O Tabuleiro não para de girar
KHALLED HAVIA FINALMENTE tomado um banho decente, agora que tinha se hospedado em uma pousada simpática próxima do imenso Castelo da família Arasdilany. Apesar de odiar dormir em lugares onde pessoas desconhecidas já estiveram - fazendo seja lá o que - ele tinha que admitir que o lugar era confortável e bem melhor do que a estrada, onde estava sujeito à ataques de ladras esquisitas que dormem no meio das ruas.
E a propósito, meu nome é Esther.
E era tão arrogante! O modo como falara, como agira... Aquela menina não era uma ladra comum - isto é, se de fato fosse uma ladra, o que ele duvidava muito. O tom de voz dela possuía um quê de autoridade, de imponência; um tom de voz que estava acostumado a dar ordens. Além do uniforme de couro que ela estava usando, feito especialmente para alguns dos soldados de patente mais alta no Exército - o próprio Khalled possuía um.
E ainda tinha levado o cavalo dele.
O Comandante passou as mãos pelos cabelos molhados, irritado. Ele teve que caminhar durante horas para chegar até a cidade, tudo culpa daquela doida varrida. Esse era mais um fator que deixava claro que a garota não era ladra em todo o sentido da palavra: não ter levado o dinheiro dele, apenas o cavalo, como se fosse o único jeito para que ela voltasse para casa. Todo o resto que estava levando (ouro, espada, adagas, mantimentos e algumas mudas de roupa) tinha sido deixado com ele.
Enxugando as gotículas de água que insistiam em escorrer pelo seu abdômen, Khalled pensou que deveria estar arrependido de ter parado para ajudar a garota quando a encontrou desacordada no meio da estrada, mas o que ele sentia não estava nem perto disso. Ao contrário, ele tinha um grande desejo de vê-la de novo. Talvez em uma situação na qual ela não estivesse tão na defensiva, nem tentando matá-lo.
Esther.
Quem sabe.
DEPOIS DE QUASE PERDER o braço treinando minha pontaria no arco e flecha, eu tinha decidido que a melhor forma de descobrir o que minha mãe estava tramando era entrar no jogo dela. Se era de sua vontade que eu me comportasse como uma princesa, seria exatamente o que eu faria. De qualquer forma, não teria que abrir mão de muita coisa, já que o meu posto como Comandante pertencia ao Logan agora.
Sacudi a cabeça, tentando não cerrar os punhos.
Pensar nele era como catucar uma rachadura na parede: quanto mais eu fazia, mais o sentimento de traição crescia dentro de mim. Eu confiara nele. Tínhamos planos de nos casar e num piscar de olhos, não éramos nada além de estranhos separados por títulos impostos pela corte e pela minha família.
Não que eu me importasse com isso depois de tudo.
— Maria Esther, preciso conversar com você. — uma voz masculina grossa e arranhada - ao menos era essa a sensação que eu tinha toda vez que a ouvia - indagou atrás de mim.
Não precisei me virar para saber que se tratava do General Loeztern.
O homem que fora responsável pelo meu treinamento durante anos era robusto e possuía um rosto incrivelmente enrugado. Não tinha cabelo, mas o grande bigode negro que era sua marca registrada com certeza compensava essa carência. Era o braço direito de minha mãe e um teste diário para minha paciência. Na maioria das vezes eu conseguia evitá-lo, mas infelizmente hoje eu não tinha dado sorte.
— Maria Esther. — ele repetiu, mas eu não parei de caminhar.
— É "Vossa Alteza". — eu o corrigi, sem me dar nem ao trabalho de encará-lo. — Além disso, não vejo o que você teria para dizer que poderia me interessar pelo menos o bastante para que eu perdesse meu tempo escutando-o.
O General respirou fundo, visivelmente irritado pela maneira como eu estava falando com ele.
— É sobre a Destruição.
Me virei imediatamente.
— O que tem minha Legião? - perguntei, preparada para tudo. — Algum homem está machucado? Eles precisam de armaduras novas? Querem testar o novo plano de ataque no qual eu estava trabalhando antes de irem à Hawye?
O homem negou com a cabeça.
— Na verdade, é algo bem mais simples que isso. — ele disse, retirando com cuidado as luvas de couro que estava usando. — Apesar de ser um ótimo soldado, o Imediato Priestly não está acostumado a conduzir um Exército. Mas Kevin está, e há mais tempo até mesmo que você. — ele continuou, estalando a língua. — Penso que é ilógico que o comando da Destruição não tenha ficado com ele.
Pisquei algumas vezes, tentando associar tudo o que eu tinha acabado de ouvir. A minha primeira reação foi ficar em silêncio.
Só para então poder gargalhar. Foi um som oco; quebrado e totalmente desprovido de humor. O General possuía uma expressão de estranheza no rosto velho, talvez por nunca ter me ouvido rir.
Não que fosse um som comum para qualquer um que me conhecesse.
— Eu não me importo se é Logan ou Kevin quem tem mais experiência. Não me importo até mesmo com qual dos dois vai assumir a frente da minha Legião. — eu disse, friamente. — A certeza que posso lhe dar é de que o seu filho é bastante competente no que faz e sinceramente, acho que ele teria vergonha de ver o pai tentando fazer com ele suba de cargo pedindo favor. Eu certamente tenho. Não só vergonha, como pena.
Estava pronta para encerrar o assunto e seguir meu caminho quando ele agarrou meu braço, seus longos dedos gordos e gelados provocando uma sensação asquerosa ao entrar em contato com a minha pele.
— Você vai se arrepender de não me ajudar. — declarou, entredentes. — Sou uma pessoa a quem deve querer como aliado, não como inimigo.
Olhei bem fundo nos olhos castanhos do homem velho a minha frente. E então cuspi na cara dele.
— Eu sou a princesa de Arasdil. —falei, o título queimando em minha boca. — É você quem deve me querer como aliada. E sugiro que não me ameace mais, ou da próxima vez haverá consequências.
Desvencilhei meu braço de suas mãos, lhe dando as costas. Que homenzinho detestável, pensei, enquanto andava a passos largos até virar no corredor seguinte.
— Vossa Alteza. — me saudou Violet, a chefe das cobras-damas de companhia de minha mãe. — É uma surpresa vê-la nessa área do Castelo a esta hora do dia.
Olhei-a de cima a baixo, deixando claro o meu descaso.
— Me escute bem, não há porquê fingir cordialidade comigo. — eu disse, indo direto ao ponto. — Tenho plena consciência de que foi você quem espalhou o boato de que a princesa herdeira do trono era uma vagabunda que se deitava com o filho do mensageiro nos estábulos. — Violet continuou em silêncio, me encarando com falsa inocência. — Você não me engana. Sei muito bem de que laia você é, sua víbora. — dei um passo na direção dela, sorrindo abertamente. — O que você não sabe, é que está em um ninho de cobras no qual eu uso uma coroa lapidada de veneno e cristal.
A mulher deu uma risadinha.
— Você se acha tão perigosa. — ela desdenhou, enrolando um fio de cabelo ruivo entre os dedos. — Eu estou muito bem situada, aliás, obrigada pela preocupação. A questão que paira entre nós é se você sabe onde pisa. Maria Esther Arasdilany está acostumada a jogar com armaduras e espadas. — disse, me circundando. — Se está mesmo disposta a fazer parte da corte, terá que ter mais atributos do que apenas uma coroa sobre a cabeça. Terá que aprender a controlar a sua língua.
Me mantive calada, mordendo o interior de minha boca para não responder a petulância daquela mulherzinha odiosa.
— Agora se me der licença, Alteza, Vossa Majestade requisita minha presença. — então retomou o seu tranquilo caminhar pelo corredor, como se nada tivesse acontecido.
Apesar de estar me contendo para não ir atrás de Violet e arrastá-la pelos cabelos até a porta de saída do Castelo, tive que engolir o meu orgulho e admitir que em uma coisa ela tinha razão: se eu quisesse ser verdadeiramente inserida na corte arasdilana, teria que abrir mão do meu jeito de ser e começar a dançar conforme a música.
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