O Terror que Assola o Reino Prateado
O TEMPO SEMPRE FORA frio em Arasdil, mas o inverno era uma época realmente tenebrosa. O vento gelado chicoteava o rosto de todos os habitantes do Reino, penetrando em seus ossos e resfriando suas almas e corações. As pessoas se tornavam duras durante aquele tempo, porque era sempre esta estação o alvo da maldição. O povo daquele reino temia amargamente pela besta da Floresta Negra, pela sua fome e sede de sangue, levando tudo e todos em seu caminho, mas principalmente as crianças. Fassor, aquele nome amaldiçoado, parecia gostar do sofrimento de suas vítimas, porém apreciava muito mais o ato de causar sofrimento nas pessoas ligadas à elas.
Era inverno, afinal, e o tempo de Arasdil parecia ser quase sempre o mesmo. Mas naquele dia, o amanhecer trouxe à tona não uma manhã gélida, cinzenta e úmida, mas cálida, colorida e inebriante. Os governantes se alegraram, achando que aquele poderia ser um sinal dos deuses de que talvez a família Arasdilany finalmente se veria livre da maldição que assombrara a eles e a seu povo por um milênio. A notícia se espalhou, a esperança cresceu e todo o reino entrou em êxtase de tanta felicidade. Mais dias ensolarados vieram, e em um desses dias, as princesas gêmeas Angeline e Esther colocaram seus vestidos floridos mais festivos e saíram para brincar de esconde-esconde no Jardim Real, um lugar quase mágico de tão belo. Borboletas, pássaros e vários outros animais passeavam livremente por ali, fazendo bagunça na grama verde bem cortada, correndo para debaixo dos bancos de prata espalhados pelo lugar. Várias árvores se exibiam pelo Jardim, cinco delas todas ligadas por uma grande construção, a Casa Real da Árvore, o refúgio das duas irmãs.
Apesar de serem gêmeas, havia uma cicatriz no ombro de uma delas que as diferenciava: Esther possuía uma marca de estrela na pele, ao passo que Angeline, a futura rainha, exibia o ombro nu. Os belos cabelos castanhos eram os mesmos, os olhos violetas com pontinhos de luz, semelhante às estrelas, nos olhos de ambas. O sorriso era parecido, porém o de Angeline sempre fora mais largo, mais alegre e iluminado. O sorriso da caçula Esther era mais contido, pequeno, quase sempre sem mostrar os dentes. Eram irmãs, unidas pelo amor, pelo sangue e pela realeza, mas era nítida a diferença entre as duas: uma seria rainha, a outra; não.
- Você conta. - Angeline disse para a irmã mais nova, que estava de braços cruzados e cara amarrada.
- Mas isso é injusto, Angel. - Esther refutou, batendo o pé, sujando o sapato branco de cetim antes impecável, de terra. - Eu sempre conto, mas você é mais velha. Você deveria contar. O esconde-esconde nunca fica divertido para mim porque fico o tempo todo procurando você que nem uma tonta!
Angeline deu uma risadinha, revirando os olhos.
- Tudo bem, tudo bem. Eu vou contar desta vez, para que o esconde-esconde fique divertido para nós duas, estrelinha. - disse, apertando o nariz de Esther, que se desvencilhou, abaixando a cabeça para esconder o sorrisinho.
- Você sabe que não gosto que me chame assim, não sou mais bebezinha. - reclamou. Mas no fundo ela gostava. Gostava porque era sua irmã, e elas eram melhores amigas, nada que uma fizesse poderia chatear a outra; pelo menos não de verdade.
- Sou sua irmã mais velha. - esclareceu Angeline, como se fosse cinco anos mais velha que Esther, não apenas 5 minutos. - Você sempre vai ser bebezinha para mim.
Esther fez uma careta de desgosto.
- Podemos começar a brincar?! - mudou de assunto, porque sabia que se Angelina fizesse mais um comentário que fosse sobre ela ser mais nova, acabaria trazendo à tona uma das explosões de temperamento dela, as quais já haviam sido repreendidas diversas vezes pelos tutores, criadas e pais de ambas.
- É claro. - a primogênita concordou, com um de seus sorrisos radiantes. - Eu vou iniciar a contagem no tronco da maior árvore, aquela lá, onde se concentra a Casa Real. - falou, apontando para o imenso carvalho que sustentava grande parte da casa da árvore.
A mais nova cruzou os braços.
- Quero que conte até cem, do mesmo jeito que eu contava. - Esther se posicionou.
Angelina arregalou os olhos, os pontinhos de luz entre o violeta de suas íris parecendo aumentar de tamanho.
- Até cem?! Mas vou passar uma eternidade contando! - reclamou.
- Por isso mesmo. - Esther deu um sorrisinho.
- Que tal um minuto? - tentou a outra.
O rosto de Esther começava a ficar vermelho de frustração.
- COMO VOCÊ É CHATA! - gritou. - É ATÉ CEM E PRONTO!
- Ai, calma, não fica nervosa. - Angelina ergueu as mãos em sinal de rendição. - Vou contar até cem.
Observando sua irmã se encaminhar até a árvore, Esther saiu correndo para se esconder a passos silenciosos, - tomando o cuidado de esperar sua irmã começar a contagem, é claro. Afinal, não trapacearia, não com Angelina. Mas isso não queria dizer que ela não trapaceava com os outros; talvez Esther fosse astuta demais até para o próprio bem. Se irritava fácil, fácil, e apesar de não se considerar uma pessoa vingativa (pelo menos não na maior parte das vezes), ela não costumava perdoar.
Que ótimo esconderijo!, pensou, indo em direção ao banco de prata no canto do jardim, quase encoberto pelas folhas ainda não aparadas das paredes altas do labirinto de grama que cercavam o perímetro do lugar. Com esta cobertura, Angelina vai demorar muito mais tempo para me encontrar, e talvez nem encontre e perca a brincadeira!, continuou, animada como só uma criança de nove anos podia ficar de uma hora para a outra.
Esther tratou de se enfiar debaixo do banco de prata o mais rápido possível, tomando o cuidado de estar o mais encoberta que pudesse pela vegetação. Eram raras as vezes em que Angeline ficava com a parte chata da brincadeira e Esther queria aproveitar uma das poucas vezes em que ela ficara com a parte divertida. Assim que se escondeu, uma vontade incontrolável de rir a tomou e ela cobriu a boca com as mãos para que não acabasse denunciando a si mesma com o som.
Muitos minutos passaram e Esther não tinha nem sequer ouvido sua irmã declarar que a contagem havia terminado. Mas a princesa estava cansada. Talvez tivesse tirado um mini-cochilo na hora em que sua irmã a chamou e Angeline certamente deveria estar agora procurando-a por todo o Jardim Real, o que tiraria muito de seu tempo.
Esther resolveu relaxar, afinal, não era culpa sua se tinha se escondido tão bem que Angeline não tinha conseguido encontrá-la. Na verdade, era esse o objetivo da brincadeira das duas. Seus olhos estavam ficando pesados, e ela achou que não teria problema tirar uma soneca enquanto sua irmã a procurava, tendo um sonho embaçado e turvo, onde Angeline gritava o nome dela sem parar.
Estava escuro quando Esther acordou ao som de gritos desesperados pelo seu nome. Oh, Deus. Será que dormi tanto que anoiteceu e Angeline não conseguiu me encontrar? Devem estar muito preocupados atrás de mim, pensou, enquanto se arrastava pela grama para sair debaixo do banco de prata no qual havia se refugiado, sentindo o vento gelado costumeiro lhe atingir em cheio no rosto, muito diferente do ar ensolarado que havia durante aquela tarde.
- Maria Esther! Maria Esther! - gritava a Rainha Keyse, em prantos. Vários guardas estavam fazendo escolta ao seu redor, gritando o nome da princesa juntamente com sua soberana. O Rei Marcus estava tão em choque que não tinha mais voz para gritar.
- Mamãe! Papai! - Esther bradou, correndo por entre os guardas no Jardim. - Estou aqui!
- Princesa... - o Capitão da Guarda, Darren Loeztern, sussurrara quando Esther passara correndo por ele em direção à mãe. O Capitão estava com as mãos sobre os ombros de seu filho mais velho, Kevin, que observava tudo o que acontecia a sua frente com olhos arregalados.
- Oh! Maria Esther! - a Rainha soltou um suspiro aliviado, permitindo que o restante das lágrimas que estava segurando escorressem pelo seu rosto quando se ajoelhou para abraçar sua filha. - Minha querida, querida...
- Onde está Angeline? - a princesa indagou. Foi quando a Rainha se deixou desmoronar por completo, abraçando-a mais forte contra o peito.
Ela não deveria ter confiado tanto na trégua da maldição. Nunca deveria ter concedido permissão para que as meninas brincassem sem supervisão no Jardim Real. Fora uma mãe tola e descuidada e burra. E ao lembrar da cena terrível do cadáver estraçalhado de Angeline... A dor era tão grande que ameaçava matá-la de dentro para fora.
- Mamãe? - Esther murmurou, assustada.
- Shhh. - disse a Rainha, alisando os cabelos de sua filha. - Vai ficar tudo bem, meu amor. Eu juro. - em seguida olhou para o Capitão Darren, ordenando: - Você e dez de seus homens vão levar minha filha até seus aposentos na Torre Leste do Castelo. Deixe como vigia os melhores de seus soldados; ninguém entra nem sai. Está me ouvindo?
- Sim, Vossa Majestade. - Darren assentiu, fazendo uma reverência. A Rainha abraçou Esther mais uma vez antes de entregá-la ao Capitão, que já deixara Kevin sob o cuidado de homens de confiança.
- Mas e Angeline? - Esther perguntou mais uma vez, seu tom de voz confuso se transformando em um franzido de testa.
- Vai ficar tudo bem. - sua mãe repetiu, o choro entalado na garganta.
Mas não ficou tudo bem.
Dois dias inteiros se passaram antes que Esther soubesse da morte de sua irmã. Choque não foi a palavra certa para o que ela sentira; aquilo era muito maior e mais intenso. Era dor, pura e cruel e a partia por inteiro. Sua irmã estava morta. Sua alma gêmea. Sua metade. Sua melhor amiga e confidente de todas as horas. E saber que poderia tê-la ajudado, tê-la salvado ou até mesmo morrido com ela era o que mais doía.
Esther não fizera nada. Literalmente a abandonara, afastando seus gritos para dentro de um sonho. No único momento em que Angeline precisou dela, Esther falhara. Como pudera? Como pudera ser tão fraca e covarde com a própria irmã? Como?
Ela merecia aquilo. Merecia a Dor. Merecia a tristeza que parecia consumi-la e devorar qualquer resquício de lembranças felizes em sua alma. Não valia a pena viver sem Angeline. Quem era Esther sem Angeline? Nada. Nada.
Nada.
No dia do enterro de sua irmã, havia tanta gente ao redor que Esther quase sufocara. A multidão estava inteiramente vestida de preto, o luto pela princesa, - mais uma vítima perdida para a besta da Floresta Negra, - estampado na face de cada um. E ao pensar na besta, naquele ser amaldiçoado que matara a sua irmã e tantas outras crianças, destruira famílias e quebrara seu coração, um sentimento obscuro tomou conta de Esther.
Era vingança.
Ela iria cobrar a vida de sua irmã. Iria derramar quanto sangue fosse preciso para vingá-la. Seria uma arma letal, forjada e treinada para destruir. Esse seria seu destino por toda a sua vida.
Mataria Fassor, e nada - nem ninguém - a impediria.
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