A quase queda forja confiança
KHALLED JÁ ESPERAVA por mim quando cheguei aos estábulos reais naquela manhã. Parecia estar terminando de escovar o belo pelo negro de Velaris, o cavalo que eu havia pego dele quando nos conhecemos. Mais um ponto positivo à respeito dele: cuidava do seu próprio cavalo quando tinha pessoas que eram pagas para fazê-lo. Significava zelo e verdadeiro apreço e eu admirava isso.
O príncipe de Asgoldien abaixa a cabeça, tentando esconder o sorriso que se espalha por seu rosto. Ele sabia que eu o estava observando.
- Você é fofo. - debocho.
- Você é sorrateira. - devolve, ainda sem erguer o olhar para mim.
- Obrigada.
- Isso é coisa de bandido.
- Obrigada.
Ele franze a testa, ainda sorrindo enquanto abre a baia de seu cavalo, dando tapinhas carinhosos no pescoço poderoso do animal.
- Ele é seu faz muito tempo? - pergunto.
Khalled balança a cabeça em concordância.
- Eu o vi nascer. Está comigo desde quando eu tinha doze anos.
- Isso é bastante tempo. - não estou surpresa. Velaris fora dócil comigo, mas a maneira como demonstrava total confiança em Khalled era visível para qualquer um. - Quantos anos você tem agora?
- Vinte e dois. - ele olha para mim. - E você?
- Dezenove.
Ele ergue as sobrancelhas.
- Você é jovem.
Encolho os ombros, na defensiva.
- Você é três anos mais velho que eu. - acuso. - Grande merda.
- Eu não quis dizer dessa forma. - seus olhos saltam para meu rosto. - Por que você tem sempre que ser tão desagradável?
Cruzo os braços.
- Eu não sou desagradável.
Ele ergue uma sobrancelha, sarcástico.
- Não sou! - sinto as maçãs do rosto esquentando.
- Você me chutou, roubou o meu cavalo e derramou vinho em mim. Tem certeza de que não é?
Desta vez, sinto meu rosto inteiro em chamas. Na intenção de que não note, passo direto por ele de cabeça baixa na direção da baia do meu cavalo, uma égua cor de caramelo de raça arasdilana.
- Foi só porque eu não ia com a sua cara. - justifico, constrangida.
- E agora vai? - ele parece esperançoso.
- Você não é tão ruim quanto eu pensava. - digo, pegando a sela para colocar no animal. Dou uma olhada para trás e vejo que o de Khalled já está pronto para ser montado.
- Obrigado. Eu acho. - ele aponta para a minha égua com o queixo. - Bonita. Qual o nome?
- Silver. - respondo, esticando o pescoço para poder vê-lo. - Você está com pressa? Ainda preciso escovar o pelo dela.
Ele nega. - Precisa de ajuda?
- Obrigada, mas ela é arisca. Não se dá bem com estranhos, então tenho que cuidar dela sozinha. - explico.
Ele se aproxima mesmo assim.
- Eu sou bom com cavalos.
- Ainda assim, eu acho que seria mais seguro se você não chegasse tão perto. - lhe advirto, ao passo que ele continua se aproximando. - Khalled.
Silver começa a bufar, batendo os cascos.
- Shhh, calma garota. - ele diz, esticando a mão na direção dela, que se retrai uma vez antes das mãos dele chegarem a tocá-la.
Espero pelo surto de Silver, mas ele não vem. Observo de olhos arregalados Khalled passar a mão por seu pelo, tranquilizando-a em poucos segundos.
- Viu? Está tudo bem. - ele continua dizendo, alisando sua crina.
- Khalled... - começo.
- Eu gosto quando você diz o meu nome. - ele sussurra, sem erguer os olhos para mim.
Ignoro o frio na barriga que sua voz me provoca.
- Isso foi incrivelmente arriscado. - continuo. - Ela poderia ter partido pra cima de você.
Ele sorri, dando um tapinha no pescoço da minha égua do mesmo jeito que fez com Velaris minutos atrás. - Essa menina adorável? Não. Ela é dócil, só tem problemas de confiança.
- E é por isso que ela passou a confiar em você tão rápido? - questiono, irônica.
- O animal precisa ter certeza de que você não irá lhe fazer mal, por isso é preciso demonstrar da forma correta. Quando ele entende isso, tudo fica bem. - seus olhos encontram os meus. - Não são os animais que devemos temer, mas sim os seres humanos.
Suas palavras fazem com que algumas lembranças ruins venham à minha mente, me deixando sombria. Mesmo não querendo, penso nela. Na besta da Floresta Negra. No terror desenfreado que levou a minha irmã e tantas outras crianças de suas famílias.
- Está tudo bem? - o homem ao meu lado pergunta, parecendo preocupado com a minha mudança súbita de comportamento.
- Está. - minto, tentando afastar o gosto ruim de rancor da boca. - Está tudo bem.
⚔️
Desde o minuto em que Khalled e eu saímos dos limites da propriedade dos meus pais, ele vira a cabeça na minha direção como se fosse dizer alguma coisa e logo em seguida se cala. Sua sequência ininterrupta já começa a me irritar.
- Já é a décima quinta vez - digo.
- O quê? - ele se volta para mim, confuso.
Respiro fundo: - Quinze vezes. Você olhou para mim, abriu e fechou a boca quinze vezes nos últimos dez minutos. Por favor, seja lá o que você quiser dizer, fale logo para que eu possa sair desse estado induzido de ansiedade.
Ele parece envergonhado.
- Pensei que não tivesse percebido.
Olho para ele com incredulidade.
- Você sabe que não é nem um pouco discreto, não sabe? Consigo saber o que você está pensando só de olhar para sua cara.
Um sorriso malicioso se estende por seus lábios.
- Ah, é? - ele parece divertido.
- E no que eu estou pensando agora?
- Está pensando sobre quais são as chances de eu conseguir acertar seus pensamentos. - declaro, presunçosa.
- Errado. Estava pensando sobre o quanto você fica linda quando está segura de si.
- Eu sempre me sinto segura quanto a mim mesma. - rebato, tentando não pensar sobre seu elogio repentino.
- Você chegou exatamente onde eu queria. - ele diz, um movimento nas rédeas de Velaris trazendo-o para mais perto de mim e de Silver, até que nossos cavalos estabelecem um trotar sincronizado, um ao lado do outro. - O que estava fazendo no Bosque dos Orvalhos quando nos conhecemos?
Ergo o queixo.
- Por que o interesse? - pergunto, sem entender o motivo para que ele levantasse o tema depois de tanto tempo.
Khalled dá de ombros.
- Eu penso sobre isso o tempo todo.
- confessa. - Não entendo como foi que acabamos nos encontrando.
Fico em silêncio, considerando suas palavras. Um suspiro escapa de meus lábios sem que me dê conta antes que eu comece a falar:
- Eu e minha mãe tínhamos tido uma discussão séria naquele dia. Não deveria ter chegado a tanto, mas eu estava com raiva dela por uma série de coisas. - eu o observo com o canto do olho e vejo que está prestando atenção a cada palavra que digo. - Minha mãe tem mostrado quanto poder ela pode exercer sobre mim com o passar dos anos. Ela não aceita que não sou mais uma criança e quer amarrar pequenos fios ao redor dos meus pulsos e tornozelos e me fazer uma marionete das suas vontades. E eu não preciso dizer a você que ceder à pressão dela não é uma opção.
A pergunta do príncipe de Asgoldien vem acompanhada de um semblante sério. - Você já tentou conversar com ela?
Dou uma risadinha, sabendo que vou parecer maldosa e não me importando nem um pouco com isso.
- Você conheceu a minha mãe, Khalled. Você viu como ela com apenas um estalar de dedos conseguiu me tirar de cena? Fui arrancada do salão de baile na frente de todo mundo como se fosse uma intrusa na minha própria casa. Sabe o porquê de tudo aquilo? - rangi os dentes, apertando as rédeas entre os dedos. - Poder. Ela precisa que eu saiba que ela tem a minha vida inteira nas mãos para fazer o que bem entender. E é por isso que eu preciso da sua ajuda. Porque eu não posso deixar que isso aconteça. Eu não aguento mais me sentir sufocada por ela. Simplesmente não aguento.
Ele parecia não saber o que dizer. Não precisou, tampouco, porque mais uma enxurrada de palavras banhadas de ressentimento saíram da minha boca sem que eu pudesse impedir a mim mesma de dizê-las:
- Você quer saber a verdade? Eu não sou comandante de nada. Alguns dias antes de nos encontrarmos naquela estrada, minha mãe decidiu que já estava na hora da princesa parar de brincar de soldado e me destituiu do meu cargo. Como se eu fosse nada, Khalled. Absolutamente nada. - tenho consciência das lágrimas ardendo nos meus olhos e sinto raiva de mim mesma por me deixar parecer tão fraca na frente dele. - Isso mesmo. A garota que ontem estava toda cheia de si se auto intitulando como Comandante da Legião mais poderosa de Arasdil era na verdade uma perdedora que ainda não tinha aceitado o fim do jogo. Fiquei pensando no que você me disse ontem a noite inteira. Sobre eu ter a capacidade de ser parte importante de qualquer coisa que eu quiser. Foi a coisa mais bonita e dolorosa que alguém já disse pra mim, porque eu sabia que não era o meu caso. Eu não sou parte importante. Eu sou um peão.
- Você não é um peão. - ele me repreendeu, o tom duro ecoando em meus ouvidos.
- Você não entende. - Sacudi a cabeça, batendo as rédeas para que Silver acelerasse o trote e começasse a correr, me distanciando de Khalled. Eu precisava do frio contra o rosto. Precisava do vento gelado açoitando meus cabelos.
Precisava me sentir livre.
Corri sem saber para onde estava indo, as árvores que se erguiam ao meu redor passando como vultos pelos meus olhos conforme Silver batia os cascos com mais força contra o solo. Estávamos subindo em alta velocidade uma colina que eu desconhecia, a vegetação de enormes pinheiros dando lugar a uma clareira que terminava abruptamente em uma enorme depressão, um precipício que surgia sem o menor aviso diante de meus olhos.
Tentei parar o animal indomável sob mim, mas minhas mãos estavam trêmulas como nunca haviam estado antes. Estávamos indo rápido demais e não havia como escapar da queda que estava bem a frente.
Até que não estava mais.
As rédeas de Silver foram puxadas com tanta força que nós duas viramos na direção contrária a da imensa cratera de pedras que se abria no meio do caminho, desviando de um acidente que poderia ser o nosso fim.
Com o som do batimento de meu coração pulsando em meus ouvidos, olho para o lado e tenho a visão de Khalled, uma mão segurando a rédea de sua própria montaria enquanto a outra está ocupada retomando o controle que eu havia perdido.
No momento em que nossos olhos se encontram, consigo ver tudo o que está debaixo do verde arrebatador deles: força concentrada, mesclada com preocupação determinada. Também consigo ver frustração, e sei o que ele vai dizer antes mesmo que possa abrir a boca.
- Você enlouqueceu?! - ele grita, as passadas de nossos cavalos diminuindo o ritmo conforme nos afastamos do declínio de terra adiante.
Desvio o olhar, pegando impulso para descer de Silver enquanto ela ainda está se movimentando. Khalled desce de seu cavalo também, parecendo muito chateado.
- No que diabos estava pensando? - ele pergunta, sem olhar para mim, as mãos na cintura e a respiração pesada saindo em grandes lufadas de ar entre nós dois.
- Eu não consegui segurá-la. - murmuro, num fiapo de voz. Me sinto estranha, o raciocínio ainda tomando forma em minha mente. - Isso nunca tinha acontecido antes...
Sou subitamente arrancada de qualquer linha de pensamento quando Khalled agarra meus ombros, me sacudindo com força o suficiente para me fazer acordar do estado catatônico de choque no qual me encontrava.
- Esther. - ele diz, esperando que eu mantenha o foco em seu rosto. Quando não o faço, ele toca em meu queixo com delicadeza, me fazendo olhar para ele. A frustração em suas feições desapareceu, sendo substituída por gentileza. - Você é dona do seu próprio destino. Ninguém tem o poder de controlá-la, nem de forçá-la a nada. Você está me ouvindo? Você não precisa fazer nada que não queira. Nunca. Essa é a sua vida. Você não é um peão.
Solto o ar que nem sabia que estava prendendo, sentindo minhas pernas tremerem.
- Você está bem? - Khalled pergunta, me analisando dos pés a cabeça a procura de algum ferimento. - Por pouco você não caiu. Quase não consegui alcançá-la a tempo.
- Mas você me alcançou.
Ele me encara, o verde de seus olhos se tornando mais intensos, escurecendo ligeiramente.
- Sim. - suspira. - Eu alcancei você.
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