As Ramificações do Medo


AS ESTRELAS NOS olhos de Khalled cintilam por apenas mais um segundo antes que ele pisque e elas então desapareçam. Meus dedos se esticam por vontade própria em direção à pele sobre suas pálpebras, mas não chego a tocá-la, pois a consciência me domina e tudo ao meu redor se torna claro outra vez: onde estávamos e o que estávamos fazendo, minha pernas ainda circundando o corpo dele como o denso nó de uma corda.

Eu me desvencilho de Khalled em um movimento brusco, minhas botas provocando um som duro ao encostarem no chão.

Meu coração está acelerado.

— Isso foi um erro — digo, sem encará-lo. Ainda posso sentir meus lábios formigando. O ombro no qual possuo a marca de nascença em forma de estrela queima. — Você sabe. Nós não podemos deixar esse tipo de coisa acontecer de novo.

A confusão imediatamente permeia cada traço de seu rosto.

— Não. Eu não sei — ele responde, sorrindo como um tolo e então franzindo a testa, dando um passo cambaleante para esquerda e outro para direita, tropeçando no ar.

Eu o agarro pela cintura, fazendo uma careta de dor quando sinto todo o peso do corpo dele vir de uma vez para cima de mim.

— Khalled. — chamo, minhas costas pressionadas contra a parede numa tentativa de tomar impulso para erguê-lo; em vão, porque eu tinha certeza de que ele pesava no mínimo cem quilos. Menos que isso não podia ser. E carregar uma montanha de músculos em um corpo de quase dois metros de altura não era nem de longe tarefa fácil. — Por Deus, você está bem?

Ele pareceu recuperar um pouco do equilíbrio, se firmando novamente em pé. Respiro fundo com o recém recuperado ar dos meus pulmões e fico com os braços abertos ao redor dele no caso de qualquer possível oscilação.

— Você está bem mesmo? — pergunto novamente, odiando o tom de pura preocupação que escapa por entre as minhas palavras. Fraca.

O príncipe de Asgoldien sacode a cabeça, endireitando a postura.

— Sim. Eu só fiquei tonto por um segundo. — então sorriu de novo, de um jeito tão bobo que me fez ter vontade de revirar os olhos. Ou de sorrir de volta. — Acho que o seu beijo é um tanto destruidor.

Então eu estou dizendo, aliviada: — Sim. Que bom que concordamos em alguma...

— E completamente delicioso. — ele me interrompe, roçando a parte de trás da mão na lateral do meu rosto, enviando uma onda de calor tão terrivelmente aliciante que quase me faz baixar a guarda outra vez.

— Khalled. — repreendo, me afastando de seu toque. — Pare com isso. Nós não podemos. Não complique as coisas, por favor.

Sua testa se enruga, as sobrancelhas se unindo com o movimento.

— Sou eu quem está complicando? —ele pergunta, em voz baixa. — Porque tudo parece bem simples do meu ponto de vista. Eu gosto de você. Você gosta de mim. E se havia alguma chance de conseguir me convencer do contrário, esse beijo as anulou. Então não perca seu tempo tentando enganar a mim e a si mesma sobre o que sentimos um pelo outro porque não sou mais criança e não vai funcionar.

— Por que está sendo assim? — indago, sentindo o rosto queimar de chateação. — Por que está fazendo tudo isso se transformar num drama quando tudo o que fizemos foi nos beijar?

— Ah, sim. — ele assentiu, sarcástico. — O jeito como sentiu a necessidade de se unir a mim e como me tocou; o modo como me retribuiu, com seu coração batendo tão forte contra o meu. Por Deus, eu até mesmo fiquei com as pernas bambas. Pare de mentir, isso não foi um beijo. Eu o senti de onde nossos lábios se tocaram até o interior dos meus ossos.

Senti um frio familiar se formar no centro da minha barriga. Eu o andava sentindo com muita frequência desde que conhecera Khalled. E não podia deixar aquilo continuar, porque sabia que seria o meu fim.

— Eu não vou discutir com você. — digo, lhe dando um olhar discreto para me certificar de que sua tontura havia realmente desaparecido e então me virando para ir embora.

— Covarde. — ele acusa, a palavra perfurando minhas costas enquanto continuo me afastando. — Quando vai parar de esconder o que sente e se entregar de uma vez?

Eu não respondo. Não é necessário. Ele sabe muito bem o que eu diria.

Não enquanto eu puder evitar.



KHALLED GOSTARIA simplesmente de sair atrás de Esther, tomá-la em seus braços e beijá-la uma e outra vez até que finalmente admitisse que o queria tanto quanto ele a desejava. Mas aprendera a conhecer os sinais que ela inconscientemente lhe dava, e sabia que não deveria insistir.

Ao menos, não agora.

A princesa estava com medo. Não. Essa ainda não era a palavra certa para definir o que ele vira refletido em prata e violeta nos olhos dela.

Estava completamente aterrorizada.

E ele compreendia. Porque também sentia medo. Sempre tivera medo de como se sentia a respeito dela. Como se algo o estivesse puxando... Como se a necessidade de estar por perto fosse grande demais para simplesmente se afastar, mesmo quando ela fazia seus típicos comentários maldosos ou quando era extremamente rude.

Fora essa uma das principais razões pela qual ele acreditou no que a Cigana lhes dissera. Que o caminho dos dois estava destinado a se entrelaçar. E ao pensar no assunto, ser o guardião dela fazia todo o sentido. Por isso a entendia tão bem, por isso estivera sempre disposto a ajudá-la; desde o primeiro momento.

Sentir-se atraído por ela não fora um choque. Esther era bela de uma maneira completamente singular; e como ela mesma havia ressaltado de maneira tão humilde minutos atrás, ele a considerava a mulher mais linda que já tinha visto. Contudo, a beleza não era tudo que o havia feito se interessar por ela.

A linda e brilhante estrela também possuía seu lado apagado, feito de uma poeira estelar cinzenta que enterrava seu coração em uma cova profunda demais para que pudesse se permitir qualquer possível ligação emocional com quem quer que fosse.

Um lado feito para encobrir suas emoções. Feito para torná-la solitária.

E aquilo o tinha intrigado por dias. O que será que tinha causado amargor tão duradouro em alguém como ela?

Mas depois que soubera como sua pobre irmã havia morrido, pôde então finalmente entendê-la.

Esther tivera em si aos nove anos uma força de vontade que Khalled tinha visto em poucas pessoas. Era a garota que tinha perdido de primeira se tornando uma lutadora invicta. Ela havia feito um trabalho tão bom em construir defesas que ninguém sequer suspeitaria a respeito da existência de uma ferida tão funda por debaixo da máscara de arrogância e superioridade que a princesa de Arasdil usava com tanto orgulho sobre o rosto.

E então, contra todas as expectativas, conhecera a verdadeira Esther, e com ela, suas falhas: seu terror absoluto em deixar qualquer um chegar perto demais e acabar perdendo-o; sua necessidade de nunca demonstrar se importar na tentativa de fazer com que as pessoas achassem que não era capaz de sentir; seu modo colérico de lidar com tudo porque pensava que sentir raiva era melhor do que sentir tristeza. Khalled conhecera a Esther que tinha escolhido confiar nele mesmo tremendo de medo. A Esther que tinha ficado envergonhada por alguém querer tanto sua amizade a ponto de pedi-la formalmente.

O príncipe suspirou, sentindo o peito encher-se de um sentimento cálido e até então desconhecido.

Ela o tinha conquistado exatamente por ser quem é.

E ele não a deixaria colocar a máscara de novo.


⚔️

EU OBSERVAVA DE LONGE Logan dar ordens aos novos recrutados, que a essa altura já não eram mais tão novos assim. Ele caminhava entre eles a passos rápidos, com o olhar repleto de escrutínio e uma expressão dura que o fazia parecer ser ligeiramente mais velho do que realmente era.

Não pude deixar de pensar que o homem fazia um ótimo trabalho me imitando.

— Trabalhando como espiã mais uma vez? — quase dei um salto de susto ao ouvir a voz baixa de Khalled no meu ouvido.

Ergui as sobrancelhas por um segundo pelo fato de ter sido pega desprevenida, mas então lembrei que Khalled havia recebido um treinamento ainda mais pesado que o meu.

— Estou chocada! — exclamo, irônica. — Nunca vi um príncipe conseguir ser tão sorrateiro.

Um brilho de reconhecimento reluz em seus olhos.

— Obrigada.

— Isso é coisa de ladrão — acrescento, em um falso tom de acusação.

— Como já disse, obrigada. — ele diz, fazendo uma reverência que beira a chacota. — Aprendi com a melhor larápia de todas.

Reviro os olhos.

— Palhaço. — digo, mas estou rindo.

— Sempre ao dispor para fazê-la sorrir.

O tom místico de verde dos seus olhos encontra o meu com uma rapidez que me faz estremecer. O ar parece ficar mais pesado durante um segundo, até que desvio o olhar.

— Podemos conversar? — ele pergunta.

— Já estamos conversando. — respondo. Com minha visão periférica o vejo estender os dedos em direção aos meus e afasto a mão antes que ele me toque. — O que foi?

— Esther. — meu nome sai de sua boca como uma súplica. — Não faça assim.

— Não estou fazendo nada. — murmuro, sentindo a ponta de minhas orelhas queimarem com a mentira descarada.

Ele suspira, passando a mão pelos cabelos castanho-claros, que para alguém que faz parte do exército, precisavam urgentemente de um corte.

— Seu cabelo está grande. — observo em voz alta, tentando mudar de assunto.

— Estava pensando mesmo em aparar — concorda. — Não deixei chegar tão longe assim desde os meus doze anos.

— Mas está mais bonito desse jeito. — penso em voz alta mais uma vez, me embasbacando ao perceber que estendi a mão para tocar os fios cor de ouro queimado que despontavam sobre sua testa.

Antes que eu possa sair de seu alcance, ele pega meus dedos entre os seus, colocando minha mão contra sua bochecha. Prendo a respiração ao sentir a suavidade de sua pele debaixo da minha palma, a sensação me tomando tão inteiramente que me permito a ousadia de uma carícia, dedilhando os traços de seu rosto como se fosse certo; como se fosse meu.

Khalled fecha os olhos. Seus cílios são tão injustamente bonitos. Longos e espessos. O nariz reto pontilhado por sardas que eu nunca tinha visto. Desenhei o arco de sua sobrancelha, descendo pela linha marcante da maçã do seu rosto. Seu lábio inferior é maior que o superior, o que lhe dá um aspecto sedutor além do que eu consideraria saudável. Bonito demais. Assombrosamente bonito.

— Esther?

Khalled abre os olhos, ao passo que eu me viro para a voz no automático, ainda não completamente recuperada do torpor. Mas a pessoa com quem me deparo me deixa alerta imediatamente:

— Logan.

— O que está fazendo aqui? — ele pergunta, tentando soar indiferente e falhando vergonhosamente. — E quem é esse?

— Meu nome é Khalled. — o homem atrás de mim diz, dando um passo para frente e estendendo a mão em cumprimento.

Logan o olha mais uma vez. E então de mim para ele.

— Quem é você? — pergunta de novo, sua voz adquirindo um tom grosseiro.

Khalled recolhe a mão.

— Eu tenho certeza de que acabei de responder.

— Ele é o príncipe de Asgoldien. — digo, cortante. — E você não deveria se dirigir a ele desta maneira. Volte para seus afazeres, Comandante. Você está desviando a atenção dos novatos. — aponto com o queixo para o bando de marmanjos que ele deixou para trás, todos olhando para nós. — Já que é pra me substituir, pelo menos faça seu trabalho direito. — então puxo Khalled pelo braço, passando direto por ele.

— O quê? Aquele cara é quem encontraram para substituir você? — o príncipe pergunta, perplexo. — Ele parece uma vara. E um imbecil.

— Ele não parece uma vara. Você que é grande demais. — digo, adentrando na base dos soldados que não estão em treinamento e ignorando os olhares de surpresa, admiração e medo que recebo.

— Eu não sou grande demais. — olho para ele com ceticismo. — Simplesmente como de acordo com o meu tamanho. — responde, num timbre de obviedade. — Você deveria tentar fazer o mesmo.

— Eu como bastante, obrigada.

— Estamos quase na hora do almoço e você comeu um pêssego. — ele refuta, zangado. — Um pêssego. Há cinco horas atrás! E fui eu quem te dei. Enquanto eu comi cinco sanduíches, dois pedaços de torta de avelã e uma batida de frutas com hortelã. Acho que...

— Meu Deus, temos um monstro comilão entre nós — digo, abismada. — Com tanto tempo de boca cheia, quando acha espaço para malhar?

— Por quê? — ele questiona, cheio de malícia. — Está pretendendo marcar um encontro comigo na sua sala de musculação?

— Vá se fo...

Um latido alto engole o restante da minha frase e meu coração se enche de alegria. Solto o braço de Khalled e corro na direção do meu melhor soldado.

— Verity!

O cachorro se solta da guia e corre até mim, pulando como um canguru selvagem e me derrubado em cheio no chão, não perdendo tempo em lamber e cheirar todo o meu rosto.

— Santo Deus! — ouço Khalled exclamar. — Você tem um urso de estimação!

— Não é um urso. — outra pessoa corrige, em um quê de riso. — É um mastim tibetano. — então puxa a guia de Verity, tirando o enorme cachorro de cima de mim por apenas tempo suficiente para que eu possa ficar de joelhos.

— Senti falta de você, rapaz. — eu digo, abraçando o pescoço peludo do meu grande amor. Recebo uma lambida molhada em troca e dou risada, feliz pelo carinho.

— Sentimos sua falta também, Comandante. — Thorn diz, com um aceno respeitoso de cabeça. — Já deve saber que nossa Legião se recusa a reconhecer o Imediato Priestly como líder.

— Kev me manteve a par. — respondo, me levantando. — E vim dizer a vocês que isso não vai durar.

— Está falando do que penso que está falando, Comandante? — Thorn ergue as sobrancelhas.

— Você sabe o que fazer — assinto.

— Entrem, crianças. — ele fala, sua voz de barítono ressoando pelas paredes do local.

De uma só vez, uma multidão familiar surge pela imensa porta de entrada, seis longas fileiras marchando em sincronia e batendo continência ao tomar posição.

Minha Legião.

— Vamos montar uma estratégia ao estilo Destruição. — digo, sem deixar passar despercebido a ansiedade de cada um de meus soldados e cada olhar atento. — Vamos nos rebelar, Destruidores. A Comandante de vocês está de volta.

Então batem continência mais uma vez, seus passos fazendo com que a base inteira vibre.

Olho de esguelha para Khalled, e ele está me encarando como nunca antes.

Um misto de orgulho, admiração, respeito. E algo mais. Ele inclina a cabeça em minha direção, um sorriso nos lábios.

Que a Rebelião comece.

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