Aproxima-se


KHALLED ESTAVA começando a ficar preocupado. Pela primeira vez, parecia que o maior Comandante de Asgoldien havia se deparado com um concorrente à altura. Nada o fizera sentir-se ameaçado daquele jeito em muito tempo, tanto que ele nem sequer lembrava como era a sensação.

Estava encurralado.

A pessoa que o perseguira, seja lá quem fosse, lhe passava uma confiança estranha. Uma ira mantida em controle, uma calma calculada. Até o modo como andava era diferente, como se estivesse acostumada a exercer esse tipo de poder sobre os outros, como se fosse comum ser a predadora em uma caça.

E Khalled era a presa.

- O que você quer? - ele perguntara ao estranho encapuzado, que se mantinha escondido entre as sombras.

Teve apenas o silêncio como resposta.

Khalled não queria mesmo arranjar confusão. Fora treinado para lutar, era verdade, mas evitava esse tipo de confronto desnecessário pelo qual as pessoas brigavam só pelo prazer de causar dano ao outro à qualquer custo.

Já passara daquela fase estúpida chamada adolescência.

- Perda. Dor. Destino. - a voz sussurrou, tão baixo que as palavras quase foram levadas pelo vento frio.

Khalled franziu a testa, levando a mão ao cabo da espada. Aquilo já o estava irritando.

- O que você quer comigo? - repetiu ele, deixando explícito em seu tom a ameaça caso o estranho tentasse algo.

- Dar-lhe um aviso. - disse a sombra, tão baixo quanto havia dito antes, o som de sua voz parecendo se afastar cada vez mais. - Cuidado com quem encontra pelo caminho. Sua maior conquista poderá se tornar seu maior fardo.

Então ele acordara, sozinho e ensopado de suor, com a respiração tão acelerada que o ar parecia entrecortado.

A fogueira que ele havia feito já tinha se tornado nada mais que madeira queimada espalhando fumaça entre as árvores, a penumbra total ao seu redor.

Três dias. Três dias seguindo as instruções do mapa que sua mãe lhe dera, viajando à cavalo durante todo o dia e parando para acampar somente quando o sol se punha. Mais dois dias o separavam do tão misterioso Reino de Arasdil, uma terra cheia de lendas e histórias míticas.

Ele não acreditava no que estava fazendo.

Se oferecer para matar uma besta aparentemente imortal que assassinava crianças há mais de um século, tudo para salvar um reino que nem deveria ser seu.

Onde havia se metido?

Com um suspiro de exaustão, Khalled se levantou, apanhando as botas. O sol ainda não tinha nascido, mas ele não se importava de voltar à sua jornada antes do previsto. Não conseguiria dormir, de qualquer forma. Parecia que quanto mais ele se aproximava de Arasdil, mais sonhos estranhos como aquele vinham assombrá-lo durante a noite.

Havia acampado próximo a um rio, já pensando na manhã seguinte. Enquanto ele esperava seu cavalo negro terminar de matar a sede, aproveitara também para jogar um pouco de água gelada no rosto, na tentativa de lavar os pensamentos que insistiam em atordoá-lo.

Khalled ergueu os olhos para o céu, onde os primeiros raios solares ainda surgiriam. Observando com atenção, ele percebeu inesperadamente que havia estrelas. Estrelas pequenas, quase apagadas em meio ao amanhecer tardio. Estrelas que brilhavam em volta de uma outra; maior e mais brilhante, que parecia se destacar entre suas irmãs.

E de repente, como num flash de memória, olhos violetas com pontos prateados vieram à sua mente, distantes e enevoados como num sonho.

Sacudindo a cabeça para tentar se livrar do súbito torpor, ele juntou as mãos em concha e jogou mais um pouco da fria água do rio em seu rosto, pensando que só podia estar enlouquecendo de vez.

ESTHER NÃO CONSEGUIRA pregar o olho durante a noite. Tudo em que ela pensava era no que poderia ser que sua mãe estava tramando. Tirá-la assim de seu posto no Exército, de modo tão abrupto? Não fora por acaso. A Rainha tinha um tipo diferente de esperteza, daquele tipo que você sabia quando estava sendo usado pelo simples fato de sentir algo estranho no ar.

Com uma última mordida, Esther jogou o que restara de sua maçã pela grande janela de vidro de seu quarto na Torre Leste, onde apenas a família real possuía aposentos. Seguindo com o olhar a trajetória do que sobrara da maçã, ela sorriu consigo mesma ao ver que acertara bem a cabeça de Logan, que estava conversando com um guarda no pátio de entrada do Castelo. Ele se virou na direção da princesa, parecendo atordoado.

Esther acenou de sua janela, com um sorrisinho irônico no rosto. Ela tinha que pensar melhor. Algo estava passando despercebido entre os acontecimentos. Sua mãe queria que ela começasse a acordar para vida de rainha, se preparasse para se tornar a futura soberana de Arasdil. Fez com que ela abandonasse o Exército oficialmente, mas não podia impedi-la de ir e vir da Base de Treinamento dos soldados quando bem quisesse. A Princesa sabia que mais cedo ou mais tarde teria que assumir o fardo que era o trono, só não queria ter que se acostumar com a ideia tão rápido.

Respirando fundo, ela se levantou do banco acolchoado ao lado do parapeito da janela, sentindo um gosto amargo na boca. Tivera dez anos para se acostumar com a ideia. E ainda se recusava a aceitar.

A verdade era que Esther odiava Arasdil. Odiava o tempo sempre frio, odiava os enormes muros que cercavam o Castelo; odiava com todas as forças se sentir presa e obrigada a viver naquela realidade amaldiçoada. E mais que tudo, ela não conseguia suportar o medo no olhar das pessoas quando o inverno chegava, a besta da Floresta Negra se tornando uma sombra à espreita de todos.

Uma série de batidas na porta a tirou de sua raiva, e antes que ela pudesse sequer perguntar quem era, sua mãe adentrou no aposento com toda a opulência de uma Rainha, usando um belo vestido verde-musgo com bordado dourado.

- Ainda não se vestiu? - sua mãe perguntou, encarando-a de cima a baixo, fechando a porta atrás de si.

Esther cruzou os braços, se recostando na mesa onde guardava papéis de carta e itens de correspondência, numa pose desleixada e definitivamente nada feminina, a qual sabia que sua progenitora reprovaria.

- O que você quer? Vai ditar até o que eu visto agora? - indagou, semicerrando os olhos. - Acho que já estou grandinha o bastante para escolher minhas próprias roupas.

A Rainha suspirou, tentando manter a expressão paciente, o que divertiu a Princesa. Ambas sabiam que o temperamento ruim era herança de família. Ver sua mãe tentar lutar contra isso fazia com que Esther sentisse mais vontade de irritá-la.

- Você sabe que hoje é o Banquete Real em homenagem ao Rei e aos Soldados que voltaram do confronto de nosso reino com Hawye.

Esther passou um dedo pela superfície da mesa de madeira, de maneira despreocupada.

- E daí?

- Como assim, "e daí"? - a Rainha Keyse respondeu, seu tom saindo mais alto que o normal. - É sua obrigação como herdeira de Arasdil estar presente. E estar bem vestida. - acrescentou, olhando para o uniforme de couro que a filha geralmente usava.

- Isso soa tão engraçado. - disse a Princesa, a frase carregada de ironia. - O Banquete é em homenagem ao Rei e aos Soldados. Não sou nem um, nem outro. Então por que devo estar lá? - ergueu o olhar para os olhos azuis escuros de sua mãe, que estavam fixos nela. - Eu não gosto desses eventos. Não gosto de ficar dando sorrisos falsos ou mantendo conversas banais. E eu não sou obrigada a socializar com a ralé e fingir que gosto disso. Esse tipo de atuação é dever da Rainha, não meu.

E antes que pudesse ao menos piscar, sua mãe desferiu um tapa contra seu rosto. A pele de Esther ardia, pinicando sob o toque da mulher a sua frente, que segurava seu queixo com força.

- Eu não vou mais admitir que você fale comigo dessa forma. - grunhiu, os olhos parecendo se tornarem pedras de gelo em sua face. - Sou sua mãe e soberana e exijo respeito. Nunca aguentei desaforo de seu pai e agora vou aguentar de você? Se ponha no seu lugar!

Esther estava chocada. Sua mãe nunca havia encostado um dedo nela antes. Nunca. Ela não sabia se esse tempo todo tinha tido suas más atitudes relevadas por causa de Angeline, mas era o que estava parecendo. E pelos últimos acontecimentos, estava claro para ela que seus pais haviam decidido que esse privilégio acabara. O luto acabara. Sua irmã estava morta. A vida tinha que seguir.

Fim.

Esther estava tremendo. Por um segundo, ela sentiu as lágrimas inundarem seus olhos, só para desaparecerem tão rápido quanto surgiram. Ela não era fraca. Era uma lutadora. Era uma espada forjada pelo sangue e pela dor.

Ninguém era digno de vê-la chorando.

Com um toque, ela afastou a mão de sua mãe de seu rosto, contornando-a para chegar até a porta.

- Onde você pensa que vai? - a Rainha perguntou, indo atrás dela.

- Não é da sua conta. - a Princesa respondera, batendo a porta com tanta força que fizera com ela mesma estremecesse.

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