Dois Estranhos se Encontram

O VENTO FORTE sacudia o meu cabelo e chicoteava a pele do meu rosto, ainda ardendo por conta do tapa que eu levara. O som duro das patas de meu cavalo contra o solo era um conforto, a velocidade com que corríamos ritmada com os batimentos do meu coração. Meu peito estava apertado de tanta raiva; eu não conseguia pensar direito no que estava fazendo, apenas queria me distanciar do Castelo, da minha mãe, de tudo que me lembrasse das minhas obrigações estúpidas como herdeira de um trono que eu nem mesmo queria.

Fazia tanto tempo que eu não saía do território real que quase não lembrava de como era o mundo fora dos muros que cercavam a fortaleza de pedra em que eu vivia. Havia a ponte que interligava a imensa propriedade dos soberanos Kihastian - Arasdilany a estrada que levava a entrada da cidade.

Atravessar a cavalo pelas ruas e estradas da Capital e causar um estardalhaço em meio ao povo era uma opção, mas eu realmente não estava com humor para encenar a Princesa Guerreira arrogante e orgulhosa de Arasdil.  Sem parar de correr um minuto sequer, cortei caminho pelo Bosque dos Orvalhos, cavalgando em meio às grandes e antigas árvores que formavam a vegetação.

Se ponha no seu lugar!, a voz de minha mãe ainda ressoava em meus ouvidos. Pelo menos ela estava certa em proferir aquela frase: eu tinha mesmo que me pôr no meu lugar. E com certeza o meu lugar não era fazendo sala para convidados estúpidos em um Banquete Real totalmente inútil.

Cerrei os dentes, segurando as rédeas do cavalo com mais força entre os dedos. Surpresa por não perceber quantas horas haviam se passado desde que eu saíra sem rumo com um dos cavalos do Estábulo Real, notei que o Bosque dos Orvalhos começava a se abrir, exibindo os limites de Arasdil, duas estradas se divergindo em caminhos diferentes.

Nunca me considerei digna de ter sobrevivido no lugar de Angeline. Nunca nem sequer pensei na mais remota possibilidade de ter alguma predestinação que me fizesse merecedora de ocupar o lugar dela na linha de sucessão ao Trono. Na verdade, eu achava que tinha sido mais uma maldição do que uma benção do Destino. A Princesa doce e bondosa havia morrido, enquanto a Princesa rebelde e egoísta havia tido sua vida poupada.

Puxei as rédeas do cavalo, fazendo-o parar diante da bifurcação. Observando as duas estradas atentamente, pensei sobre os diversos lugares para os quais elas poderiam me levar e a vida que cada um deles guardaria para mim.

Como seria se eu fugisse?, a ideia encheu minha mente.

E se. E se eu simplesmente... fosse embora de uma vez por todas de Arasdil? Se eu abandonasse o Trono para algum nobre rico e deixasse todo o passado amaldiçoado para trás?

De súbito, uma pontada lancinante de dor me atingiu diretamente no ombro direito, tão forte que fez com que eu soltasse as rédeas do cavalo, me contorcendo de agonia.

O que é isso? — eu sussurrei, minha visão se tornando turva por conta das lágrimas que encheram meus olhos.

Senti o vazio me tomar quando meu corpo tombou do cavalo, o impacto da queda sendo absorvido exatamente pelo meu ombro ferido.

Meus sentidos pareceram entrar em um estado de dormência, minha audição se tornando tão estranha quanto se eu estivesse debaixo d'água.

Mas mesmo assim eu pude ouvir.

Pude ouvir ele se aproximando antes de ser tomada pela escuridão.

KHALLED ESTAVA BASTANTE satisfeito. Começar sua jornada antes mesmo do sol nascer tinha sido a melhor coisa que ele poderia ter feito naquela viagem maluca. Mais cedo, ele dera uma passada rápida em uma feira de estrada para comprar mantimentos para mais um dia e acabara ganhando em dobro com uma informação valiosa: um atalho que cortava caminho por um arvoredo chamado de Bosque dos Orvalhos, que dava direto para a entrada do Reino de Arasdil. Levaria horas, Khalled sabia, mas seria muito melhor do que mais um dia de procrastinação.

E tudo estava realmente correndo como o planejado, - sem nenhum imprevisto sequer, - até Khalled dar de cara com uma mulher inconsciente no meio da estrada.

E é claro que ele iria parar. Não poderia deixá-la ali sozinha de modo algum, principalmente agora que estava escurecendo. Descendo do cavalo, ele chegou mais perto de onde ela estava, a fim de checar se estava respirando ou com algum machucado.

Khalled não se considerava um homem fácil de impressionar. Já tinha conhecido e estado com mulheres dos mais variados tipos, dos lugares mais diferentes possíveis, entre uma farra e outra com Adam e Osten e achava que já tinha visto de tudo.

Mas havia aquela mulher.

Longo cabelo encaracolado e castanho, parecendo emoldurar o rosto cor de porcelana salpicado de pequenas e delicadas sardas. Os lábios retos e cheios, tão bonitos. O que mais fascinava Khalled era a expressão que ela exibia no rosto: parecia estar chateada, mesmo que desacordada. As sobrancelhas bem feitas estavam meio curvadas, como se ela estivesse semicerrando os olhos para alguém.

O Comandante Asgoldiniano sacudiu a cabeça. Manter o foco. Checar se ela está bem, deixá-la em segurança em algum lugar e seguir seu caminho.

Foi então que, como se ouvisse os pensamentos dele, a mulher se sentou ereta de repente, abrindo os olhos. E foi aquele olhar - aquele mesmo olhar, com a cor violeta das íris pontilhadas por um brilho prateado semelhante ao das estrelas, - que fez com que Khalled perdesse o ar.

Imediatamente, a visão que o tomara mais cedo naquele mesmo dia voltou com força contra ele.

— O que está acontecendo? — a voz rouca da mulher dos olhos estelares indagou, fazendo com que ele se arrepiasse.

Mas que porra era aquela...

— Quem é você? — ela perguntou, num tom nem um pouco amedrontado.

Na verdade, Khalled pensou, começando a se recuperar do choque inicial da visão que tivera dos olhos dela, era um tom bastante arrogante e autoritário para uma menina indefesa que acabara de recobrar a consciência no meio de uma estrada vazia tendo como única companhia um homem com o qual ela nunca cruzara na vida.

— Eu espero de verdade que você não seja um ladrão ou estuprador, porque se for um ou outro, eu juro que vou decepar as suas mãos fora do corpo. — ela disse, se levantando do chão, batendo a poeira das vestes de couro com tranquilidade.

— Não sou ladrão. Muito menos estuprador. — Khalled respondeu.

A garota estreitou os olhos, e mais uma vez o Comandante se perguntou se era possível alguém carregar um poder desestabilizador tão grande em apenas um olhar.

— Ah, você é um dos bonzinhos então. — ela o observou cautelosamente, das botas ao último fio de cabelo. — E é estrangeiro.

— Você é bem esperta para uma menina que estava tirando um cochilo no meio da rua. — Khalled disse, surpreendendo a si mesmo com a frase irônica que acabara de pronunciar.

A garota ergueu as sobrancelhas, parecendo surpresa também. E ao se permitir observar mais uma vez com atenção o rosto dela, Khalled se viu tão fascinado que quase não pôde notá-la tirando uma adaga de um bolso embutido em sua calça de couro, do tipo que soldados possuíam em uniformes.

A maneira como ela veio em sua direção foi firme e rápida, mas não rápida o bastante para que Khalled não pudesse golpeá-la primeiro e bloquear seu ataque, girando o braço dela na direção oposta a dele, tomando a adaga de suas mãos.

— Tenha cuidado com facas, Princesa. Elas podem cortar. — Khalled sorriu, balançando a adaga no alto. Apesar de parecer levar jeito para a luta e de possuir uma estrutura óssea forte - ele pode deduzir isso pela força que ela usara ao tentar atacá-lo, - ela ainda precisava melhorar seu ataque, além do fato de ser quase trinta centímetros mais baixa que ele não ajudar muito em um combate.

A garota produziu um som parecido com um rosnado.

Quem é você? — indagou novamente, entredentes. — O que quer comigo? O que você procura aqui? Por que está tentando me sequestrar?

Khalled soltou um riso, mesmo que estivesse um tanto confuso com todas aquelas perguntas.

— Eu não quero nada com a senhorita, nem estou tentando sequestrá-la. — disse, em tom de obviedade. — Estava de passagem e a encontrei desacordada no meio da caminho. Parei para ver se estava viva e minutos depois você despertou. Então tentou me atacar com uma adaga e começou a me encher de perguntas. É só.

— Se você está mesmo dizendo a verdade e me encontrou por acaso — ela começou, vindo na direção dele lentamente. — Como sabe do meu título?

Khalled franziu a testa, confuso mais uma vez sobre o que ela exatamente estava querendo dizer:

— Perdão?

— Você me chamou de princesa! — ela vociferou, apontando o dedo na cara dele.

Mas como é brava.

— Ah, sim! — Khalled sorriu, tentando ser complacente. — Sobre isso, não se incomode. Você é bem bonita. Tem um rosto meigo, eu não sei seu nome, então a chamei de princesa, mas...

O Comandante viu estrelas, e dessa vez não era coisa de sonho. A garota o tinha chutado. Chutado bem ali. Bem ali e com muita força.

— Você é louca. — Khalled resmungou, inclinando o corpo para frente de dor.

— É o que me dizem. — ela disse, erguendo o queixo dele para que seus olhos se encontrassem. — E a propósito, meu nome é Esther.

E então o chutou mais uma vez, dessa vez no rosto, deixando o melhor Comandante de Asgoldien desmaiado no chão.

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