A Vida é dura em Arasdil
Kihast, Capital de Arasdil,
Dez anos depois.
EU OLHAVA ATENTAMENTE para todos os novos recrutas enfileirados a minha frente. A era primaveril já havia se iniciado e os alistados para o Exército Arasdilano se encontravam instalados nas acomodações para soldados em treinamento, um lugar construído na Fortaleza de Kihast, lar de todas as grandes legiões e...
De certamente alguns bebês chorões que já deveriam estar se achando os donos do pedaço por saberem como segurar uma espada.
— Imbecis. — Kevin resmungara, hoje mais cedo, quando eu ainda estava analisando os meus horários em meu gabinete particular.
— Se é usado "com licença" ao adentrar em cômodos que não são de sua propriedade, de acordo com as regras básicas da etiqueta. — eu disse, sem erguer os olhos do papel.
— Os novos recrutados são uns imbecis. — ele continuou, com raiva. — Mal chegaram e já tenho que lidar com dois valentões que acham que sair metendo a porrada em todo mundo que vêem pela frente é demonstração de algo a mais do que vontade de chamar atenção.
Parei de olhar os papéis que estavam espalhados pela mesa de madeira a minha frente.
— Valentões?
Kevin me encarou, seu olhar amendoado encontrando o meu por uma fração de segundo, tempo suficiente para que sua expressão se suavizasse.
— Sim. — ele deixou escapar um suspiro cansado. — Valentões, seu tipo favorito.
— Por favor. — falei, minha voz saindo mais rouca que o normal. — Me diga que eles estão designados a treinarem comigo, porque eu vou gostar muito de pegar pesado com esses amadores arrogantes.
— Para sua infelicidade e felicidade deles, todos os problemáticos ficaram sob minha responsabilidade.
Revirei os olhos, me levantando da cadeira.
— Você bem que poderia trocar comigo. — eu disse, andando na direção dele. — Eu preciso me divertir um pouco antes de ser obrigada a comparecer à reunião da minha mãe.
— Você sabe muito bem a tragédia que a nossa troca quase causou da última vez. — Kevin lembrou, sua voz assumindo um tom de advertência.
Bufei, revirando os olhos mais uma vez.
— Eu já disse que só bati a cabeça do Carter doze vezes contra a parede. — esclareci, pegando a espada com cabo de prata cravejada de safiras que ele me estendia, prendendo-a no suporte que havia em minhas costas. — E ele tinha me chamado de coisas bem feias antes disso.
— Foram treze vezes. — Kevin corrigiu, abrindo a porta do gabinete para que eu saísse, vindo logo atrás de mim em seguida. — Catorze, se contarmos com o chute que você deu nele e que o fez bater com a cara no chão.
— Você gosta mesmo de dramatizar as coisas. — eu disse, atravessando a ponte que ligava o gabinete ao campo de treinamento. — Eu gosto de ir direto aos objetivos: Carter está vivo?
— Sim.
— Ficou com alguma sequela que afete o desempenho dele como ser humano?
— Não.
— Se tornou um soldado mais respeitoso e um homem de caráter considerável depois da surra que lhe dei?
— Sim.
— Você tem que admitir que meus métodos são eficientes, Kevin. — declarei, descendo as escadas que levava até a entrada do campo.
— Seu métodos são brutais.
Um sorriso quase se formou em meus lábios.
— Como você sabe que eu simplesmente adoro essa palavra, vou interpretar como um elogio.
— Esther...
— Você está sendo molenga de novo, meu amigo. — contive o riso. — Quantas vezes vou ter que repetir que os meios justificam os fins?
— Carter passou um mês em coma! — ele disse, exasperado.
— Você deveria me agradecer. — falei, apontando para ele com o indicador. — Deixei Carter descansar tempo suficiente para não ter desculpas e evitar mais uma vez a noite de sexo selvagem de vocês dois.
Kevin me puxou pelo braço, fazendo com que eu fosse forçada a encará-lo:
— Isso não tem graça. — rosnou. —Fica fazendo piadinhas das minhas razões para evitar o seu treinamento com os novos recrutas, mas você sabe tão bem quanto eu que está se tornando cada vez mais violenta e isso é um problema grave. Meu pai já conversou comigo mais de uma vez sobre a possibilidade de suspender você de seu posto como Comandante da Destruição.
Mantive o rosto inexpressivo.
— O Capitão Loeztern nunca faria algo assim. — eu disse, segura. — Fui eu que criei a Destruição. É minha Legião, e é a melhor de toda Arasdil. Suspendê-la seria um retrocesso enorme para todo o Exército.
— É aí que está: ele está pensando em suspender você, não a Legião. Estou falando de colocar outra pessoa em seu lugar, Esther. Substituí-la.
Cerrei os dentes.
— Ele não ousaria.
— Ousaria sim, e você sabe. — Kevin disse, sem desviar os olhos dos meus. — Meu pai é o único homem neste Exército que não tem um pingo de medo de você e o único que está em uma posição acima da sua. Ele ousaria sim, se julgasse ser necessário.
— Isso é inconcebível. — eu disse, sentindo meu rosto esquentar. — Sabe o que está parecendo? Algum tipo de complô contra mim. Só pode ser coisa da minha mãe.
— A Rainha? Mas por quê? — Kevin franziu a testa.
— A pergunta certa seria porquê não? Ela nunca quis que eu me envolvesse com nada que não tivesse como objetivo me tornar menos ogra e mais rainha. — estalei a língua, sentindo um gosto amargo na boca. — E todo mundo sabe que seu pai sempre faz o que ela manda.
Kevin deu uma risadinha, balançando a cabeça, descendo o restante dos degraus que faltavam para chegar ao campo.
— Do que você está rindo? — perguntei, com raiva por ele parecer estar debochando do que eu havia dito.
— É a Rainha. Todo mundo faz o que ela manda.
Então me deixou parada no meio dos degraus, seguindo em direção ao grupo de homens que estavam espalhados pela pista de treinamento, esperando pela chegada de seus instrutores.
Soltei o ar pela boca, sentindo o costumeiro formigamento na marca de nascença em formato de estrela que havia no meu ombro. Pegando impulso no corrimão de ferro, saltei pela lateral das escadas, pousando em pé no gramado. Caminhando de modo tranquilo, segui atrás de Kevin, as mãos nos bolsos de trás da minha calça de couro, minha trança bem presa batendo contra a minha cintura.
Kevin chegou primeiro à base, é claro, mas não fazia diferença. Eu era a Comandante da Destruição, era a mente brilhante e calculista por trás de todas as nossas maiores vitórias em nosso conflito recente com o Reino de Hawye, que começara quando o filho do rei e um grupo de seus amigos nobres tentaram invadir as fronteiras de Arasdil duas luas cheias atrás, assaltando uma de nossas tavernas próximas ao Palácio, sendo presos durante cinco dias até que o pai do príncipe o localizasse e exigisse um pagamento pela sua prisão. Meu pai, desagradado pela invasão e roubo, negou, - decisão que eu aprovara totalmente, - o que gerou uma grande batalha logo mais.
Destruição fora mandada para luta em seguida.
Eu não estava autorizada a marchar na linha de frente, mas eu podia garantir de que cada passo dado fosse medido, pensado, analisado de todas as formas possíveis. A minha Legião era a única parte da minha vida onde eu me entregava de corpo, alma, suor e sangue. E ninguém iria tomá-la de mim, muito menos o Capitão Darren Loeztern ou até mesmo minha mãe.
— Formação! — Kevin deu sinal para o grupo de homens a sua frente, porém mal devem tê-lo ouvido, já que suas atenções tinham como foco a briga entre dois novos recrutados que se desenrolava naquele exato momento.
Eu observava tudo encostada em uma coluna de ferro, a sombra da construção sobre minha cabeça escondendo o meu rosto.
A diferença de tamanho dos brigões era gritante: um possuía pouca estatura e corpo franzino, enquanto o outro era muito alto, uma montanha de músculos em cada braço. Revirei os olhos, fazendo uma careta de enfado. Homens eram tão imbecis. Era óbvio o motivo da briga e todo mundo podia ver: o gigante havia insultado o colega magrelo (que provavelmente havia devolvido o insulto) e agora ambos, com seus orgulhos feridos e cérebros pequenos, iriam resolver na briga o que uma pessoa com o mínimo de intelecto resolveria dialogando.
Não que eu não adorasse uma boa briga, porque, acreditem em mim, era a minha parte favorita em ser Comandante.
— Eu vou acabar com a sua raça, seu rato desgraçado. — o gigante disse, o rosto ensopado de suor.
— Pode vir, então. — o outro respondera, levantando os punhos como se estivesse se preparando para desferir socos a quem chegasse perto.
Por Arasdil, que patético.
— Formação! — Kevin gritara mais uma vez, e pelo menos alguns homens se dignaram a notar a sua presença.
Pobre Kevin, pensei, caminhando até o ponto central da confusão. Deve estar precisando de uma mãozinha de sua Comandante.
— Não ouviram o seu superior?! — bradei, minha voz se sobressaindo de tal forma que todas as cabeças se viraram em minha direção. — Ele disse formação. — repeti, pisando duro entre o espaço que os jovens recrutas boquiabertos abriram para mim. — Então façam a porra da formação!
Em menos de um minuto, todos eles estavam enfileirados, suas respirações aceleradas revelando a ansiedade que estavam tentando esconder em minha presença. Kevin me olhou carrancudo, revirando os olhos na minha direção.
— Você. — indiquei o gigante com o queixo, me virando para encarar o magrelo em seguida. — E você. — ambos se entreolharam, com receio. — Dêem um passo a frente, os dois. São tão machões, por que agora estão parecendo duas mocinhas assustadas? — os dois homens vieram na minha direção, suas expressões petrificadas de medo.
Sorri interiormente. A fama que eu fizera como líder da melhor Legião de Arasdil era um tanto amedrontadora, envolta em lendas de meu temperamento impetuoso e técnicas cruéis. Tudo começara dez anos atrás, quando eu seguira o Capitão Loeztern até o centro da base de treinamento e observara escondida o modo como ele treinava os jovens soldados. Seu jeito sério, solene, sua postura que indicava respeito e força, tudo. Ele era um homem tão imponente, um pilar de força em Arasdil.
E eu queria ser igual a ele.
Comecei sozinha, uma garota frágil e patética que tentava imitar golpes de luta e surrupiava armas que eu nunca poderia aprender a manusear com destreza sem auxílio de alguém experiente. Bailes, roupas elegantes e aulas de etiqueta nunca foram grande atrativo para mim, e de toda maneira, eu era um fracasso monstruoso nessas áreas. Depois da morte de minha irmã, nada era capaz de despertar meu interesse, mas a vontade de lutar foi. E como eu havia emagrecido muito e passava quase todo o meu tempo isolada em meu quarto, desenhando rabiscos que ninguém compreendia e nem sentiam vontade compreender, meus pais decidiram que qualquer coisa - mesmo que não fosse algo que uma futura Rainha devesse se preocupar em aprender, - que pudesse me animar ou me tornar ativa seria bem vinda.
E foi assim que aos nove anos, entrei em treinamento para o Exército Arasdilano. Cresci ao lado de filhos dos criados do Castelo, lutando da mesma forma e sem privilégios por ser filha do Rei. Eu era a única menina no batalhão e por isso muitas vezes ouvi comentários maldosos que desmereciam o meu potencial, mas nunca me importei em discutir; a ignorância era uma dádiva quando se tratava dos cochichos de meus colegas de regimento. Até que um dia, o filho mais velho do Capitão Loeztern, Kevin, resolveu que aquela indiferença sexista já havia ido longe demais. Eu realmente não pensava muito sobre o que as pessoas achavam de mim: meu foco estava em me tornar a melhor, não em intrigas masculinas de garotos que não tinham idade nem tamanho e se auto declaravam homens. Mas Kevin não suportava injustiça, e deu um basta naquilo. Foi a única coisa capaz de me desviar por um curto momento de meu objetivo.
Algumas vezes, haviam pessoas que olhavam por nós sem que nos déssemos conta. E aquele garoto de sorriso fácil e olhos castanhos foi o meu anjo da guarda durante a infância, anjo aquele que hoje eu tinha a honra de chamar de amigo.
O encarei pelo canto do olho. Éramos irmãos, soldados de luta moldados em espadas que agiam em diferentes facetas da força: a misericórdia e a brutalidade.
Deixando as lembranças para trás, minha atenção voltou aos dois homens parados a minha frente:
— Quero nomes. — ordenei.
— Jensen. — o mais baixo falou, olhando para baixo.
— Weston. — o outro disse, em um tom abafado.
— Levantem essas cabeças, quero olho no olho quando eu estiver falando. — declarei, minha voz ressoando no vento gelado que nos cercava, me trazendo um calafrio de outra época. Respirei fundo, o ar virando fumaça ao sair de minha boca. — O Exército Arasdilano se baseia em apenas uma coisa: respeito. Quando respeitamos nossos superiores, nos tornamos soldados leais. E soldados leais, aos olhos de nossos superiores, são algo de valor inestimável em um lugar como o que estamos. Não basta ser forte, vocês têm que demonstrar que sabem trabalhar em grupo, que sabem o que é companheirismo. São essas, entre outras coisas, que formam um soldado honrado. Um Oficial do Rei. Aqui nesta base, todos estão sob teste. Nenhum, independente de tamanho, aparência ou sobrenome, é melhor que o outro. Por isso que o que eu prego é o respeito. Porque a partir do momento em que me torno arrogante, insolente e desrespeitoso, perco meu valor como soldado deste regimento. Não toleramos esse tipo de comportamento. — me certifiquei de cada um estava prestando total atenção em minhas palavras antes de dizer: — Vocês sabem muito bem quem sou e sabem o que faço com quem quebra as regras. Espero que não haja mais situações como essas. Estamos entendidos?
— Sim, Comandante. — disseram todos eles, batendo continência.
Sem dizer mais nada, me virei para falar com Kevin, que me encarava com uma expressão debochada no rosto.
— Parece que você tomou conta da situação. — ele disse, balançando a cabeça. — Vai ficar muito mais fácil para mim agora.
— Quero que você me conte tudo o que sabe sobre a possibilidade de eu ser retirada do meu posto. — falei, em voz baixa. — Vou cercar minha mãe e o Capitão. Se eu tiver certeza sobre o que realmente está acontecendo, posso falar com meu pai assim que ele voltar do Conflito em Hawye. Ele sabe que sou indispensável para o Exército, nunca vai me deixar ser substituída.
— Esther... — Kevin começou, balançando a cabeça. Então, suspirou, concordando: — Estou do seu lado. Mas não quero que isso mude você. Tanto tempo lutando. Não quero que isso te transforme em outro alguém.
— Não seja tolo. — eu disse, resoluta. — Lutar me tornou quem eu sou.
— Só tenha calma. Tente relaxar. — ele disse, pegando minha mão. — Você se sobrecarrega demais. Deveria descansar.
Tirei minha mão da sua.
— Você é tão maricas que às vezes penso mesmo que você e o Carter possam ter tido um caso... — Kevin me deu um pisão no pé. Apertei os lábios, olhando pra ele com raiva. — O que foi isso? Sua masculinidade ficou ofendidinha?
Ele deu dois tapinhas em minhas costas.
— Vá confrontar sua mãe, Sther. — falou, se afastando. — Tenho certeza de que ela quer mesmo ver você.
— Vá à merda. — cuspi.
Ele apenas fez uma reverência rápida, um sorriso petulante estampando seu rosto antes que ele se virasse com a expressão de pedra para os novos recrutas, gritando suas ordens e assumindo a postura do General brilhante que era.
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