Corações Dilacerados
SEMPRE FUI FASCINADA por magia. Bruxas, fadas, sereias, elfos, gnomos e todo o tipo de criatura mágica eram os protagonistas principais de todas as histórias que eu gostava de imaginar quando criança. Dez anos de minha vida foram em busca de uma prova de que eles existiam, mesmo que não passasse de tolice aos olhos das pessoas mais velhas.
Eu não me importava.
Naquela época, eu possuía uma companheira leal que me encorajava em todas as minhas expedições fantasiosas, sempre me dizendo que se eu acreditasse com força o bastante, tudo com que eu sonhava poderia se tornar real.
Descobri tarde demais que na realidade onde vivíamos só havia espaço para monstros e sangue.
Apesar disso, uma parte de mim ainda ansiava por um resquício, por menor que fosse, de um mundo com magia. Fora esse o motivo que me fizera quase saltitar ao seguir Carmela, a Velha Cigana de Arasdil, para dentro de seu chalé repleto de símbolos desconhecidos iluminado por velas em plena luz do dia.
Khalled não estava nem de longe animado com a empreitada.
— Eu gostaria de dizer que você é livre para se esconder atrás de mim se quiser, mas o seu tamanho não é nem de longe proporcional. — sussurrei para ele, tentando mostrar apoio.
Quase pude ouvir seu rosto se franzir em uma careta de insatisfação.
— Eu sei que você acha que a situação é toda muito engraçada, mas sabe como é uma bruxa de verdade? — ele indagou, soando grave e sombrio de repente.
Aquele tom novo em sua voz me deixou atenta no mesmo instante.
— O que você quer dizer? — perguntei devagar, intrigada. — Você já... viu uma bruxa?
Ele assentiu com lentidão, como se estivesse receoso em contar. Fosse qual fosse o seu receio, o Príncipe decidiu ignorar:
— Oito anos atrás, durante uma expedição do Exército de Asgoldien para os soldados em treinamento — ele começou, baixinho, erguendo o olhar para o meu, a compreensão cintilando em seus olhos. — Apesar do que você pensa, eu entendo como é não querer ser reconhecido como filho do rei. Meu pai e minha mãe nunca se casaram, então eu não sou bem o que se entende por "príncipe", mesmo tendo sido criado como um — ele ficou em silêncio por um momento, como se esperando algum tipo de reação da minha parte. Quando percebeu que eu não diria nada, prosseguiu: — Eu nunca me importei muito com o que os outros diziam, mas só o fato do sangue Gossryn correr por minhas veias foi motivo para que eu me tornasse um pária entre os outros. Diziam que eu não passava de um bastardo privilegiado que estava ali só por um capricho, que eu não tinha nada para oferecer ao exército. Achei que seria capaz de provar meu valor com o tempo, mas descobri que ser o soldado que mais se destacava piorava tudo ainda mais. Os meus colegas de esquadrão me odiavam e faziam questão de sempre deixar claro o quanto.
"Então, eles se juntaram para me pregar uma peça. Tínhamos que nos encontrar com os demais na entrada de uma nova trilha que havia sido aberta para explorar uma mata fechada que havia nas proximidades de Asgoldien. Mas em vez de indicarem o caminho certo, me deram um mapa para uma das trilhas antigas, uma que havia sido declarada como inviável por conta de ataques de animais que vários soldados que seguiram por ela anteriormente haviam sofrido. Eu tinha um senso de lealdade bastante ingênuo na época, então em nenhum momento passou pela minha cabeça a possibilidade de que eles poderiam estar me enganando. Por isso não percebi logo de cara. Contudo, as orientações e placas ao longo da trilha estavam todas quebradas e desgastadas, como se a última vez que alguém tivesse seguido por ali fosse no mínimo datada de um ano atrás. Foi aí que me dei conta de que tinha sido idiota o bastante para cair em uma piada de mau gosto. Fiquei muito irritado, mas nunca fui fã de explosões de raiva ou de drama, então simplesmente dei meia volta. Eu era bom em geografia e sabia o suficiente para conseguir me situar sozinho."
"Mas a verdade era que eu não estava tão sozinho quanto pensava. Foi aí que eu soube que os ferimentos dos soldados que já tinham passado por ali nada tinham a ver com animais. Era ela. A temida bruxa Corvo das Trevas, que até aquele dia não passava de uma canção de ninar de terror para crianças desobedientes. Não a notei vindo até mim porque ela estava me observando de um galho alto em uma árvore, esperando para atacar. Não gosto de lembrar dos detalhes, mas foi por muito pouco que escapei com vida."
— Fiquei sem conseguir mover o meu braço esquerdo durante três meses por causa da mordida que ela deu em meu ombro quando saltou sobre mim — ele disse, o verde em seus olhos se tornando de um tom escuro intenso, como se vivendo tudo de novo. — Quando finalmente recebi autorização para voltar ao exército, tive que ficar para trás no meu treinamento e demorei para alcançar os soldados que tinham começado a treinar comigo. Fiquei sabendo que todos os meninos do esquadrão em que eu estava haviam sido expulsos como punição por terem me feito ir de encontro à morte, o que só serviu para que os outros me rejeitassem ainda mais.
Não percebi que estava com os punhos cerrados até sentir a ponta de minhas unhas pressionando a pele das palmas de minhas mãos. Pensar em Khalled sendo feito de tolo e tendo sua vida colocada em risco por causa da inveja de um bando de garotos estúpidos me encheu de uma raiva cegante. Eu só queria bater em todos eles até que implorassem chorando por perdão.
E também queria cortar fora a cabeça de uma certa bruxa com dentes afiados.
— Por que você não se vingou? — questionei, precisando de um desfecho melhor. — Por que não deu uma surra neles e os fez se ajoelhar diante de você? Não posso acreditar que todo mundo continuou te odiando e ficou por isso mesmo.
— Esther. — ele suspirou, parecendo cansado de repente. — Vai ter sempre alguém pronto pra nos fazer mal, entende? Sempre. Eu não posso simplesmente sair derramando o sangue de qualquer pessoa que não gostar de mim. — abro a boca para contestar, mas ele não me dá espaço para falar, completando: — Todos nós temos algum trauma. Só aconteceu de o meu ser com uma bruxa e ter sido provocado por pura falta de maturidade de garotos que achavam que eu merecia levar alguma lição. Eu ainda tenho medo de bruxas? Sim. Mas agora vou saber me defender. Não guardo rancor porque acredito que tudo é um aprendizado.
Estreitei os olhos.
— Você não pode estar falando seriamemte. — eu não conseguia entender. Ele tinha quase morrido. Tinha se perdido e ficado sozinho e sem ninguém além de si mesmo para ajudá-lo.
— Mas eu estou. Nada em nossa vida é por acaso.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa sobre aquilo não passar de papo furado para pessoas que aceitavam qualquer merda que acontecia com elas, uma voz pesada como pedra ecoou atrás de mim:
— O menino tem razão. — anuiu Carmela, que eu nem tinha percebido que havia parado de caminhar para ouvir a história de Khalled. — Nada em nossa vida é sem propósito. Tudo é obra do Destino. Agora me sigam.
Revirei os olhos, mas a segui sem pestanejar. Carmela nos levou até uma porta no final do corredor, que dava para uma sala circular envolta em semi-penumbra. À meia luz das velas de vários tamanhos brilhando no chão, eu pude ver apenas a sombra de desenhos nas paredes. No centro do recinto, havia uma mesa redonda coberta por um tecido de cor lilás vívida.
Havia três cadeiras à disposição ao redor da mesa, como se a Cigana soubesse que um segundo convidado viria. Olhei para ela de relance, mas seu rosto não revelou nada.
Talvez eu estivesse me deixando influenciar rápido demais por toda a aura mística que aquela mulher exalava.
Sentada na cadeira solitária na ponta oposta da mesa, Carmela nos observou como a quem olhava para algo precioso que havia perdido.
— Eu espero a visita de vocês dois há dez anos. — então desviou o olhar diretamente para mim, seus olhos castanhos assumindo uma luz dourada por conta das velas. — Desde que sua irmã gêmea pereceu, princesa.
Os pelos de minha nuca se eriçaram à menção de Angeline.
— Do que você está falando? — perguntei, me sentindo subitamente exposta. Todos os pares de olhos na sala estavam voltados para mim e a atenção nunca fora tão indesejada como agora. Eu não ficara melhor em conseguir esconder a dor quando se tratava de minha irmã: ela estava lá para qualquer um que olhasse demais.
— Carmela — Khalled disse, fazendo com que a mulher finalmente tirasse o olhar repleto de algum tipo de sabedoria antiga de sobre mim. — Não estou entendendo o que é tudo isso. Minha mãe pediu para que eu a visitasse três semanas atrás, quando eu nem mesmo conhecia Esther. Como a senhora poderia estar nos esperando?
A mulher sorriu em compreensão, passando a mão pelo tecido lilás que recobria a mesa, revelando uma carta sob sua mão. No papel, havia o desenho de duas crianças iguais, e à espreita delas, uma sombra segurando uma foice.
— O sacrifício. — disse ela, erguendo o olhar para mim. — Um dia antes do ataque da besta da Floresta Negra ao Castelo, essa carta misteriosamente substituiu uma de minhas antigas. Depois que a notícia de que a princesa herdeira havia morrido, eu pude entendê-la. Duas meninas de sangue real, uma possuidora de magia e a outra não. Uma que precisava morrer para que a outra pudesse descobrir a verdade sobre si mesma.
— Do que você está falando? — repeti, sentindo minha marca de nascença pinicar na pele, como se em resposta às minhas emoções. Inquieta. Alerta. — Um sacrifício? Ela era minha irmã. Era uma criança que não tinha culpa de absolutamente nada, que não merecia morrer e não deveria ter que se sacrificar por ninguém.
— Assim como você. — ela inclinou a cabeça na minha direção. — Assim como ela, também era uma criança e ainda mais pura e inocente por não saber sobre sua sina.
— Que história absurda é essa?! — agora meus olhos ardiam, lutando para segurar as lágrimas que repentinamente haviam surgido. — Minha irmã... Minha irmã... — as palavras simplesmente morreram em meus lábios quando a voz da Cigana encheu os meus ouvidos novamente, me fazendo entrar em uma espécie de transe:
— Escute, menina. — seu tom havia assumido uma determinação tão ferrenha que me fez querer recuar. — A dor te acompanhou e foi seu alicerce durante dez anos. Isso acaba hoje. Você encontrou quem precisava. Seu guardião veio até você. Abandone essa casca onde se esconde o quanto antes ou a escuridão irá chegar mais rápido do que previ. E ela virá cobrar a vida que não levou.
— Não estou entendendo nada. Eu sou esse guardião? — perguntou o príncipe, soando completamente perdido. — Por quê? Por que eu entre todas as outras pessoas? Nem nasci em Arasdil. Não fazia nem ideia de nada disso. Vim até aqui porque precisava salvar meu reino da miséria. Como eu seria capaz de protegê-la desse jeito?
Carmela colocou outra carta sobre a mesa.
— Primeiro, Asgoldien não está na miséria. — desta vez, o desenho contido nela mostrava uma figura encapuzada segurando um saco de moedas. — A ladra. Sua mãe mentiu para você. É tão rico quanto ela. — gesticulou em minha direção. — Carolyn escondeu todo o dinheiro para que você tivesse um motivo para vir até aqui.
— O quê? — Khalled inquiriu, a beira de um colapso. Eu me sentia da mesma forma. — Está me dizendo que minha mãe sabia de tudo isso?
Carmela assentiu.
— Há coisas sobre a sua mãe das quais você não faz nem ideia, menino. — novamente, ela se voltou para mim. — Você tem que se libertar do medo. Você se sente segura com ele, certo? Se sente protegida. Não é assim que se sente?
Era loucura. Tudo aquilo só podia se tratar de algum tipo de piada ridícula de uma cigana fajuta tentando se aproveitar de nós alegando ter tido alguma revelação divina do Destino. Apesar de querer simplesmente gritar e ir embora, acabei contra a minha vontade refletindo sobre o que Carmela havia perguntado.
Desde a primeira vez em que pus meus olhos em Khalled, duvidei dele. Todas as suas boas ações e gentilezas foram retribuídas com mais e mais dúvida. Eu queria desconfiar dele em tudo, porque desde a primeira vez que estive em sua presença, me senti segura. Tudo sobre ele me perturbava por ser extremamente familiar. E eu podia negar o quanto quisesse, mas algo dentro de meu coração murcho e apertado ansiava desesperadamente para que eu me permitisse confiar nele.
E sem que eu sequer tomasse conhecimento de meus movimentos, me vi assentindo para a mulher
— Bom. Precisa confiar nele. Ele é o único capaz de mantê-la a salvo. Se não ficarem juntos, serão a ruína um do outro.
O mundo girou. Uma tontura me atingiu nas laterais da cabeça, e me senti encolher com a dor. A última coisa da qual tive consciência foram mãos envolvendo meu corpo antes que eu caísse e a escuridão reinasse.
⚔️
DE VOLTA AO CASTELO, tudo em que Khalled se permitia pensar era em como desesperadamente precisava levar Esther ao seu quarto sem que fossem pegos. Tomando um caminho que uma vez vira uma criada usar, ele subiu os degraus de pedra com a princesa desacordada nos braços, rezando para que não fossem vistos.
Suas súplicas foram ouvidas quando ele encontrou o corredor que levava até seus aposentos completamente vazio.
Fechando a porta de seu quarto atrás de si, o Príncipe deitou com cuidado extremo em sua cama a mulher adormecida. Ou que havia perdido a consciência devido ao choque.
Fitando o rosto pálido de Esther, que exibia um nariz pontilhado por sardas e uma expressão congelada em angústia, Khalled suspirou.
Exausto.
Estava exausto. Tudo o que ouvira, o que descobrira - sobre Esther, sobre sua mãe, sobre si mesmo, - o havia exaurido por completo.
De uma hora para a outra, nada mais fazia sentido.
E ainda assim, mesmo que parecesse beirar à loucura, todos os seus instintos lhe diziam que aquela era a verdade.
As visões que ele tivera durante todo o caminho até Arasdil; os olhos violeta-prateados dela perseguindo-o por toda parte. E o aviso que recebera em sonho, de que sua maior conquista poderia vir a ser o seu maior fardo.
Eram todas tentando fazê-lo entender.
Não estava atrás de matar uma besta ou de alguma recompensa que pudesse salvar seu reino.
Estava atrás dela.
"Ela também estava procurando por você."
Eles haviam alcançado um ao outro.
Um arrepio correu pela espinha do Comandante de Asgoldien, uma determinação ferrenha pulsando mais forte em resposta.
Ele e Esther haviam se reunido. E agora tinham de estar preparados quando outra coisa tentasse chegar até eles.
⚔️
SANGUE E DOR. O mundo se resumia a sangue e dor envoltos numa névoa rubra, carregando sibilos sofridos e pedidos de ajuda. Por onde quer que passasse, era só isso o que podia ver e ouvir. Todos que ela amava tinham ido embora. Não havia mais ninguém.
Ela sabia que tinha nascido para caminhar sozinha.
Morreria sozinha também.
— Esther. — alguém gritava o nome dela, o som abafado pelos murmúrios de um milhão de almas derramando lágrimas vermelhas. — Esther. — Mais forte, mais alta, mais vivo. — Esther!
A princesa de Arasdil acordou de repente, o coração enlouquecido dentro do peito. Arfava em desespero, como se precisasse provar o ar em sua língua para acreditar que era de verdade.
Tremia como se tivesse acabado de sair de uma nevasca. Queria chorar. Por Deus, como ela queria simplesmente chorar por toda a eternidade.
Um toque na base de suas costas a fez voltar a si em um sobressalto.
— Está tudo bem. — uma voz familiar sussurrou, trazendo-a para mais perto, passando a mão por seus cabelos, esfregando seus ombros, segurando suas mãos. Espalhando calor pelo seu corpo. — Está tudo bem. Você não está sozinha. Acabou. Não é real. Está segura agora.
Esther balançava a cabeça negativamente, de olhos fechados.
— Shh. — a voz disse, dedos gentis tocando-a no queixo, acariciando sua pele. — Respire — ela obedeceu. — Expire. Eu estou com você, Estrelinha.
Então aos poucos, parou de tremer. Seu coração tinha se acalmado; sua respiração havia se regulado. Só se dera conta de que as lágrimas que segurava tinham insistido em descer pelo seu rosto quando sentiu as costas das mãos de Khalled limpando-as.
Khalled.
Esther abriu os olhos de repente, encarando o par de olhos preocupado e dolorosamente verde que a fitava.
— Do que... do que você me chamou? — ela indagou, franzindo o cenho.
— Você...
— Diga de novo. — ela pediu, sentindo-se a ponto de perder o controle de suas emoções mais uma vez.
— Estrelinha. Eu chamei você de estrelinha.
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