A Pele que você usa
ENCAREI COM ATENÇÃO o reflexo no imenso espelho que havia no centro do meu closet, o qual parecia se elevar sobre todas as outras coisas, ditando verdades que enquanto uns queriam esconder, outros desejavam com todas as forças evidenciar.
Eu realmente nunca me importara com minha aparência. Meu objetivo sempre fora lutar e treinar para ser a melhor entre todos os outros soldados. Queria ser reconhecida por minha soberania entre as lâminas, não por um rostinho bonito. E mais: encarar meu reflexo não era algo que fazia com que eu me sentisse melhor comigo mesma, pelo contrário.
Era um lembrete permanente da pessoa que eu nunca mais teria ao meu lado.
Mesmo doendo, continuei olhando fixamente para a garota no espelho. Ela possuía sardas em um rosto pálido, sobrancelhas escuras, grossas e bem feitas. Grandes olhos violetas com pontos prateados a encaravam de volta, piscando lentamente. Cabelo longo e castanho; uma imensidão de cachos fora de ordem.
Mas o que de fato chamava atenção eram os lábios carnudos pintados de vermelho que tremiam, assim como os dedos que seguravam com força a saia do vestido rosa-dourado coberto por um tecido escuro transparente que eu estava usando, tentando não entrar em colapso e mudar para o meu uniforme de couro usual.
Como se ouvisse os meus pensamentos, minha mãe apareceu na entrada do closet, me encarando com olhos admiradores.
— Você é tão linda, Maria Esther. —disse ela, juntando as mãos em pura satisfação. — Não tem ideia do quanto senti falta de vê-la assim, vestida como uma princesa e não como um rapazinho qualquer com aquelas roupas masculinizadas.
Desviei o olhar do meu reflexo, sem aguentar ver a mim mesma por nem mais um segundo.
— Aquelas roupas eram feitas sob medida para mim, do couro da melhor qualidade. — refutei, lutando para não deixar escapar meu tom condescendente. — Apesar de não serem do seu agrado, elas possuíam tanta elegância quanto o vestido que estou usando agora, mamãe.
— Ah, claro. — ela balançou a cabeça em concordância, apesar de deixar claro a ironia do gesto. — É bem do seu feitio comparar uma peça da mais alta costura com aquele uniforme pavoroso com o qual você desfilava pelo Castelo, toda cheia de si.
Me virei para encará-la, erguendo as sobrancelhas.
— O que importa é que estou usando a droga do vestido, não é? Fiz o que a senhora mandou. Era isso o queria. Não está satisfeita? — indaguei.
A Rainha estreitou os olhos, desgostosa com minha reação.
— Cuidado com o modo como fala comigo, Maria Esther. — ela orientou, caminhando até mim. — Sou sua mãe. Deveria ter mais respeito e levar em consideração todos os conselhos que lhe dou.
— Não é falta de consideração ter uma opinião diferente da sua. — eu disse, medindo as palavras. Estava tão acostumada a falar a primeira coisa que me vinha à cabeça que a simples tarefa de pensar antes de dizer algo acabava tornando-se árdua. Eu de fato tinha pena das pessoas que eram subordinadas da Rainha Keyse na Corte Arasdilany.
Fingir concordar com o ponto de vista dela das coisas era exaustivo em todo o sentido da palavra.
— Você é uma garota estupidamente inteligente. — disse minha mãe, ajeitando a saia de meu vestido com cuidado. — Em breve se tornará Rainha. Sabe que um monarca deve ter aliados dentro e fora de seu Reino. Com a sua personalidade e gênio difíceis como são, acabará destituída de seu trono e sem o poder da coroa no seu primeiro ano como governante. E você não iria querer algo assim, iria?
Segurei o riso, não mencionando que assumir o Trono estava em último lugar na minha lista de desejos.
— Penso que se eu vier a me tornar Rainha algum dia, eu não vá precisar do apoio de ninguém além de mim mesma.
Minha mãe balançou a cabeça, um sorriso terno em seu rosto enquanto ajeitava meus cabelos atrás de minhas orelhas.
— Você é ainda tão ingênua, minha filha. No mundo em que vivemos, as aparências importam demais; poder importa demais. — disse ela, subitamente perdida em pensamentos.
Não sei bem o porquê, mas a lembrança de Angeline veio mais uma vez à mente.
Cerrei os punhos, rangindo os dentes.
— Pouco importa se o que uso na cabeça é uma coroa de cristal ou de folhas secas, se o lugar onde me sento é feito de ouro ou de palha. — a Rainha ergueu os olhos para os meus, parecendo estar me escutando de verdade pela primeira vez em muito tempo. — Enquanto eu tiver a mim mesma, tenho tudo o que preciso.
Por um momento, mamãe não disse nada, apenas continuou me encarando. Não desviei o olhar do seu. Era fato que não nos dávamos bem, que discordávamos em quase tudo e que não podia-se dizer nem ao menos que éramos parecidas fisicamente. Mas havia algo que inegavelmente tínhamos em comum: a coragem. Nenhuma de nós duas era covarde. Se tinha algo em nosso caminho, esmagávamos com força até que se transformasse em nada.
Na nossa família, não existia a opção "deixar para lá".
— Seu modo de enxergar as coisas é inspirador. — disse ela, recuperando a pose de Rainha. — Mas sinto lhe dizer que no ambiente ao qual pertencemos não há espaço para sonhos, apenas para a realidade; e não se engane: é dura e cruel, e acaba com os que não sabem lidar com ela.
Infelizmente para mim, os obstáculos que haviam no meu caminho e no de minha mãe não eram nem de longe os mesmos.
— De fato. — respondi, sentindo o rosto endurecer.
Descobri com amargor que os planos que minha mãe reservara para mim eram os mais entendiantes possíveis. Daqui alguns dias haveria um baile para a comemoração oficial da volta do Rei e eu acabara com a incrível tarefa de selecionar a lista de convidados, juntamente com nada menos nada mais que o Círculo Íntimo de Cobras da Rainha.
Olivia escrevia com cuidado o nome dos destinatários nos envelopes brancos estampados com o bordado prateado do escudo e da espada, os símbolos da bandeira de Arasdil.
— Parece que Lady Osborne foi uma das selecionadas. — disse ela, para ninguém em especial.
— Por que a observação, Olivia? — indaguei, estalando a língua com deboche. — Ela faz parte da nobreza como qualquer outro nome que está na lista.
Na verdade, não fora por acaso que eu a colocara entre os convidados ao Baile. Era de conhecimento comum que Lady Margarett Osborne tinha se tornado praticamente uma pária entre todos os que eram considerados de boa família logo após a descoberta pública do seu caso com o Duque de Bass, marido de uma das melhores amigas de minha mãe.
Ninguém sabia ao certo quem havia espalhado o boato, mas quem iria se importar com isso se a fofoca mostrara-se verdadeira?
Bem, eu me importava. Ainda mais pelo fato de ter sido Olivia quem levara o caso a público.
Violet, sentada em uma poltrona do outro lado do Salão Branco - o qual ainda estava tendo o vitral restaurado depois que eu o quebrara uma semana atrás - ergueu os olhos de sua lista, me encarando por um instante longo demais antes de dizer:
— Acho que Vossa Majestade não irá gostar de ver a mulher responsável pela destruição do lar de uma de suas colegas mais próximas na comemoração do Rei.
Devolvendo-lhe o olhar, respondi com doçura:
— Quanto à Rainha, minha querida Violet, não se preocupe. Ela confia totalmente em minhas escolhas, não foi por acaso que me deixou responsável por decidir quem iria ou deixaria de ir para a festa do meu pai. — eu sorri, passando o dedo pelo bordado prateado de um dos convites que estavam na mesa à minha frente. — Então sugiro que se preocupe com suas tarefas e deixe de lado o que não lhe diz respeito.
Katryn, sentada perto de Violet, emitiu um som engasgado semelhante ao de uma risada, levando a xícara de chá que segurava aos lábios logo em seguida. Violet olhou para ela de canto do olho, mantendo o rosto inexpressivo.
Mas todos sabíamos que ela estava fervendo por dentro.
— Já terminei a minha parte. — declarou Louise, levantando-se de sua cadeira. — Tenho alguns assuntos para resolver na cidade, então, se me derem licença...
— Oh, sinto muito, Louise. — falei, balançando a cabeça como se estivesse com um terrível pesar. — Acho que não lhe contei sobre os vestidos novos que estou para receber. Como estou ocupada organizando os convidados para o Baile, você poderia analisá-los para mim, sim? Quero que estejam à altura da Princesa de Arasdil.
Louise parou no ato, franzindo a testa.
— Não teria outra pessoa que possa...
Ergui a mão, calando-a.
— É claro que há. — concordei, fazendo uma expressão satisfeita surgir em seu rosto um segundo antes de completar: — Mas quero que seja você. Pela hora, a costureira deve chegar em breve. Aguarde a chegada dela no Salão Principal. Depois que terminar isto, estará livre pelo resto do dia.
— Mas Vossa Alteza, o meu compromisso é muito importante e...
— Está insinuando que o meu vestuário não é importante? — a fuzilei com o olhar, erguendo o queixo em um gesto arrogante. — Sou a princesa. Você faz o que eu mandar e faz em silêncio. Agora saia.
Com a face completamente vermelha, Louise fez uma reverência em minha direção, saindo da sala logo depois.
Dei um sorrisinho, sentindo o prazer de finalmente poder colocar aquelas mulheres em seus devidos lugares.
— Qual é o próximo nome da lista? — perguntei a Olivia, estendendo a mão para pegar o convite que ela segurava.
— É um príncipe, mas nunca ouvi falar dele. — disse ela, assim que meus dedos tocaram o papel.
— A Rainha o escolheu pessoalmente. — falou Katryn, pousando sua xícara na mesinha ao seu lado. — Disse que era de suma importância a presença dele no Baile do Rei.
Ergui as sobrancelhas, curiosa sobre o homem ao qual minha mãe dedicara tamanha atenção.
— Vamos ver quem é o infeliz. — murmurei, virando o cartão para ler o nome escrito no papel.
Príncipe Khalled Eiden Joseph Asryn, de Asgoldien.
Por um momento, uma sensação estranha me tomou.
Asryn.
O mesmo nome que havia no broche de ouro da sela no cavalo do estranho homem de olhos verdes que eu encontrara na estrada. Não sabia ao certo o porquê, mas algo me dizia que aquilo não era uma simples coincidência.
Eu não poderia estar mais certa.
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