Algo que se cria, toma forma e é destruído
EU ESTAVA NA academia do Castelo fazendo abdominais para manter meu condicionamento em forma quando Logan entrou, caminhando na minha direção e parando bem a minha frente, seus olhos fixos em meu rosto.
Continuei me exercitando como se ele não estivesse ali.
Dez minutos depois, quando eu estava suspensa do chão enquanto malhava meus braços numa das barras de ferro espalhadas pelo salão, ele ainda me encarava sem um pingo de vergonha ou constrangimento por estar sendo completamente ignorado.
Soltei a barra, pousando no piso forrado de borracha sem emitir ruído algum, me encaminhando para os pesos enfileirados na grande estante que ficava no canto do cômodo.
Um suspiro de frustração foi ouvido atrás de mim.
— Por quanto tempo você vai continuar fingindo que eu não existo? — ele perguntou, seu tom de voz repleto de cansaço.
— Eu não estou fingindo que você não existe — respondi, me virando para olhar em seus olhos. — Há somente o fato de você ser tão insignificante a ponto de não merecer nenhuma reação minha. Achei que já tinha deixado isso claro da última vez.
Ele sacudiu a cabeça, como se estivesse descartando minhas palavras e as atribuindo a um surto de raiva qualquer que tivesse feito com que eu as dissesse sem pensar. Mas eu havia dito cada uma delas muito consciente de seu peso.
— Eu vim aqui para te dizer que estou deixando tudo isso de lado.
— Seja mais claro — sibilei.
Logan respira fundo, finalmente dando sinais de que o modo como eu o estava tratando começava a surtir efeito.
Bom.
— Eu quis dizer que desisti do posto como Comandante.
Olhei para ele com verdadeira atenção pela primeira vez na conversa, erguendo uma sobrancelha em descrença.
— Ah, é mesmo?
— Ter aceitado ocupar o seu lugar daquela maneira não é algo que me orgulho de ter feito. — ele disse, passando a mão pelo rosto. — Eu fui cego pela raiva quando sua mãe disse que pessoas como eu não eram boas o suficiente para alguém como você. Queria provar o meu valor de alguma forma e achei que a chance de me tornar mestre da legião mais poderosa de Arasdil era a minha melhor chance.
— Mesmo que precisasse passar por cima de mim durante o processo. — completei, com um sarcasmo cheio de ressentimento.
— Esther. — murmurou, como se implorando para que eu levasse a sério o que ele estava dizendo depois de tudo o que havia acontecido entre nós. — Vim para pedir seu perdão. Eu errei e me arrependo disso, realmente me arrependo. Fui tolo e egoísta e não pensei em você. Mas eu não deixei de te amar.
Sua declaração surtiu em mim um efeito cômico tão extremo que senti uma vontade incontrolável de rir.
— Por favor, Logan — pedi, a voz transparecendo a gargalhada que tentava segurar. — Você se ouve? "Fui tolo e egoísta e não pensei em você, mas não deixei de te amar?" Você ao menos sabe o que é amor? Porque eu tenho certeza de que alguém que me amasse não teria me desprezado do jeito que você desprezou. Está certo quando diz que minha mãe o humilhou, mas o que você fez comigo não foi diferente. Você me trocou pela posição mais alta na minha legião. Você me deu a prova desse amor do qual tanto fala naquele momento. E acredite quando digo que foi o bastante.
Ele parecia não saber como reagir. Tenho certeza de que pensou que ao dizer que me amava teria meu perdão garantido, o que mostra que me conhecia menos do que eu esperava. Parecendo perturbado, Logan ensaia alguns passos na minha direção, mas eu ponho a mão entre nós, impondo um limite.
— Por tudo o que é mais sagrado, não ouse tentar me tocar, porque se o fizer, eu juro que não sei do que sou capaz.
Ele para no ato.
— Esther...
— Quantas vezes vou ter que repetir para que você comece a me entender de verdade? — ergo a voz, a impaciência por ainda ter que explicar algo que deveria estar claro começando a ganhar forma sob a frieza. — Seja lá o que nós tínhamos, acabou. Para sempre.
O homem de cabelos pretos que uma vez fora meu noivo e uma das pessoas em quem eu mais confiara ficou em silêncio por um momento que se tornou longo demais, até que disse, inclinando a parte superior do corpo em uma reverência:
— Como quiser, Vossa Alteza.
Então ele saiu.
Eu mentiria se não dissesse que estava aliviada.
⚔️
Mais tarde, quando eu estava deixando a Academia enxugando o rosto suado pelo esforço com uma toalha, vejo a sombra de Khalled à espreita no corredor que ligava o cômodo ao pátio central do castelo.
— O que está fazendo aqui? — questiono, sentindo uma pequena brisa gelada vir até mim, aliviando o calor em minha pele.
Ele levanta a cabeça em minha direção, saindo de seu lugar junto à parede para ficar de frente comigo.
— Estava procurando por você.
Continuei olhando-o com desconfiança.
— É, percebi. — falei, tentando me controlar para não revirar os olhos. —O que eu quero saber é quem te disse que eu estaria aqui.
O príncipe de olhos incrivelmente verdes repuxou os lábios no que pareceu ser o menor dos sorrisos. A expressão caía bem nele.
— O General do Exército do seu pai.
— Kevin. — completei, ao que ele respondeu com um aceno de cabeça.
— Ele disse que quando passava muito tempo sem ser vista só poderia estar em dois lugares. — Khalled ergueu o olhar para o meu, algo dentro deles brilhando como se tivesse descoberto um segredo. — Em um deles eu já a havia encontrado mais cedo, então presumi que deveria estar aqui.
— Espero de verdade que não esteja me seguindo, porque isso vai ser um problema.
Ele sorriu de verdade dessa vez, mostrando os dentes perfeitamente alinhados sob a luz.
— Posso garantir que tirando este, nossos encontros anteriores foram todos inocentes obras do destino.
Estreitei os olhos, incerta se concordava com a afirmação dele. Para mim, nada que envolvesse a palavra "destino" era inocente.
— Por quanto tempo você ficou parado ali? — apontei com o queixo para o canto onde ele estava quando o vi.
— Uma hora ou duas. Você realmente se empenha nesse lance de se manter em forma, não é? — ele pareceu genuinamente surpreso.
— Até parece que você não sabe o porquê. — ironizei, passando por ele.
— Eu deveria saber? — ele perguntou, me alcançando um segundo depois.
Parei de andar.
Ele parou atrás de mim.
Me virei para encará-lo:
— Como você pode não saber? — indaguei, franzindo a testa. Ele estava aqui havia pouco tempo, era verdade, mas que tipo de príncipe primogênito não era obrigado a conhecer a reputação do reino ao qual era convidado? Que tipo de pessoa vinha à Arasdil sem saber da princesa e herdeira do Trono da Espada de Prata, a única guerreira da realeza em todo o continente?
— O modo com o qual você está me olhando está começando a me fazer sentir como um idiota. — ele murmurou, olhando para o piso de pedra.
Respirei fundo, estufando o peito:
— Eu sou a Comandante da Destruição, a Legião mais poderosa do Exército Arasdilano. — declarei, fazendo com que ele imediatamente erguesse o olhar para mim, seus olhos fitando os meus em uma reação que eu identifiquei como sendo choque.
— Você não está tirando uma com a minha cara, está? — ele perguntou, a voz saindo tão trêmula que me surpreendeu por não ter tropeçado nas palavras.
— Ah, claro que estou. — pisquei, sarcástica. — Porque eu pareço muito o tipo de pessoa que fica tirando sarro da cara dos outros no meio de um corredor.
Ele olhou para mim, o rosto cético.
— Na verdade, você parece.
Eu não sabia se deveria interpretar isso como ofensa, mas fiquei boquiaberta por sua voz transparecer o fato de que ele ainda não estava acreditando em mim.
— É óbvio que eu não mentiria sobre ser a porra de uma comandante!
Ele deu um passo para perto de mim, a distância entre nós diminuindo perigosamente.
— Eu sou Comandante do Exército de Asgoldien. — disse, assumindo um tom grave.
Eu dei uma risadinha.
— Tudo bem, eu já entendi que você não está acreditando em mim, mas esta conversa não precisa se tornar um joguinho de quem mente melhor. — dei dois tapinhas em seu ombro, me preparando para dar-lhe as costas.
— Eu não estou mentindo! — gritou.
— E nem eu! — gritei de volta, acenando ainda de costas para ele, atravessando o pátio do castelo.
⚔️
NÃO PODIA SER. Khalled começara a ouvir as histórias sobre o soldado que entrara no Exército Arasdilano sem a menor perspectiva de sucesso e logo se tornara a arma mais poderosa do reino alguns anos atrás. Usava o seu exemplo para motivar seus próprios soldados em Asgoldien, elogiando e enumerando as vitórias que levaram a até então desconhecida identidade a se tornar Comandante da Legião mais brutal do reino da Espada de Prata.
E agora descobria que ele era ninguém menos ninguém mais do que a garota que o derrubara com um chute nas bolas no meio da estrada.
Esther.
A Princesa de Arasdil.
Khalled sentia vontade de rir. Como podia ele nunca ter perguntado a ela onde aprendera a se defender com tamanha técnica? Como nunca tinha levantado o detalhe do uniforme de couro que ela estava usando quando se conheceram, feito de modo semelhante ao que ele mesmo possuía como Comandante? Ou o fato da costura embutida que havia na roupa dela ser feita especialmente para esconder um punhal?
Ele deixara todas essas coisas passarem despercebidas. Se ela fosse alguma espiã, com certeza o teria enganado sem fazer esforço nenhum. Deus, alguns dias fora de Asgoldien e ele já estava se deixando esquecer da importância da missão que o levara até ali. Ele não podia se dar ao luxo de baixar a guarda dessa maneira.
Mas ele tinha baixado para Esther. E, querendo ou não, o fato de que ela havia confiado nele para ser seu parceiro na mentira que estava elaborando para seus pais significava que ela também tinha deixado uma parte de sua armadura de lado para que pudessem fazer aquilo dar certo.
O que não iria acontecer se surpresas como aquela surgissem no meio do caminho deles outra vez.
— Espere. — Khalled correu até ela, ultrapassando-a.
— Escute, se você veio atrás de mim só para fazer alguma piada sobre eu estar inventando ser a...
— Eu acredito em você. — ele a cortou, antes que ela acabasse entendendo tudo errado. — Desculpe pelo que eu disse antes, fui um bosta. Nunca passou pela minha cabeça que você não fosse capaz de ser a Comandante de Arasdil. Na verdade, você é exatamente como eu imaginei que seria. Você... Nossa, por favor, me desculpe de verdade. Eu fui pego de surpresa.
Ela ficou em silêncio por um momento, e ele achou que tivesse estragado tudo. O que dissera havia sido inconsequente; ele sofrera enquanto estava no Exército por ser o filho bastardo do rei, então não podia nem imaginar o quanto teria sido difícil para ela, sendo uma mulher no meio de um bando de homens que haviam sido criados para pensarem que eram o sexo mais forte. Mesmo que não fosse a intenção de Khalled, questioná-la se estava brincando com ele logo após ela ter declarado que liderava uma legião de soldados fora de uma insensibilidade e falta de noção extremas. Ele próprio não acharia errado se ela estivesse prestes a socá-lo no rosto. Ele merecia, depois de ter sido tão estúpido.
Para sua surpresa, o que ela disse foi:
— Eu desculpo você. — então suspirou. — É normal ter essa reação, não é a primeira vez que acham que estou brincando quanto a ser parte importante de um Exército.
A tom resignado que ela tinha usado ao dizer aquilo só fez com que ele sentisse mais raiva de si mesmo.
— Sim, pode não ser a primeira vez, mas não deveria ser normal. — a pressão que havia no maxilar do príncipe de Asgoldien ao respondê-la foi tanta que ele quase esperou que seus dentes quebrassem. — Você é mais do que capaz de Comandar uma Legião, e não me admira nem um pouco que logo a que está sob sua jurisdição seja a mais poderosa. Eu conheço muito pouco sobre você, mas sei que tem um espírito forte demais para ser mantido somente dentro de um vestido de festa ou debaixo de alguma coroa besta. Então, não, não é normal que achem que você não possa ser parte importante de qualquer lugar do qual queira fazer parte. Deveria saber disso.
Pela primeira vez desde que a conhecera, Esther parecia estar sem palavras. Porém, como ele começava a perceber que sempre acontecia no que dizia respeito a princesa de Arasdil, quando ele achou que não diria mais nada, ela conseguiu surpreendê-lo mais uma vez:
— Você foi a única pessoa que já disse isso pra mim. Obrigada, Khalled.
Ele a olhou nos olhos, sem poder evitar o fascínio provocado pela intensidade de cor violeta prateada que encontrou ali.
— Você não precisa agradecer. Não por isso. — então sorriu para ela, arqueando uma sobrancelha castanha-clara: — Você se deu conta de que é a primeira vez que diz meu nome?
Um indício de sorriso se formou no rosto dela e foi a coisa mais dolorosamente bela que ele já viu.
— Você deveria fazer mais vezes. — deixa escapar.
— O quê? — ela franziu a testa para ele. — Dizer seu nome?
O príncipe de Asgoldien sentiu a ponta das orelhas queimarem, envergonhado.
— Isso também. Mas eu estava falando sobre sorrir. Seu rosto se ilumina de um jeito...
A expressão dela endurece instantaneamente.
— Eu não gosto de sorrir. — diz, voltando a caminhar em direção ao pátio principal do Castelo. — Estar feliz não é algo que me interesse muito.
— Essa é coisa mais triste e assustadora que alguém já me disse.
— Bom, você não passou tempo o bastante comigo.
Ele concorda.
— Teremos que mudar isso se quisermos fazer com que sua mãe acredite que estou te cortejando. — ele apoia a mão sob o queixo, como se pensasse. — Amanhã, você vai me levar em um tour pela cidade.
Ela faz uma careta.
— Eu não gosto muito de ficar perto das pessoas.
— Não vou julgar, mas mesmo assim vou precisar te tirar da sua zona de conforto. Tenho que ir à cidade amanhã e você precisa convencer a Rainha do nosso interesse mútuo um pelo outro, então nada melhor do que vir comigo. O que você me diz?
— Parece que eu não tenho muita escolha. — bufa.
Ele ri.
— Que princesa mimada.
— Tudo bem, já chega. — ela diz, revirando os olhos. — Estou indo embora. — completa, subindo as escadas em direção aos aposentos reais.
— Boa noite, princesa! — ele grita, as mãos em forma de concha ao redor da boca.
— Adeus! — foi a exclamação dela em resposta, antes de desaparecer degraus acima.
O príncipe de Asgoldien balança a cabeça, sorrindo consigo mesmo. A evolução que tinham feito com o relacionamento deles deveria ser aplaudida de pé. Mesmo depois de tantos altos e baixos, talvez pudessem se tornar amigos no final de tudo.
E ele estava tremendamente feliz por isso.
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