Como um Ponto Final
EU ESTAVA NO ESTÁBULO arranjando água e comida para o cavalo, o qual não tive outra alternativa a não ser trazer para casa, visto que ele tinha me servido muito bem como meio de transporte até aqui. Apesar de um pouco rebelde no início, ele fora muito bonzinho e não me trouxera problemas durante o caminho, nem mesmo quando tivemos que dar a volta em todo o perímetro da propriedade Arasdilany e passar pela entrada secreta quase sempre não vigiada pelos guardas de meu pai.
Escovando cuidadosamente o pelo do animal, pensei que seja lá quem fosse o estrangeiro que o montava - e em quem eu dera uma surra, - era certo que não era nenhum marginal como eu sugerira, pelo contrário, parecia vir de uma família muito nobre. O cavalo era de uma linhagem puro-sangue do tipo que só poderosos clãs possuíam. Era tão valioso quanto um de raça arasdilana, se não talvez mais.
Retirando a sela e desamarrando as rédeas de couro do belo cavalo negro, notei um pequeno pingente de ouro costurado junto a elas, com algo inscrito no metal. Semicerrando os olhos para conseguir ver em meio ao quase breu daquela hora da madrugada, pude ler com dificuldade o nome Asryn.
Franzi o cenho, intrigada. Asryn. Era bem provável que eu estivesse imaginando coisas, mas o nome não me parecia totalmente estranho. Arranquei o pingente da costura, segurando-o entre os dedos.
— Quem é o seu dono, afinal? — sussurrei para o animal ao meu lado, a imagem do homem com quem eu esbarrara na estrada surgindo em minha mente com tanta nitidez quanto se eu estivesse vendo-o parado bem na minha frente.
E sua figura possuía um maxilar bem desenhado; um rosto bonito com traços fortes, queixo reto e nariz aristocrático, além de cabelos castanho-claros que precisavam de um corte. Mas havia algo que eu com certeza havia guardado bem na memória: os enigmáticos olhos verde esmeralda do estranho, que pareciam quase místicos com aquele tom tão diferente de todos os outros olhos daquela cor que eu já tinha visto.
Sacudi a cabeça.
Com certeza devia ser só mais um idiota rico que, assim como o príncipe de Hawye, tinha saído de casa para vagabundar por aí nas terras dos outros a torto e a direito como se fossem suas, sem ter o menor respeito pelas pessoas que encontrassem no meio do caminho.
De repente, um som de passos do lado de fora do estábulo preencheu meus ouvidos, me deixando alerta instantaneamente. Desconfiada, caminho em silêncio até a saída, olhando em volta.
Não havia ninguém, mas havia um cheiro no ar. Um cheiro que eu conhecia muito bem, amadeirado e com um toque de hortelã no fundo.
— Pode sair do seu esconderijo, Logan. — eu disse, ainda sem vê-lo. — Você não é nem um pouco discreto.
Dessa vez, o som de passos fica mais alto e eu me viro, avistando meu noivo caminhando em minha direção com uma cara emburrada.
— Fiquei esperando você voltar. — ele disse, parando a minha frente, seus olhos azuis se destacando à meia luz. — Estive vigiando junto com Kevin e os outros soldados, mesmo sabendo que alguém inteligente como a Comandante da Destruição nunca se deixaria ser pega, a não ser que fosse por vontade própria. — então respirou fundo, analisando meu rosto com atenção antes de dizer: — Estou preocupado com você, Esther.
Suspirei de frustração, passando a mão pelos cabelos.
— Você não tem que se preocupar comigo. — eu disse, erguendo os olhos para os dele. — Sabe que eu gosto de sair sem avisar de vez em quando. É o meu jeito de tentar me desligar de tudo e pensar um pouco sozinha.
Sua expressão continuou séria, o sentimento que seus olhos tentavam expressar se tornando mais intenso.
— Sim, eu sei. Mas você costumava fazer isso comigo. — ele replicou, dando um passo mais perto de mim. — Fugíamos juntos para nos desligarmos de tudo. Quando eu cheguei, você disse que muita coisa havia mudado. O que você sente por mim... Isso mudou também? Não confia mais em mim? Não acha que pode contar comigo para dividir o que a perturba?
— Logan... — comecei, uma sensação de culpa começando a tomar forma em meu peito. Fechei os olhos, recuperando o fôlego: — Eu confio em você. E novamente, não precisa se preocupar comigo. Absolutamente nada me perturba.
Mesmo que estivesse claro para nós dois que as palavras que eu acabara de pronunciar não houvessem feito diferença alguma, Logan assentiu. Em silêncio, ele levou a mão até o meu rosto, acariciando minha pele com delicadeza, o calor de seus dedos me causando arrepios por todo o corpo.
— Me beije. — eu pedi, tocando sua mão, erguendo o rosto em direção ao seu.
Sem hesitar por um segundo, os lábios dele tocaram os meus, seus braços envolvendo minha cintura para mais perto dele, a temperatura do seu corpo e do meu se transformando em uma só. Nosso beijo se tornou mais profundo, sua língua tocando a minha carinhosamente.
E então uma forma distorcida tomou minha mente, me fazendo saltar para longe de Logan e tropeçar em uma tábua de madeira que havia no chão de pedra. Tentando impedir a queda, estiquei o braço para me segurar nele, mas não fui rápida o bastante, o que fez com que eu caísse de cara em uma das barras de ferro que estavam do lado de fora do estábulo.
— Esther! — Logan exclamou, vindo em meu auxílio de imediato.
Senti o gosto metálico de sangue na boca, a tontura fazendo com que eu enxergasse tudo embaçado e em dobro.
Eu poderia jurar que enquanto dois Logans vinham em minha direção, um deles não se parecia em nada com o meu noivo e Imediato, mas sim com o estranho homem com o qual eu cruzara no meio da estrada horas atrás.
E seus olhos verdes brilhavam.
— Você não aprende nunca, não é, Esther? — minha mãe balançou a cabeça, com uma careta de desaprovação. — Sai quando quer, volta quando quer e nem se preocupa em ao menos prestar atenção por onde está andando. Você é um desastre.
Manti a expressão neutra, as mãos cruzadas em posição formal atrás das costas. Não tinha demorado muito para os demais guardas descobrirem sobre minha volta e informarem aos meus pais, que solicitaram minha presença no Salão do Trono imediatamente. Ao que parecia, tinham me esperado acordados.
— E você? — minha mãe encarou Logan, que estava em silêncio ao meu lado. — Não tem vergonha de tentar acobertá-la? Não sabe que é com a Princesa que você está comprometido, e não com uma qualquer? Deveria ter o mínimo senso de qual é o seu dever para com a Coroa, se tratando de um Oficial do Rei...
— Se me permite, Vossa Majestade... — ele começou, antes de ser interrompido pelo tom cortante da Rainha:
— Como se atreve a falar por cima de sua Rainha? — ela questionou, fuzilando-o com o olhar.
— O que ele estava tentando dizer... — comecei, mas ela ergueu a mão, um sinal para que eu me mantivesse de fora da conversa.
Respirei fundo, tentando manter a calma. Já havia tido desavenças demais com minha mãe, então obedeci, achando ser o melhor a fazer naquele momento.
Ao ter a certeza de que eu não diria nada, ela encarou o meu pai, que observara tudo sem ter se pronunciado uma vez sequer. Como se fosse sua deixa, o Rei se levantou de seu trono, fixando o olhar no homem ao meu lado.
— Como não faz muito tempo desde que voltamos de nossa batalha com o Reino de Hawye, não deve ser de seu conhecimento que minha filha foi removida de seu cargo como Comandante de nossa Legião de maior prestígio, a Destruição. — papai começou, fazendo com que eu cerrasse os punhos, tomada de raiva e vergonha. — Como Imediato dela, você é quem assumirá este lugar de agora em diante.
Boquiaberto, Logan me encarou estupefato por um momento antes de se voltar para o meu pai.
— Mas Vossa Majestade, eu...
— Sim. Você ficará feliz em aceitar esta posição, principalmente pelo fato de se tratar de uma espécie de compensação pelo que vou lhe dizer agora. — disse o Rei, erguendo o queixo, a coroa sobre sua cabeça brilhando contra a luz do imenso lustre de cristal suspenso no teto. — O seu noivado com minha filha termina neste exato segundo.
Arregalei os olhos, dando um passo a frente.
— O quê?! — questionei, aumentando o tom de voz, o sinal de nascença em forma de estrela no meu ombro começando a queimar. — Mas por quê? Por causa de ter me ajudado depois que voltei para casa? Por ele ser uma das poucas pessoas com quem posso contar? Por ele gostar de mim e não por ser uma relação arranjada?
Meu coração batia com força, o som pulsando em meus ouvidos. Eu poderia esperar de tudo, menos o que aconteceu em seguida: minha mãe estava rindo. Ela estava literalmente dando risada da situação.
Aquilo me desestabilizou.
— Você foi tola de ter considerado de fato a ideia de que seu pai e eu iríamos permitir que se casasse com alguém tão abaixo de seu nível. — ela disse, olhando para Logan com descaso. — Termos concordado com esse compromisso foi só uma forma de mantê-la em nosso controle. Entretanto, o tempo passou e vimos que continuava passando dos limites. Você é uma Princesa, Maria Esther. Princesas não se casam com filhos de Mensageiros.
Cerrei os punhos com mais força, sentindo todos os músculos de meu rosto ficarem tensos.
— Como você pôde? — indaguei, tremendo. — Como pôde brincar conosco dessa maneira? — me virei para olhar nos olhos de meu pai, mas ele nem ao menos olhou em minha direção. — Os dois. Vocês são monstros.
— Deixe, Esther. — Logan disse, engolindo em seco. — Eles estão certos. Eu não sou bom o bastante para você. Nunca fui.
— Logan... Você não vê que é exatamente isso o que eles querem? Que a gente desista? — fui até ele, tentando segurar sua mão. Ele se desvencilhou do meu toque.
Foi então que uma sensação estranha me tomou. Como se aquilo tudo tivesse sido combinado. Cada um deles com suas falas e expressões calculadas. Como se todos já estivessem conscientes de como as coisas iriam acontecer.
Todos, menos eu.
Ao me dar conta disso, endireitei a postura, limpando a garganta. Será que meus pais haviam prometido o meu lugar no Exército para Logan desde o início? Será que ele sabia tanto quanto eles de que nosso noivado era só uma fachada?
Não faz diferença, pensei. E não fazia mesmo. Já não importava mais.
— Está bem, então. — eu disse, assentindo com a cabeça, me dirigindo até a saída do Salão do Trono. Eu quase dei meia volta. Quase perguntei se ele sabia de tudo aquilo. Se ele um dia já tinha gostado mesmo de mim. Mas aquilo tudo era uma grande bobagem.
Quando deixei Logan e meus pais para trás, não precisei segurar as lágrimas ou fingir que não estava doendo. Porque eu não senti absolutamente nada.
Só uma vontade louca de bater em mim mesma por ter sido tão burra.
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