A Primeira dança é a única que importa
O DIA DO BAILE HAVIA chegado mais rápido do que eu previra, o tempo escorrendo como areia fina entre meus dedos conforme a grande festa se aproximava. Era tudo um enorme borrão de atividades: os empregados corriam de um lado a outro pela cozinha e adega, separando as melhores louças e vinhos de Arasdil, - os quais já estavam sendo limpos e resfriados para a importante ocasião.
Enquanto o imenso lustre de cristal do Salão de Baile era polido com esmero, inúmeros vasos de raras orquídeas azuis estavam sendo carregados para dentro do castelo com atenção e cuidado redobrado, já que eram os protagonistas da ornamentação da festa.
Eu podia sentir a atmosfera entusiasmada das pessoas: era sempre assim durante um grande evento da família Arasdilany. O povo ansiava por uma oportunidade de se desviar das duras lembranças que ressurgiam com os primeiros flocos de neve que o inverno trazia consigo. Do medo que ele trazia consigo.
E apesar de ainda estarmos longe o bastante da tenebrosa estação para que ninguém se preocupasse, eu já tinha a agonizante sensação do gelo perfurando fundo em meus ossos.
— Por onde seus pensamentos vagam com tamanha concentração, Vossa Alteza? — a voz de Kevin encheu meus ouvidos, me trazendo de volta à realidade.
— Por mais incrível que pareça, nenhum lugar interessante. — respondi, me virando para que pudesse ficar frente a frente com ele. — Mas do que uma princesa tola como eu deve saber? Minha vida não é tão interessante quanto a do nosso novo e amado Comandante.
Kevin revirou os olhos, suspirando.
— Tudo aquilo está um saco sem você. — disse ele, encostando a cabeça na parede. — A sua Legião não tem feito nada desde que souberam de sua dispensa. E Logan até pode tentar, mas está claro para todos nós que ele não é você.
Solto uma risada amarga.
— Ninguém é tão bonito e inteligente quanto eu. — digo, voltando a supervisionar o trabalho dos homens polindo cristais. — É por isso que sou insubstituível.
— E não podemos esquecer o quanto é modesta... — Kevin resmungou, erguendo o olhar para o meu antes de dizer: — Escute, Esther. Queria que você soubesse que eu achei o que sua mãe fez com você realmente injusto. E que se você quiser começar uma rebelião ou dar uma surra em alguém, eu vou te apoiar incondicionalmente.
— Não leve tão a sério, meu jovem General. — sorri, dando um tapinha em seu ombro. — Veja toda a situação como uma licença para férias. Acha mesmo que alguém vai me colocar fora de campo? Você sabe o que eu digo...
— "Um soldado brutal é aquele que luta até a morte com tudo o que tem." — ele respondeu, um pequeno sorriso estampando seus lábios.
Balancei a cabeça em concordância.
— E como eu não sou apenas um soldado, mas uma comandante brutal, continuarei lutando até mesmo depois que tiverem arrancado meu coração fora do peito. — eu disse, encarando a lama nas botas dele. —Então não mais perca tempo se preocupando comigo e comece a dar mais atenção ao seu uniforme, porque você está parecendo um desertor pobre e fodido.
Kevin baixou o olhar para seus calçados totalmente sujos, seu rosto adquirindo um leve tom de vermelho.
— Você é uma peste.
— Pelo menos os meus sapatos estão limpos. — devolvi, dando as costas.
Eu passava a escova pela crina de Asryn uma última vez quando mais alguém adentrou no estábulo real. O homem caminhava devagar em minha direção, como se temesse fazer o menor ruído possível e acabar chamando minha atenção. Como se não soubesse o quanto meu instinto era afiado para identificar indivíduos que tentavam ocultar-se entre as sombras.
— Você é péssimo em se esconder, Logan. — eu disse, sem nem me dar ao trabalho de virar para encará-lo.
O barulho de seus passos cessou antes mesmo que eu pudesse terminar de articular a frase.
Sem me preocupar em dizer mais nada, despedi-me de Asryn com uma breve carícia em seu focinho, guardando a escova no balde de ferro do lado de fora de sua baia.
Me encaminhando para a saída do estábulo, tive um vislumbre do rosto de meu antigo noivo, que não tinha coragem nem de erguer o olhar para o meu. Pensei que ele manteria o pouco de dignidade que lhe restava e me deixaria ir embora sem tentar me dar algumas de suas desculpas esfarrapadas, mas como de costume, quando se tratava de Logan, eu estava errada.
— Esther. — ele esticou a mão para segurar-me pelo braço, seu dedos não chegando a me tocar por causa de meu reflexo rápido.
— Você não deveria me digirir a palavra, Comandante. — eu disse, em um tom carregado de sarcasmo. — Não é bom para uma mulher com o meu sobrenome ter alguma relação com um covarde como você.
Ele fechou os olhos, como se sentisse dor por estar passando por aquela situação. Eu não sabia ao certo se sentia raiva, vergonha ou pena por ter chegado a ter um compromisso sério com aquele babaca.
— Esther...
— Vou falar só uma vez e espero que você entenda de primeira porque não tenho paciência para gente burra: nós dois não temos mais nada. Não somos namorados, não somos amigos, não somos sequer colegas de Exército, já que você tão desesperadamente agarrou a chance que lhe foi dada para roubar o meu lugar — sorri com frieza, dando um passo em sua direção. — Por isso, se ainda lhe resta algum resquício de orgulho que seja, eu o aconselho a nunca mais cruzar o meu caminho, porque apesar de ser você quem está levando o título de comandante agora, sabemos que o mérito e a habilidade para tal cargo sempre foram meus. — tendo o dito, deixo o estábulo a passos largos, na intenção de me manter o mais longe possível de Logan.
Era incrível como ele possuía a cara de pau de vir me procurar depois de tamanha traição. Depois de usurpar a minha Legião como se não soubesse tudo o ela significava para mim. Depois de subir tão rápido em uma posição para a qual eu literalmente havia sangrado para conseguir ocupar.
Eu realmente nunca havia me enganado tanto quanto ao caráter de uma pessoa.
Respirei fundo, tentando deixar a raiva de lado e concentrar minha atenção no que de fato importava: faltavam poucas horas para o Baile, então tudo o que eu precisava fazer era começar a me preparar para estar pronta pontualmente.
O vestido era vermelho sangue, tão escuro que quase parecia ser vinho em forma de tecido. Fora feito sob medida para mim, se ajustando ao meu corpo como uma segunda pele, o decote descendo até a metade da minha barriga. Já seria provocante o bastante sem a fenda que havia na perna, mostrando parte das minhas coxas e as elegantes sandálias cravejadas de rubis presas aos meus pés.
Eu estava sentada de pernas cruzadas de propósito para que cada homem e mulher pudesse ver a princesa empoderada que seria sua rainha.
— Você deveria ter usado o vestido verde que mandei fazer para você. — mamãe disse, inclinando a boca para perto de meu ouvido, para que só eu pudesse ouvir seu tom duro e repreensivo: — Com essa roupa você parece uma prostituta.
Faço um pequeno "oh" com a boca, como se estivesse realmente chocada com o que ela acabara de dizer.
— Nossa... — suspiro. — Em todos esses anos, esse foi o melhor elogio que a senhora já me deu. — completei, dando um sorriso tão largo que poderia ter rasgado meu rosto.
A Rainha estreitou os olhos, sua expressão tornando-se séria.
— Vá trocar essa roupa antes que seu pai veja como a filha dele está vestida.
— Nada contra o seu gosto para moda, mamãe — comecei, me levantando do trono onde estava sentada. — Mas acho que já sou grande o suficiente para escolher minhas próprias roupas.
Meus lábios estavam pintados de vermelho sangue também.
Descendo o palanque onde estavam posicionados os assentos da família real, adentrei em meio a multidão de convidados no Salão de Baile, sem me preocupar em ter cuidado para não esbarrar nas pessoas: por que deveria, se todas elas já abriam espaço para mim?
Eu gostaria de achar Lady Osborne e promover um encontro dela com a Duquesa de Bass, a fim de ter um pouco de diversão antes das valsas começarem oficialmente e todos estarem mais entretidos em achar um par para não acabarem tomando chá de cadeira do que nos escândalos da alta sociedade de Arasdil.
Infelizmente, acabei não tendo sucesso, pois as atenções foram desviadas para as trombetas que anunciavam a entrada do Rei no recinto, fazendo com que todos os presentes se dividissem entre os dois extremos do Salão e deixassem o meio livre para seu soberano.
Revirei os olhos no momento em que as grandes portas foram abertas para a passagem dele, pensando no quanto tudo aquilo era uma pompa arcaica e sem significado. De repente, inúmeros sussurros tomaram o lugar, todos os presentes se entreolhando e cochichando uns com os outros como se estivessem curiosos sobre algo.
Estiquei a cabeça para ver o motivo de tamanha comoção, sentindo meu coração bater violentamente contra o peito assim que meus olhos pousaram no homem que era o centro das atenções ao lado de meu pai. Os mesmos ombros largos e cabelos castanho-claros, além dos místicos olhos verdes que eu havia encontrado na estrada quase duas semanas atrás.
O mesmo que possuía uma coroa semelhante a de meu pai repousando sobre a cabeça.
Eu não podia acreditar.
Ele era... Era o quê? Um príncipe? Um rei?
Não sei ao certo se eu o encarei de forma extremamente indiscreta enquanto pensava sobre isso, mas quase emiti um som semelhante a um grito quando percebi que seus olhos estavam fixos em mim. Me recompus imediatamente, trazendo à tona minha expressão fria habitual.
Expressão sobre a qual precisei usar todas as minhas forças para não deixar fraquejar quando vi o estranho homem de olhos verdes dizer algo discretamente no ouvido de meu pai, que olhou diretamente em minha direção.
Eu definitivamente não gostava daquele cara. O que ele estava dizendo? Por que caminhava com toda aquela naturalidade e presunção? E mais importante: por que diabos não parava de me olhar?
Se estava achando que eu seria como uma das outras garotas idiotas com as quais ele cruzara e desviaria o olhar do seu com o rosto corado de vergonha, estava muito enganado.
Sou o extremo contrário disso: sorrio com todo o cinismo que há em mim, erguendo a mão em um aceno lento e nada entusiasmado.
Gesto que ele retribui logo depois, com um sorriso tão largo que atrai a atenção de todos ao redor.
Fecho a cara, agarrando a primeira taça de vinho que vejo um dos empregados distribuir em uma bandeja de prata, virando o líquido garganta abaixo de uma só vez.
Assim que meu pai e seu ilustre convidado chegam até o trono onde minha mãe está sentada e fazem a ela suas reverências e cumprimentos, a orquestra inicia os primeiros acordes de uma música alegre. O salão volta a se encher, repleto de casais de braços dados e risadinhas.
Olhando em volta, tento localizar Lady Osborne novamente, desta vez apenas para ter a decepcionante confirmação de que ela não veio. Bufei, frustrada. Todo o meu trabalho para ver o circo pegar fogo durante aquela festa havia sido em vão e a noite seria pura encheção de saco.
Aproveitando o momento de comoção entre homens e mulheres atrás de um par para si mesmos, resolvo que já tinha dado tudo o que tinha que dar e que estava indo embora.
— Com licença. — alguém diz atrás de mim, o timbre rouco sendo associado de imediato ao dono da voz. — Vossa Alteza me permite sua primeira dança?
Me virei para encarar o estranho frente a frente, seus olhos verdes parecendo brilhar ainda mais durante a noite.
— A quem devo tamanha honra? — devolvi, irônica, erguendo uma sobrancelha.
— Perdão. — disse ele, curvando o corpo em uma reverência. — Príncipe Khalled, de Asgoldien.
— Príncipe, hã? — tirei sarro. — Não era mesmo nenhum assaltante, sequestrador ou estuprador.
Ele assentiu, balançando a cabeça em concordância.
— Felizmente não. Fico satisfeito em dizer que a única que leva uma dupla identidade é a senhorita.
— Há tão pouco me conhece e já sabe tanto sobre mim? — questionei, erguendo o queixo com arrogância. — Poderia me dizer quais são as minhas duas identidades?
— Certamente a de princesa e ladra de cavalos. — disse ele, me observando com atenção. — Por falar nisso, eu gostaria que me devolvesse o Velaris, visto que ele é bastante importante pra mim.
— Pensei que o nome do seu cavalo fosse Asryn. — eu disse, me referindo ao nome gravado no broche de puro ouro que havia costurado em suas rédeas.
— O nome Asryn é para caso ele desapareça. É o sobrenome da minha família. Para que caso ele desapareça saibam a quem devolver. — ele sorriu de lado. — Mas você não se deu ao trabalho.
— O que posso dizer? — indaguei, inclinando a cabeça para o lado como se considerasse opções. — Virei ladra por gostar do que não me pertence e nasci princesa porque gosto que façam as coisas por mim.
— Fico feliz em saber que não é somente o seu eu ladra que possui a língua afiada, Esther.
Ouvir meu nome sendo pronunciado por ele era algo que me causava uma sensação estranhamente familiar. Como se já tivesse sido chamada por aquela voz milhares de vezes.
— Vejo que não esqueceu de tudo depois que o deixei inconsciente na estrada. — sorri, maldosa. — Seria uma pena se o Príncipe de Asgoldien sofresse de perda de memória e não se lembrasse mais de quem é em uma terra estrangeira.
Khalled olhou fundo em meus olhos, como se estivesse aguardando para dizer seja lá o que fosse dizer havia muito tempo:
— De fato seria. — ponderou consigo mesmo, depois de respirar fundo. — Porque aí talvez eu não tivesse o prazer de vê-la novamente.
Semicerrei os olhos, sorrindo com falsa lisonja.
Eu definitivamente não tinha ido com a cara dele.
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