O Destino de Asgoldien
KHALLED APRENDERA DESDE cedo que cada um tinha o seu lugar no mundo. Nascido de uma relação ilegítima, ele sabia que ser um bastardo era algo que o tornava desonrado aos olhos dos nobres e que deveria ser motivo de vergonha, mas sua mãe sempre lhe ensinara a não dar atenção às coisas maldosas que ele ouvisse. E Khalled levava muito a sério tudo que sua mãe lhe dizia, pois ela era a pessoa que ele mais amava no mundo e a opinião dela era a única que importava de verdade.
Com ele as coisas sempre foram muito simples; tudo era questão de escolha.
Ele podia escolher se esconder das pessoas e sentir pena de si mesmo, ou aproveitar o fato de receber as melhores oportunidades, oportunidades com as quais ele nunca poderia sequer sonhar, - se a sua mãe não houvesse engravidado do Rei.
Seu pai era um homem rígido e de poucas palavras, porém sempre fora bom com ele. Foi criado como um príncipe em todo o sentido da palavra, morando no Castelo Real de Asgoldien e tendo aulas com os melhores tutores do Reino. Mas seu pai queria mais do que um filho inteligente: queria um filho que fosse guerreiro.
Foi em uma manhã chuvosa de outono, quando Khalled tinha seis anos. Ele estava no campo de treinamento dos soldados, observando os homens lutando entre si com tudo o que tinham, a chuva se derrubando impiedosamente sobre eles, que mesmo assim não pareciam estar cientes de nada ao seu redor que não fosse a batalha que estava sendo travada.
E então uma grande mão tocou o seu ombro, apertando-o levemente.
— Eu vejo o seu futuro. — o Rei lhe dissera, em tom grave. — E você será o maior Comandante que Asgoldien já viu.
E naquele momento, Khalled pensara que se seu pai queria que ele aprendesse a lutar, não haveria mal algum, afinal, não deveria ser tão ruim.
O que ele não imaginava era que a melhor sensação de sua vida lhe seria proporcionada ao manejar uma espada pela primeira vez.
E foi essa a primeira lembrança que viera a sua mente quando ele tivera a notícia de que seu pai havia morrido.
Khalled não conseguia entender: o Rei era um homem forte. Não era tão velho nem estava doente. Era a própria imagem da saúde quando ele e seu grupo de soldados de Elite deixaram Asgoldien seis meses atrás, a procura de aventuras em outros reinos, se passando por homens comuns e não soldados asgoldinianos, a fim de arranjarem confusão. E eles arranjaram. No primeiro dia, sofreram uma tentativa de assalto.
Mas é claro que os ladrões não sabiam com quem estavam se metendo.
Asgoldien era conhecido como Reino dos Soldados de Ouro por um motivo: todo o seu Exército era composto pelos melhores. Não havia soldados bons; eram apenas os excepcionais. Todos os pais que tinham filhos com mais de dez anos queriam alistá-los no Exército pela promessa de casa e comida, além da renda que o filho recebia assim que se tornasse apto para guerra ou fosse eleito um Oficial de Elite do Rei, que era um dos cargos que possuíam os mais altos salários.
Khalled crescera ao lado desses garotos, lutando, aprendendo e amadurecendo com eles. Todos tinham a noção de que no Exército não havia espaço para discórdia; suas principais motivações concentravam-se em se tornar tudo o que se esperava que um soldado asgoldiniano deveria ser.
E foi assim que ele conheceu os irmãos Adam e Osten, dois colegas do Exército, filhos do cuidador de cavalos do estábulo de Asgoldien e da cozinheira do Castelo. Inicialmente, eles não se deram bem. Adam e Osten faziam cara feia quando Khalled passava e ambos já haviam soltado piadinhas de mau gosto sobre o quanto ele tinha uma posição privilegiada por ser o bastardo do Rei.
Khalled, no entanto, não se importava com a aversão dos dois em relação à ele. Como já foi dito antes, tudo sempre foi muito simples no seu modo de enxergar as coisas: haveria pessoas que não iriam gostar dele ao longo de sua vida, mas e daí?
Porém um dia, durante a prova de teste para a formação dos soldados asgoldinianos, eles foram divididos em trios e mandados para sobreviverem na floresta durante dez dias. Os homens que sobrevivessem e retornassem com o grupo original intacto - todos eles, sem exceção, - seriam nomeados diante de toda Asgoldien como Oficiais do Rei.
E é claro que um dos trios escolhidos foi composto por nada mais nada menos que Khalled, Adam e Osten.
Bem, o que acontecera durante aqueles dez dias na floresta fora uma quase tragédia. Khalled dependia de duas pessoas que tinham uma completa falta de simpatia por ele para conseguir concluir sua missão com êxito e já seria difícil o bastante mesmo sem isso.
No início, eles apenas se ignoraram; os dois irmãos para um lado e Khalled para o outro. Parecia haver um acordo mútuo de que eles passariam toda aquela experiência separados e se juntariam exclusivamente quando estivessem de volta a Base dos Soldados em Asgoldien.
Não foi bem o que aconteceu.
No terceiro dia, Adam foi picado por uma serpente extremamente venenosa e entrou em um estado grave de delírio e febre alta, perdendo os movimentos de seus membros gradativamente. Os alimentos que os irmãos tinham guardado estavam se tornando cada vez mais escassos e Osten não podia arriscar sair do lado de Adam, que ficava pior a cada minuto.
Ele iria morrer. Iria mesmo morrer.
Se a mãe de Khalled não fosse uma curandeira excepcional e não o tivesse ensinado como cortar o efeito do veneno de uma serpente como aquela.
Os três haviam se tornado bons amigos desde então.
— Você precisa decidir o que vai fazer, e logo. — disse Adam, caminhando a passos largos atrás de Khalled, com Osten ao seu lado. — Agora que o Rei morreu, você foi o único da linhagem de Asryn que restou.
— Vão querer saber sobre o seu posicionamento em relação ao Trono. — concordou Osten.
— Não, não vão. — Khalled disse, resoluto, o tom de voz saindo alto e grave, como o de seu pai. Ao se lembrar do Rei agora morto, ele se retesou. — Eu sou bastardo. Não importa se tenho o sangue de um Asryn. Um nobre qualquer vai assumir o Reino.
— Você está errado. — Adam insistiu, passando na frente de Khalled, interrompendo sua passagem. — Conte pra ele o que você ouviu. — disse, indicando o irmão com o queixo.
— Asgoldien está falida. — disse Osten, mantendo a voz baixa. — Os cofres públicos estão vazios, sem absolutamente um tostão. Nenhum nobre vai querer assumir um reino em ruínas. Mas alguém vai ter que ocupar o lugar do rei. E você, bastardo ou não, é o filho dele. Já estão fazendo planos para legitimá-lo.
— Isso é boato. — Khalled declarou. —Bastardos não têm direito ao Trono. Eu não fui criado para ser rei.
— Mas foi criado como um príncipe. — a voz de sua mãe encheu seus ouvidos.
Imediatamente, Adam e Osten a cumprimentaram com um aceno de cabeça, ao passo que Khalled apenas a encarou sem entender. Ela sabia de tudo isso?
— Rapazes, se puderem nos dar licença, preciso de um momento à sós com o meu filho. — ela pediu, com um sorriso doce.
Os irmãos se entreolharam brevemente antes de seguirem seu caminho. Não havia porquê tentar lutar contra a Curandeira Carolyn. Ela sempre conseguia o que queria, e seria assim enquanto ela vivesse. Ao conhecê-la bem, não era surpreendente que o Rei nunca houvesse tido olhos para outra mulher que não ela. Só não tinham se casado porque era contra a lei uma plebeia tornar-se Rainha.
Mas o Rei nunca se preocupou com sua linhagem ou com ter uma mulher, - mesmo que de fachada, - no trono ao seu lado. Era Carolyn que ele queria, e isso bastava, fosse ela uma Curandeira, mendiga ou prostituta.
— Me diga que isso não é verdade. — Khalled falou.
Sua mãe caminhou tranquilamente em sua direção, parando ao ficar próxima o suficiente para tocá-lo. E ao encarar o seu filho, Carolyn só conseguia pensar no quanto ele era parecido com o pai. Era tão, tão parecido.
Ela quase já podia visualizar uma coroa sobre sua cabeça.
— Ele iria querer que fosse assim. — disse, pousando uma mão sobre o braço de seu primogênito. — Ele queria que fosse você, Khall. Queria que fosse você.
Khalled se desvencilhou de sua mãe, franzindo a testa. Ele não estava acostumado com situações como aquela. Geralmente ele conseguia entender tudo muito rápido e com bastante clareza. Tinha faro para caráter e um sexto sentido quando se tratava de mentiras. Ele sempre sabia. E havia mais coisa que sua mãe não estava dizendo.
— Como assim? — seu olhar encontrou o dela. — Queria que fosse eu? Eu sou o Comandante de um Exército. E sou bastardo. Isso é contra a lei.
— Seu pai burlaria qualquer lei por você. — disse Carolyn, em tom repreensivo.
— Assim como ele burlou a lei para se casar com você? — Khalled revidou, se arrependendo logo depois ao ver a expressão de sua mãe ser tomada pela mágoa. — Me desculpe.
Carolyn balançou a cabeça, respirando fundo antes de dizer:
— Eu o fiz prometer que nosso filho teria uma garantia. — sussurrou, como se perdida em lembranças. — E ele o fez. Achei que a garantia seria se casar comigo e assegurar o seu lugar na corte, mas não foi. — ela ergueu os olhos castanhos para os de Khalled, que eram de um verde tão extremo que chegava a ser intimidador, a marca dos Asryn. — Ele assinou um decreto, de que se ele morresse sem deixar um herdeiro legítimo, o Trono seria dado por direito ao homem responsável pelo Exército de Asgoldien.
O coração de Khalled parou por um instante.
— E esse homem...
— Sou eu. — ele arfou, sentindo o mundo girar sob seus pés.
Ele seria Rei.
Ele seria Rei.
Rei de um Reino sem dinheiro algum, prestes a desmoronar sob o governo de um homem que tinha mãos apenas para segurar espadas, não para manejar o futuro de uma nação.
— Eu sei que tudo parece ser difícil agora. — sua mãe disse, trazendo-o de volta para a realidade quando tomou o seu rosto entre as mãos. — A situação de Asgoldien é das piores e nenhum nobre vai querer lhe dar um centavo que seja para tentar consertar as coisas, porque eles não aceitam que um bastardo seja coroado Rei no lugar de um deles.
— Eu vou levar meu povo à miséria. — Khalled murmurou.
— Não vai. — Carolyn o cortou. — Preste atenção: há um lugar. É longe daqui. Cinco dias inteiros de viagem. Está oferecendo o equivalente a um reino inteiro de tesouros para quem matar uma Besta Invernal que assassina crianças há mais de mil anos. Todos que tentaram morreram. Mas você, Khall... Você é o maior soldado que já pisou nesta terra. Você vai conseguir salvar todos nós com a força de sua espada. Seu pai queria você, Khalled. O maior Comandante que o mundo já viu.
Mais uma vez, as palavras do Rei ecoaram na mente de Khalled.
Eu vejo o seu futuro.
Ele fechou os olhos, tentando afastar as lembranças, tentando organizar os pensamentos.
— Qual é o nome deste lugar? — ele indagou.
— É conhecido como o Reino da Espada de Prata. — disse Carolyn, a respiração saindo entrecortarda quando completou: — Chamam de Arasdil.
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