. Porque você vai se machucar, Khalled. Eu estou tentando alertá-lo antes que seja tarde demais, por isso, por favor...
- Já é tarde demais. - ele emite, segurando meu rosto. Seus dedos são quentes contra a minha pele e cubro as costas de suas mãos com as palmas das minhas.
Por um momento, tudo o que ouvimos é o som de nossa própria respiração, ele ainda perto, tão dolorosamente perto que nossos narizes roçam um no outro.
- Você vai me deixar ajudá-la? - ele pergunta, em um murmúrio.
Minha mão treme contra a sua, mas balanço a cabeça.
- Sim. - anuncio, sentindo as lágrimas despontarem sob meus cílios. - Vou deixar.
O homem a minha frente inspira, encostando a testa na minha. Meu coração pulsa, infrene dentro de mim como se liberto da responsabilidade de carregar uma tonelada pela primeira vez em séculos.
- Obrigada. - Khalled ecoa, seu tom de voz tomado pelo alívio.
Talvez ele nunca vá saber que de nós dois, a mais grata fui eu.
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