A Velha Cigana de Kihast


- DE JEITO NENHUM. - Esther nega com a cabeça pela terceira vez. - Posso não ser mais a Comandante da Destruição, mas ainda tenho uma reputação a zelar. O que vão dizer de mim se me verem montada atrás de você como se fosse uma idiota que não sabe cavalgar? Um símbolo ilustre da revolução feminina como eu não pode fazer tamanho desfavor à causa.

Khalled revirou os olhos. A discussão dos dois se iniciara depois que haviam deixado Silver - que não conseguira se acalmar depois do susto nem mesmo com as muitas tentativas de Khalled de tranquilizá-la - em um estábulo nas proximidades da cidade, onde ela teria água e comida e poderia descansar até o final do dia. O fato era que agora eles só tinham um cavalo para duas pessoas, e Esther simplesmente se recusava a ir com ele.

- Você está sendo preconceituosa. - Khalled fala, impaciente. Velaris bufa, como em um reflexo das emoções de seu dono. - É isso o que pensa de todas as mulheres que montam no mesmo cavalo que um homem está? - ele indaga, descrente.

- Na verdade, sim. - ela responde, gesticulando na direção dele. - Vocês, homens, aprendem a cavalgar desde criança, como se isso fosse um requisito para declarar a sua masculinidade. - então aponta para si mesma. - Já eu aprendi a cavalgar porque meus pais tiveram medo de que eu acabasse morrendo se continuasse tentando aprender sozinha, porque na mente deles garotas não tinham a necessidade de saber dessas coisas. - diz, assumindo uma expressão cética. - Mas na realidade, esse argumento estúpido não passa de uma estratégia para nos tornar dependentes dos homens. Garotas poderiam ser amazonas excepcionais, mas a sociedade não quer amazonas excepcionais, a sociedade quer esposas excepcionais.

- E uma "esposa excepcional" não sai por aí montada em um cavalo, é o que você está querendo dizer? - o príncipe de Asgoldien indaga, usando a mão para proteger os olhos dos raios solares que insistiam em atingi-lo em cheio no rosto. Ao que parecia, o sol resolvera mostrar as caras pela primeira vez desde que ele tinha chegado à Arasdil.

- É exatamente o que eu estou querendo dizer. - ela anuiu, tendo que erguer o queixo para poder olhá-lo no rosto. Na opinião dela, Khalled já era grande demais, mas em cima de Velaris ele parecia quase sobrenatural em toda a sua altura. - Por que não voltamos àquele estábulo e pedimos para alugar uma montaria para mim?

- Por Deus, Esther, você não pode estar falando sério! - ele sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Entretanto, uma olhadela para o rosto dela lhe confirmou que ela estava sim, levando tudo aquilo muito a sério, e ele soube que precisaria mudar de tática: - Pense bem, é uma oportunidade.

- Oportunidade de quê? De passar vergonha? - ela cruza os braços, cheia de presunção.

- Ha-ha. Você é tão hilária. - Khalled lhe dá um sorriso irônico, que logo é substituído por seriedade. - Não, gênio. Eu estava querendo dizer que é mais uma oportunidade de convencer a sua mãe de que eu estou realmente cortejando-a. Quer disfarce melhor do que sermos vistos passeando juntos a cavalo pela capital? Já imagino a notícia se espalhando e correndo até os ouvidos da Rainha, que não vai se importar com o fato de você estar fora de casa, já que vai estar comigo.

A princesa pareceu considerar o que ele havia dito, ficando em silêncio durante alguns segundos antes de dizer, semicerrando os olhos para ele com desconfiança:

- Eu vou fingir que acredito que você está dando todos esses argumentos somente pela sua enorme vontade de me ajudar.

- Ora, Esther, assim você me ofende - ele assumiu uma expressão dolorida, pondo a mão sobre o peito. - Por qual outro motivo eu ofereceria o meu belo cavalo para levar você? Quero dizer, além do prazer que vai ser tê-la por trás me abraçando bem forte.

- Céus, você é tão nojento. - ela fez uma careta.

Ele riu, ignorando-a ao esticar a mão para que ela pegasse.

- Vamos logo com isso.

Esther o fitou com um pouco mais de desconfiança, - isto é, se fosse possível adicionar mais desconfiança ao olhar que ela reservava a ele nos dias normais.

- Eu juro que não mordo. - acrescentou o príncipe, com uma piscadela.

- Se fosse você, me preocuparia com a possibilidade de eu te morder. -rebateu, fechando os dedos ao redor da enorme palma da mão dele. Sendo puxada imediatamente do chão sem nem mesmo ter tempo de registrar o movimento, Esther conseguiu somente ajeitar as pernas antes de montar. Sua surpresa foi evidente quando seus quadris se encaixaram perfeitamente no espaço restante da sela de Velaris, que lhe dava a visão privilegiada que eram as costas largas e sólidas que o homem a sua frente possuía.

Ele inclinou o pescoço para que seus lábios roçassem levemente na orelha dela, dizendo:

- Pode apostar, se quiser me morder, não vou reclamar.

Um arrepio correu por seus braços, sensação que foi logo substituída quando foi tomada pelo incrível aroma de pinheiros seguido por um agradável toque de limão que exalava do príncipe. Ela ainda sentiu algo mais, que não sabia como descrever de outro modo que não fosse puramente dele. Khalled cheirava a calor, e ela estava tão acostumada ao frio que sentiu uma incontrolável vontade de se aconchegar.

Repreendendo a si mesma por tais pensamentos, pigarreou antes de perguntar:

- Aonde estamos indo mesmo?

- Encontrar uma amiga da minha mãe.

- Sua mãe já veio à Arasdil? - indagou a princesa, surpresa.

Khalled negou. Na verdade, nem mesmo ele sabia direito como sua mãe conhecera a mulher que estavam prestes a ir visitar. Carolyn, sua mãe, lhe dissera o mínimo possível, somente dando o nome de uma amiga e insistindo que ele precisava vê-la quando fosse à capital do reino, a cidade de Kihast.

- Não disse muita coisa; somente que tinha uma amiga que havia se mudado para cá muito tempo atrás e que seria gentil da minha parte mandar lembranças, já que em suas correspondências trocadas ela sempre parecera preocupada com o meu bem estar. - ele balança a cabeça. - Em outras palavras, eu tinha que vir atrás da tal mulher de qualquer jeito. - em seguida olha para Esther sobre o ombro. - Acredite se quiser, você não é a única a ter uma mãe controladora.

- Aposto que a minha ganha da sua. - disse ela, repuxando os lábios com amargura. - Você viaja para fora de seu reino sozinho. Eu nunca coloquei os pés fora daqui.

- Na verdade, essa é a primeira vez que viajo sozinho. Todas as minhas experiências fora de Asgoldien foram ao lado dos meus soldados.

Esther franziu a testa.

- Soldados?

O príncipe a sua frente assentiu com a cabeça, um risada suave escapando por seus lábios.

- Eu disse à você que era Comandante em Asgoldien.

A princesa fica em silêncio por um instante, parecendo absorver a informação. Mesmo que Khalled no momento não possa ver a expressão no rosto dela, a possibilidade de que a tenha deixado boquiaberta lhe diverte mais do que deveria.

- O que foi? - ele indagou, depois de um tempo. - Achou que eu estava brincando quando lhe disse isso na outra noite?

- Sinceramente? - ela suspirou. - Achei que estivesse debochando de mim.

Os músculos dele se retesaram ao ouvir a sugestão.

- Eu nunca debocharia de você. - declarou, ressentido.

- Me desculpe. - ela murmurou, surpreendendo a si mesma ao sentir uma súbita pontada de culpa. O tinha julgado mal sem motivo algum, sabia disso e ao mesmo tempo não conseguia se recriminar por tal coisa. Esther não gostava de deixar ninguém se aproximar tanto em tão pouco tempo, mas Khalled era...

Tão diferente de tudo o que tinha imaginado.

- Como é para você? - sentiu a necessidade de perguntar, de repente. - Digo, como é a sua relação com a sua Legião?

- Eu não tenho uma Legião. - foi a resposta dele.

Esther esperou pacientemente que ele lhe desse mais detalhes.

- Eu não sou como você. - continuou Khalled, depois de algum tempo. - Eu não reuni um grupo de soldados e os treinei. Não cuido de uma Legião, cuido do Exército inteiro. Meus homens são criados desde muito cedo para serem soldados excepcionais. Não existe uma divisão de melhores, todos têm que ser os melhores.

- Agora você só está se gabando. - ela alfinetou.

O príncipe sorriu.

- No meu reino, ser soldado é o sonho de todo menino - continuou. - Cada um de nós cresce ouvindo que se tornar um membro do Exército de Asgoldien é a maior honra que se pode adquirir. Não foi diferente comigo, apesar de eu admitir ter sido influenciado em peso pelo meu pai. Ele queria que eu me tornasse um líder, o maior e melhor que todo o nosso povo já conheceu. Não vou mentir para mim mesmo dizendo que sou tudo o que ele imaginou, mas penso que com certeza cumpro as expectativas dele.

- Acho que ele está orgulhoso de você. - Esther concordou, meio a contragosto. Odiava admitir que tudo em Khalled deixava claro o quanto ele fora feito para a vida militar. Seu porte, sua postura, até o jeito como respirava... Tudo gritava a palavra "guerreiro".

- Estaria. - ele retificou. - Ele faleceu um mês atrás. - completou.

- Perdão. - ela pediu, sentindo-se tola de repente. - Eu não sabia.

- Não precisa se desculpar, não tinha mesmo como você saber. A vida é assim, nada dura para sempre.

Mas algumas coisas deveriam durar mais que outras, o pensamento invade a mente da princesa, fazendo com que se lembre de sua irmã gêmea há tanto tempo enterrada. Pensa em como o corpo dela deve ter sido tão, tão terrivelmente estraçalhado para que o enterro tenha sido feito em uma cerimônia de caixão fechado. E pensa, como um punho se fechando ao redor de seu coração, em como deveria ter sido ela no lugar de Angeline.

- Estamos chegando à cidade. - Khalled avisa, instigando Velaris com um toque em seu flanco para que o cavalo acelerasse o trote.

A afirmação do Comandante de Asgoldien foi tudo o que Esther precisou para sentir o som e cheiro da capital que estava logo mais a frente.

Kihast, o coração de Arasdil, era nada mais que um amontoado de ruas e casas e inúmeros comércios. Padarias, barracas de frutas e doces ao ar livre, bares e tavernas, além de um punhado de restaurantes que cobravam o olho da cara por uma refeição que prometia muito mais do que realmente podia oferecer. O horário de comprar começava desde que o sol mostrava seus primeiros vislumbres no céu e ia até bem depois que ele desaparecia no horizonte.

Nada mal para um reino amaldiçoado.

- Escute, há uma coisa que você precisa saber antes de realmente entrarmos aí. - Esther disse, inclinando a cabeça para que cada frase fosse dita diretamente no ouvido de Khalled. - Eu não sou um rosto muito querido para as pessoas, então acho de verdade que deveríamos tentar ao máximo não chamar atenção.

- Isso não faz o menor sentido. Por que você não seria querida? Você é a princesa. - o homem retrucou, parecendo não entender, mas fazendo com que o cavalo parasse mesmo assim. - Além do mais, apesar de desenvolvida, a capital do seu reino não passa de uma cidade pequena. Todo mundo obviamente vai saber que eu sou estrangeiro. Vamos chamar atenção querendo ou não.

- Bom, então me dê um tempinho. - disse ela, começando a se remexer na sela de Velaris, o corpo se aproximando perigosamente do de Khalled.

- O que diabos você está fazendo? - ele grunhiu, quando os seios dela roçaram em suas costas, fazendo com que algumas partes dele que deveriam estar adormecidas começassem a despertar.

- Estou tentando achar as minhas lentes. - ela respondeu, espalmando a mão na coxa de Khalled, usando-a de apoio para que ela se erguesse em uma posição semi-sentada. Um segundo que pareceu durar uma eternidade depois, Esther deslizou a mão para longe dele. - Eu as achei. - declarou, satisfeita.

O príncipe de Asgoldien não podia dizer o mesmo.

- Pra quê você precisa disso? - murmurou, com a voz rouca.

- Para os meus olhos, é claro. - respondeu, em um tom condescendente. - Você deve ter percebido que possuir olhos violeta não é algo muito comum.

- Violeta-prateado - ele corrigiu.

- O que quer dizer?

- Seus olhos. - ele se virou na direção dela, para que pudesse ter um vislumbre de seu rosto. - Eles não são só violetas. Também são prateados. Você nunca percebeu? Há pequenos pontinhos brilhantes neles. Como se fossem estrelas.

Ela o encarou em silêncio, logo em seguida sacudindo a cabeça, atordoada.

- Sempre pareceram só violetas para mim. - deu de ombros. - Acho que deve ser só impressão sua.

Khalled estava começando a ficar irritado. Não era uma impressão. Os olhos daquela mulher eram a coisa mais incrível que ele já havia visto e agora ela estava querendo dizer que era tudo imaginação dele?

- Bom, não é. - resmungou o príncipe. - Você deveria tentar se olhar no espelho de vez em quando.

Ela contraiu o rosto em uma careta chateada.

- Eu acho que se os meus olhos fossem mais do que simplesmente violetas, eu seria a primeira a ter notado. - murmurou ela, secamente, com a atenção voltada para algo entre seus dedos. Khalled então percebeu a minúscula caixinha de madeira com a tampa levantada que havia nas mãos dela, da qual ela havia retirado um pequeno lenço branco. Ao desdobrá-lo, revelou dois pequenos círculos de vidro amarronzados, que levou aos olhos sem a menor hesitação.

- O que são essas coisas? - ele indagou, preocupado, observando-a mexer nos próprios globos oculares com delicadeza.

- Eu as consegui com um vendedor muito inteligente que fabrica todo tipo de coisa. Ele é muito requisitado em todos os reinos, mas vem aqui anualmente mostrar algumas de suas novas criações. Ano passado, ele me deu as lentes de cor. São ótimas quando quero sair sem ser reconhecida. - explicou, erguendo então o rosto para o dele.

Khalled arquejou, assombrado. Os olhos dela... Aqueles extraordinários olhos pelos quais ele era tão incrivelmente fascinado, estavam agora de um castanho opaco e sem vida.

- Essa coisa é horrível. - foi só o que ele conseguiu dizer.

Ela revirou os olhos.

- Não é para ser bonito, é para impedir que as pessoas saibam que eu sou a princesa de Arasdil. Ninguém, exceto o membros da linhagem Kihastian-Arasdilany, tem a coloração dos olhos violeta. Somos reconhecidos em qualquer lugar por causa disso.

- Ah, claro. - ele disse, sarcástico. - Porque ninguém conseguiria reconhecer a herdeira do trono de Arasdil só por ela estar usando umas lentes idiotas. Eu saberia dizer quem você é em meio a uma multidão só pelo jeito como você anda.

- Até parece. - ela desdenhou.

- Não, eu estou falando sério.

- Até parece. - ela repetiu.

- Vá em frente, pode tirar sarro o quanto quiser. Eu não ligo. Cansei de discutir com você. - ele disse, sacudindo as rédeas de Velaris, fazendo com que ele iniciasse um galope veloz no mesmo instante.

Por reflexo, Esther de imediato estendeu os braços para se agarrar em algo, tentando não cair para trás.

E é claro que esse "algo" foi o corpo de Khalled.

As mãos dela instantaneamente passaram por debaixo dos braços dele e espalmaram os músculos de seu peito, proeminentes mesmo sob a camada de couro da roupa que ele estava usando.

Ela podia sentir o coração dele bater. O som reverberou através da pele dela, e como se o seu próprio coração houvesse decidido bater junto ao dele, as batidas dos dois entraram em uma silenciosa harmonia.

- Você não deveria ir tão rápido. - ela murmurou, apoiando o queixo sobre o ombro dele. De repente, se deu conta da intimidade do gesto e sentiu o rosto queimar.

- Não se preocupe, princesa. - ele gritou acima do vento. - Eu não vou deixar você cair.

Antes que ela pudesse pensar em responder, eles romperam pelos portões abertos do muro que cercava a cidade de Kihast, a capital de Arasdil.

⚔️

O RITMO DE VELARIS se torna mais calmo assim que Khalled e eu entramos em uma rua particularmente movimentada. Não é algo chocante; é o centro da cidade e há pessoas por todo lugar: vendedores fazendo ofertas boca a boca, homens e mulheres bem vestidos caminhando apressados para seus destinos e até uma pequena carruagem estacionada em uma esquina.

Mas ninguém a cavalo, o que faz com exatamente todo mundo se volte na direção do enorme cavaleiro misterioso montado no cavalo negro de uma raça puro-sangue tão enorme quanto. Se existe alguém em algum plano acima do nosso, dou graças a ele pelo corpo de Khalled me dar a cobertura da qual preciso enquanto arranco o elástico que prende meu cabelo, fazendo com que as madeixas castanho-escuras ajam como uma cortina para encobrir meu rosto.

Não queria que ninguém me visse. Os cochichos que eu ouvia uma vez ou outra já eram ruins o bastante, mas vir para o local onde todos eles se formavam eram uma verdadeira prova de fogo.

Eu podia ser a princesa, mas o título só me dava imunidade até certo ponto. As pessoas não teriam coragem de me afrontar cara a cara, mas não precisava ser muito inteligente para ver que a opinião pública sobre mim ia de mal a pior. Eu nunca havia sido a herdeira do trono que eles queriam. Não passava de uma substituta; e uma substituta.

Conversar, manter o sorriso no rosto para pessoas que eu nem sequer conhecia, ser sempre simpática e amigável... Aquilo não era para mim. O meu único amigo no mundo era Kevin e eu apostava o meu braço que ele não lembrava a última vez em que me vira sorrir. Aquele sentimento de vulnerabilidade, de permitir a mim mesma me importar com o que acontecia com os outros ou com o que eles pensavam... Eu tentava arrancar de mim a todo custo. E apesar do que havia dito a Khalled, eu não estava preocupada com o fato de julgarem a mulher que havia sido responsável pela criação da melhor Legião de Arasdil, porque me mostrar para aquelas pessoas sempre esteve fora de cogitação.

O medo ainda estava lá, afinal. Não adiantava o fato de que agora eu sabia como manejar uma espada ou derrubar um oponente, eu sempre seria uma covarde. Primeiro me escondendo atrás de Angeline e agora atrás de Khalled.

Senti Velaris parar abruptamente, e na intenção de ver o que estava acontecendo, retirei um pouco do cabelo de sobre os olhos. Khalled saltou do cavalo nesse instante, fazendo com que eu me sentisse subitamente desprotegida.

A que ponto eu havia chegado.

- Venha. - ele disse, estendendo os braços na minha direção.

Dessa vez, aceitei sua ajuda sem hesitar. As mãos dele me envolveram pela cintura com firmeza e Khalled me ergueu como se eu não pesasse nada. Um segundo depois, meus pés tocaram o chão.

Ergui os olhos para ele, sendo recompensada com um estonteante e vívido tom de verde. O Príncipe de Asgoldien podia ter a fantasia de que havia prata brilhando nos meus olhos, mas eram os dele que possuíam a capacidade de impressionar.

Como se estivesse lendo meus pensamentos, ele abriu um sorriso caloroso.

- Vamos a pé daqui.

Franzi a testa.

- Mas e Velaris? Não podemos deixá-lo sozinho.

- É, por isso eu parei em frente a uma estalagem com estábulo. - ele apontou com o queixo para a fachada do local onde havíamos parado, que exibia os dizeres:

"ESTALAGEM DA HARRIS GREEN, ACEITAMOS CAVALOS".

- Oh. Isso explica tudo. - eu disse, envergonhada. Khalled parecia conhecer a capital do meu próprio reino melhor do que eu.

Uma senhora atarantada limpando as mãos em um avental surgiu vinda dos fundos da estalagem. Um sorriso enorme estampava seu rosto marcado por rugas, e seu penteado mal feito deixava vários fios de seu cabelo cacheado caindo por seus ombros.

- Você de novo! - ela exclamou, animada, olhando para Khalled. - Achei que não o veria novamente.

- Senhora Green. - ele sorriu de volta, acenando com a cabeça como cumprimento. - Eu disse que voltaria. E dessa vez eu estou com o meu cavalo.

Ela olhou na direção de Velaris, seu olhar se tornando de puro deleite.

- Ora, ele é lindo! Muito mais lindo do que eu achei que seria pelo modo como você o descreveu. - disse, só então me notando ao lado de Velaris. - Ah! E trouxe sua namorada.

Engasguei, jogando o cabelo para frente do rosto ao fazer uma mesura apressada para a senhora. Khalled produziu um som que só podia ser entendido uma risada.

Ele estava se divertindo até os ossos ao me ver desconfortável daquele jeito.

- Ah, ela não é minha namorada. - ele disse, passando o braço ao redor de meus ombros, me puxando para perto. - Eu até que queria, mas ela parece não gostar muito de mim.

A senhora Green olhou de Khalled para mim umas três vezes antes de finalmente parar e me encarar:

- Menina, o que tem nesse homem para não gostar?! - ela indagou, com indignação. - Vou lhe dizer uma coisa, se eu tivesse a sua idade, já o teria arrastado para o meu quarto e...

- Senhora Green. - Khalled a interrompeu, para o bem de todos nós. - Queremos saber se há vaga para mais um em seu estábulo.

Ela sacudiu a cabeça afirmativamente, parecendo se esquecer de toda a conversa anterior.

- É claro que há! Ainda mais para um cavalo tão bonito. Nunca negaria cuidar de uma criatura tão bela, vai atrair mais fregueses! - então, batendo palmas para chamar um homem que veio correndo do mesmo lugar pelo qual ela havia saído, ela se aproximou de Velaris, tirando um torrão de açúcar mascavo do bolso de seu avental e oferecendo ao animal, que aceitou sem pensar duas vezes. - Por quanto tempo ele ficará?

- Duas horas será o bastante. - Khalled disse, tirando um saco de moedas do casaco. - Obrigado.

A senhora estreitou os olhos para ele ao ver o dinheiro.

- Não seja bobo! Não precisa pagar. O prazer vai ser todo meu!

- Mas eu quero. E a senhora deve aceitar. - Khalled insistiu, sem parar de sorrir nem uma vez. - Por favor, vamos. Não faça com que eu sinta que estou me aproveitando da sua boa vontade.

Ela suspirou, pegando o saco de moedas da mão dele.

- Está bem, está bem. - concordou. - Agora vão embora, deixem eu me divertir. Vou colocar algumas pessoas para trabalhar e eu mesma escovarei o pelo dessa belezura aqui! - então puxou as rédeas de Velaris e o levou até o estábulo ao lado da estalagem, o homem que viera em seu auxílio correndo logo atrás para ajudá-la.

Khalled inclinou o rosto na direção do meu, pondo a mão ao redor da boca como se me contasse um segredo:

- Eles já foram. Agora já pode parar de ser esquisita e de se esconder atrás do cabelo.

Afastei as mexas castanho-escuro de meu rosto e dei uma boa olhada ao redor. Todas as pessoas passavam por nós sem olhar duas vezes, e quando o faziam, era sempre na direção de Khalled. Ninguém estava prestando a menor atenção em mim. Eu podia relaxar.

- O endereço que minha mãe me deu fica mais a frente. - ele disse, apontando para um amontoado de casas coloridas no final da rua. - Mas não vamos lá agora. Primeiro, você vai me dar o tour que prometeu.

- Eu?! - guinchei, erguendo as sobrancelhas. - Khalled, se você está ansioso por explorar os melhores locais de Kihast, eu sou a pessoa errada e a última em que você deveria ter pensado. Veja bem, - comecei, apontando para a estalagem. - Eu não fazia ideia de que esse lugar existia até agora. Essa é a primeira vez que venho à cidade em muito tempo, e sempre que vim, foi cercada por guardas. Não sei absolutamente nada sobre esse lugar, nem sobre essas pessoas, nada mesmo. Então eu acho que deveríamos ser sensatos, abortar a missão e irmos direto visitar a amiga da sua mãe ou seja lá quem ela for. - dei as costas para ele, começando a caminhar na direção em que ele havia apontado anteriormente.

Antes que eu fosse muito longe, Khalled agarrou o colarinho da minha jaqueta, me fazendo dar meia volta.

- Nada disso. - ele disse, parecendo achar graça. - Vamos simplesmente inverter os papéis: eu serei o seu guia.

- Eu não quero que você seja o meu guia - retruquei.

- Bem, princesa, todos nós um dia chegamos a uma situação em nossa vida na qual não temos o que querer. Estamos no centro da cidade, viemos com o meu cavalo e você não quer ser identificada. Você precisa de mim. E em troca, eu preciso que você seja um pouco menos rabugenta e finja estar achando do nosso passeio a melhor coisa que você já fez em toda a sua vida. - então ele entrelaçou os dedos nos meus e saiu me puxando para uma calçada abarrotada de gente, fazendo com que eu tivesse que me espremer para não esbarrar em cada ser humano que passava do meu lado. Reprimi um grunhido de dor quando um homem acertou em cheio o meu pé.

Olhei com raiva para a parte de trás de sua cabeça enquanto lutava para não ser pisoteada novamente. Khalled não parecia ter que lidar com o mesmo sofrimento que o meu, pobre mortal com estatura mediana. O Príncipe era um monstro; devia ter quase dois metros de altura.

- Para onde estamos indo agora? - indaguei, correndo para alcançar suas passadas largas.

- Você já vai ver. - foi a resposta dele, logo antes de virarmos em uma estreita bifurcação entre duas avenidas.

Para a minha total satisfação, estava deserta.

- Finalmente! - exclamei, expressando o meu alívio. - Achei que iria morrer sufocada. As ruas de Kihast são terríveis! - balancei a cabeça, revoltada. - As pessoas andam umas em cima das outras, não têm a menor ideia de espaço pessoal.

- Bem vinda à capital do seu reino. - Khalled saudou, com um sorrisinho estúpido nos lábios.

Olhei para ele por um minuto, entendendo só agora aonde ele estava querendo chegar o tempo todo.

- Isso tudo foi de propósito, não foi? - perguntei, começando a compreender. - Você estava perto de Kihast quando nos conhecemos e eu roubei Velaris de você, o que o obrigou a ter que percorrer a pé todo o caminho até encontrar um lugar para ficar.

- Está certa. - então pensou melhor e completou: - Só esqueceu de acrescentar o fato de que meus pés foram esmagados e que tive que jogar fora o meu melhor par de botas, que foi completamente estragado.

- Não sabia que você tinha um lado vingativo - apontei.

- E não tenho. - ele disse.

- Ah, não? Então o que foi tudo isso? - questionei.

Ele deu de ombros.

- Nada demais. Só achei que seria engraçado vê-la passando pela mesma coisa.

- Não posso dizer que achei muito divertido.

- Eu certamente posso.

- Imbecil.

- Sim, isso e muitas coisas mais. A propósito, já pode soltar a minha mão agora. Se quiser, é claro.

Olhei para baixo, onde nossas mãos continuavam entrelaçadas. Com um susto, saltei para longe dele.

- Eu não tinha me dado conta. - resmunguei, sentindo o rosto queimar pela terceira vez no dia. - E eu já pedi desculpas por ter pego Velaris naquele dia.

Khalled cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha castanho-clara.

- Na verdade, não pediu.

- Está bem, já entendi. - respirei fundo, olhando nos olhos dele: - Me desculpe por ter sido uma ladra de merda e ter te deixado desacordado no meio de uma estrada de merda e ter feito com que você tivesse que caminhar toda essa distância só pra chegar numa cidade de merda em um reino de merda.

- Desculpas aceitas. - ele pôs a mão no meu ombro, me olhando como se eu tivesse feito uma grande coisa. - Você me deixou orgulhoso.

Rangi os dentes, tirando a sua mão do meu ombro com um tapa.

- Sabe, você também é um guia de merda - cuspi.

Ele sorriu, dando um passo na minha direção.

- É, eu sei. - então mais outro passo. - E é por isso - e outro. - Que nós combinamos. - ele estava a centímetros de distância, o seu cheiro me engolindo, a respiração se misturando a minha, a ponta de suas botas resvalando nas minhas.

- Khalled.

- Formamos uma boa dupla. - ele murmurou.

- E-eu... - parei de falar, chocada comigo mesma. Eu estava gaguejando?

Ele recuou, fazendo com que eu recuperasse a consciência que havia perdido momentaneamente.

- Você está com fome? - perguntou, como se não tivesse existido nenhum tipo de clima tenso e esquisito entre nós segundos atrás.

Fiz que sim com a cabeça, sem confiar em mim mesma para fazer mais que isso.

⚔️

POR MUITO POUCO, Khalled pensou, enquanto esvaziava a segunda garrafa de água. Por muito pouco eu não perdi o controle.

Ele tinha que parabenizar a si mesmo por não ter beijado Esther ali mesmo no beco onde estavam, onde ninguém poderia vê-los, onde ninguém poderia interrompê-los. Mas uma espécie de instinto estranho que sempre lhe alertava sobre que decisões tomar em certos momentos lhe fez refrear a si mesmo.

Ela ainda não confiava nele. Não completamente. Não o suficiente para se abrir.

Khalled sabia. Seja qual fosse o motivo que fizera Esther ficar tão dura e sombria e triste, ele sabia que era a barreira que ela colocava entre os dois. Uma barreira que não deixava que ele entrasse e a entendesse. E isso o fazia se sentir tão impotente e fraco que só o que ele queria era abraçá-la e dizer que tudo bem ter medo.

É claro que ele não faria algo assim. Se havia algo que podia tornar seus esforços para se aproximar dela inúteis, esse algo era demonstrar que sabia da existência de sua fraqueza. A maneira como ela se retraía quando estava prestes a sorrir... Ela devia achar que ele não percebia. Mas Khalled se tornara extremamente sensível à ela, de um jeito que assustava até a ele mesmo.

Tudo que ele sabia era que ela precisava de ajuda e que queria ser a pessoa a ajudá-la.

Com o canto do olho, ficou observando-a devorar o sanduíche de carne e tomate que havia escolhido para si mesma na padaria pela qual eles haviam passado.

Khalled sorriu. Ela era linda até comendo.

- Está fazendo de novo. - A princesa disse, olhando para ele de repente.

- Ah, não me culpe.

Ele pôde ver um brilho prateado perpassar pelos olhos dela mesmo sob as lentes.

- Eu não culpo. Sei que sou bonita demais para você. - ela replicou, enfiando o último pedaço de pão na boca e batendo as mãos na roupa para tirar migalhas invisíveis.

- Que bom que sabe. - ele resmungou, se levantando do banco onde estavam sentados.

- É. - ela concordou, engolindo. - Que bom.

O príncipe de Asgoldien deu uma risada baixa, feliz por vê-la à vontade.

- Por que você sorri tanto? - ela perguntou, depois de um minuto. - Está sempre tão alegre assim?

Ele negou com a cabeça, atravessando a rua, Esther seguindo-o de perto.

- Gosto de rir quando estou com você. - disse, apenas.

Ela pareceu não estar convencida. - Por que sou muito engraçada?

Ele riu de novo.

- Não. Porque você é você.

- Humpf. Você é chato.

Quatro meninas com enormes vestidos de diversos tons de azul vieram na direção deles pela ponta oposta da calçada, rindo e conversando alto.

- Venha. - ele disse, pegando a mão dela para saírem do caminho antes que fossem atropelados. - E eu posso ser divertido às vezes.

- Duvido. - ela disse, colocando o pé na frente do dele, que anteviu o movimento e desviou da armadilha. Os ombros da princesa murcharam. - Viu? Chato.

- Perdão, se o fato de eu ter sido treinado para ter reflexos perfeitos a incomoda. - vanglouriou-se, recebendo uma careta como resposta.

Então parou de andar, vendo que estavam de frente para o endereço que sua mãe lhe dera. Ele tirou a carta que levava no bolso do casaco e comparou ao lugar onde estavam, um tipo de chalé pintado de verde com uma lamparina acesa na porta, mesmo ainda sendo pouco mais de uma da tarde. Gravada na porta, havia uma estrela de seis pontas.

O endereço estava certo.

Esther olhou para ele, curiosa.

- A amiga da sua mãe é a Velha Cigana de Kihast?

- Você a conhece? - Khalled se voltou para ela, surpreso.

- Não exatamente, mas todos em Arasdil sabem sobre ela. Dizem que é uma bruxa. - completou, em claro e bom som, atraindo alguns olhares de quem passava por perto.

Khalled apertou os dedos dela entre os seus, fazendo com que a princesa soltasse um ruído de dor.

- Fale baixo! Pelo amor de Deus, Esther, estamos em frente à casa dela e você fala essas coisas desse jeito...

- O que foi? - ela começou, irritada. - Não vai me dizer que tem medo de bru...

A porta da casa se abriu e uma mulher de cabelos vermelhos usando um vestido verde escuro apareceu, segurando um longo cajado de madeira com uma pedra de jade amarrada ao topo.

Os pelos da nuca de Khalled se arrepiaram. Não sabia nada sobre essa mulher, mas sabia tudo sobre si mesmo, e ele tinha sim, muito medo de bruxas.

- Senhora Carmela? - ele perguntou, conseguindo de algum jeito não tropeçar nas palavras.

- Só Carmela. E você cresceu, menino. - foi o tudo o que ela disse, antes de virar as costas. - Entrem.

Esther tomou a dianteira, soltando a mão de Khalled.

- Você a ouviu. - disse a princesa, com um gesto para que ele entrasse e então caminhando em direção à porta logo em seguida. - Vamos.

O Comandante de Asgoldien sacudiu a cabeça, espantando a dúvida. Seu receio não passava de uma bobagem, um medo idiota de quando era criança. Aquela mulher não era uma bruxa.

Ao menos eu espero que não seja, ele pensou consigo mesmo, antes de fechar a porta atrás de si.

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