Lado a Lado

KHALLED E ESTHER passaram como raios pelos muros da cidade de Kihast, capital de Arasdil. Haviam combinado entre si de que a corrida só seria válida até que alcançassem os portões de entrada, mas para aqueles que os observavam, a competição não estava nem perto de terminar: príncipe e princesa cavalgavam lado a lado, os cascos dos cavalos de ambos ecoando contra pedra e levantando poeira por onde quer que passassem.

Porém, de repente, do lado da rua em que Khalled corria, surge um rapaz empurrando um carrinho de maçãs. Esther percebe o obstáculo e reprime um sorriso, pensando estar com a corrida finalmente ganha. Mas para sua surpresa - e choque de todos que assistiam à disputa, - o cavalo negro de seu oponente salta e paira no ar bem acima das maçãs, pousando do outro lado de maneira firme e ágil, assumindo a liderança em seguida.

— Exibido. — resmunga Esther, apertando as rédeas entre os dedos.

— Acho que está na hora de aceitar que você perdeu essa, princesa! — Khalled grita, sua voz atravessando os sons da corrida.

— Cale um pouco a boca, senhor presunção! — ela grita de volta, aumentando a velocidade. — Ainda posso te alcançar.

O Príncipe concorda com um aceno de cabeça, dizendo:

— Nós sempre alcançamos um ao outro.

Dividindo a mesma posição mais uma vez, os dois se entreolham e trocam sorrisos recheados de emoções: de familiaridade, confiança e puro divertimento.

E, por um momento, não há mais nada.

Nada mais existe além do prazer simples e genuíno de duas pessoas se divertindo uma ao lado da outra, aproveitando seu tempo da melhor forma possível: estando perto de quem se gosta.

Chegando ao seu destino, Khalled diminui o ritmo. Parando logo em seguida, olha para Esther por cima do ombro.

— Para ser justo, foi um empate. — declara, desmontando de Velaris em um pulo. Massageando o pescoço do animal, o elogia, orgulhoso: — Muito bem, amigão. Muito bem.

— Já que é para ser justa, — a princesa começa, também descendo de sua montaria. — Vou ser sincera e dizer que você deveria ter desistido assim que o rapaz das maçãs apareceu na sua frente. — Erguendo uma sobrancelha para o príncipe ao seu lado, completa: — Eu não sabia desse seu lado competitivo. Foi um belo show o que você deu lá. Aposto que pensou “por que não aproveitar a ocasião e exibir um pouco toda a extensão das minhas habilidades em equitação?”

O homem faz um som de riso, semicerrando os olhos com cinismo.

— Por que está me julgando? Você teria feito exatamente o mesmo.

— Tem razão. Teria mesmo. — ela concorda, coçando as orelhas de sua égua com carinho e em seguida lhe dando um torrão de açúcar como recompensa pelo esforço. Estendendo a mão na direção do grande cavalo negro de Khalled, Esther oferece um de seus docinhos para Velaris, que come com gosto de sua mão. O animal lambe seus dedos e uma risada baixa escapa dos lábios dela.

E o comandante do exército de Asgoldien, que acompanhava toda a cena com um sorriso terno no rosto, sente o peito se encher de algo tépido e apaixonado, que o faz ter a súbita necessidade de estar mais perto; uma precisão ferrenha de tocar e estar mais próximo da mulher ao seu lado.

Em um impulso, ele põe a mão no início das costas de Esther, atraindo de imediato a atenção dela, que se vira para encará-lo, uma pergunta em seus olhos.

— Não é nada — diz ele, suavemente. — Só que gosto de te ver assim. Bem. Sorrindo. Feliz. — Então puxa com delicadeza o rosto dela na direção do seu, depositando um beijo casto em sua testa e depois dando um passo para trás para ver a reação com que seria recebido.

E a coisa mais estranha acontece: o intenso violeta-prateado das íris de Esther parece se acentuar, tornando-se de uma tonalidade extraordinariamente doce de lilás. Khalled se esquece de como respirar por um minuto e o pensamento soa como um alarme em sua mente.

Eu a amo.

E do mesmo modo que sabe que o céu é azul, que o fogo queima e que não consegue respirar embaixo d'água, Khalled sabe disso com a mesma certeza que tem do sangue correndo em suas veias. A constatação do que sentia veio como aquele tipo de coisa da qual você já sabe e ainda não tem se dado conta por completo; como se em estado de latência, a emoção vinha guardada de maneira cuidadosa em seu coração. Esperando, aguardando. Crescendo e se fortalecendo.

Mas estava lá, o tempo todo.

Amava Esther.

Como acontecera, ele não sabia, mas fosse para o bem ou para o mal, uma coisa era certa:

Continuaria amando-a enquanto vivesse.


⚔️


POR QUE ESTÁ me olhando desse jeito? — perguntei a Khalled, que me olhava com o que só podia ser classificado como terrível assombro. — Tem alguma coisa no meu rosto?

Parecendo acordar de um transe, ele balança a cabeça, negando.

— Sim. Digo, não — ele se apressa em dizer, completamente desconcertado. — Não tem nada em seu rosto.

Franzo a testa.

— Por que a pergunta? — ele questiona, dessa vez a imagem da ansiedade. Baixo o olhar e o vejo apertando as mãos.

Então tá.

— É que você ficou esquisito de repente.

— Impressão sua — sorri, cheio de dentes.

Ficamos em silêncio. Não sei porque Khalled está agindo dessa maneira bizarra, mas me incomoda. O jeito com que me olha faz com que eu sinta vontade de me esconder atrás de uma parede. Me sinto exposta ao extremo tendo toda a sua atenção tão voltada para mim.

— Você pode parar?

— Desculpe, o que estou fazendo?

— Você sabe. Está com aquela cara.

— Que cara? — pergunta, sorrindo mais uma vez.

— Vai mesmo fingir que não sabe? Céus, você é irritante.

— É que sou bonito demais. As pessoas tendem a achar esse fator irritante.

— Não estou falando de beleza. — reviro os olhos, escolhendo não citar sua total falta de modéstia. — Estou falando de você aí, todo aéreo, abobalhado e abestalhado.

Khalled ergue as sobrancelhas, um lado de seu rosto subindo em um sorriso.

Eu realmente não faço ideia de como ele não sente dores nos músculos faciais. Parece que sempre que olho em sua direção há um novo sorriso colado em seus lábios.

— Quantas palavras com a letra "a". Espero que hajam mais de onde vieram essas.

Tento não deixar na cara o quanto estou confusa e desconfiada com esse surto repentino de Khalled. O modo como ele está se comportando - inquieto e ligeiramente ansioso, como alguém que acaba de saber de um segredo bombástico e está louco para sair contando por aí, - me deixa com uma pulga atrás da orelha.

— Bem, — cruzo os braços. — Você pretende entrar e pegar sua correspondência ou vamos ficar do lado de fora para sempre?

Finalmente aparentando despertar de seu estado sonhador, o comandante de Asgoldien olha em direção à Central dos Mensageiros de Arasdil, e, se adiantando em abrir a porta de entrada do prédio, faz com que um pequeno sino tilinte para alertar aos que estão dentro da chegada de novos clientes.

A respeito do motivo de Arasdil ter a necessidade de possuir uma sede de mensageiros, podemos simplificar e apenas dizer que moramos em um reino amaldiçoado. E essa definição faz com que não tenhamos muitas pessoas de fora de visita por aqui.

Mas Kihast é ainda menos popular.

Por ser a capital, está precisamente localizada no coração de Arasdil, e - infelizmente para nós, - o órgão mais importante de nosso lar traz consigo uma parte murcha, podre e que fede a morte.

Todo mundo sabe de que lugar estou falando, por isso não é preciso ser um gênio para entender porque as pessoas que moram nas partes mais afastadas nunca irão querer vir para cá. E as que moram aqui...

Bem, essas têm medo demais para tentar sair.

Desse modo, foi construída a Central de Mensageiros de Arasdil.

Como a maior parte das famílias de nosso reino não reside na mesma cidade, parentes acabam ficando separados uns dos outros por muitos anos, se não permanentemente. Só as pessoas mais ricas podiam pagar para ter suas cartas entregues fora de seu povoado, - os mensageiros que se disponibilizavam a realizar a missão cobravam caro, - por isso meu pai decidiu então criar uma instituição que fosse de acesso público.

Ser mensageiro exigia que você recebesse desde cedo um treinamento obrigatório e tão rigoroso quanto o que se tinha no Exército, e não podia se dizer que a pressão recebida era diferente.

Mas apesar dos pesares, o salário que recebiam compensava muito mais do que bem, e alguns do ramo até mesmo alcançavam posições cheias de glamour; como o pai de Logan, por exemplo, que trabalhara  exclusivamente para a família real durante anos e ganhara rios de dinheiro.

Enfim.

Quando mostrei a Central para Khalled pela primeira vez, ele ficara boquiaberto. Não conseguia acreditar que havia toda uma estrutura e funcionários especializados para realizar entregas enquanto em seu reino, Asgoldien, tudo era muito mais simples: a carta era escrita e um empregado se responsabilizava pela chegada dela até seu destinatário.

Ah, os privilégios daqueles que não vivem à sombra de uma besta.

— Bom dia, Tadheus. — ouço Khalled cumprimentando um homem de cabelo grisalho no balcão. Tento não sentir inveja da sua incrível habilidade em fazer amigos. — Como tem passado?

— Muito bem, meu jovem — ele começa, coçando a barba. — Nada de novo debaixo deste sol frio que temos por aqui. — diz, então apontando com o queixo para uma parede ocupada por uma série de compartimentos etiquetados. — Chegaram mais cartas desde a última vez que veio. Use a chave que lhe dei com o número da sua caixa e retire a correspondência.

Com um sorriso e aceno de cabeça, Khalled vai até uma caixa de metal que fica bem alto na parede. Há algo inscrito nela, e reconheço como sendo o número 18. Dentro, um grosso envelope de papel o espera.

— Você recebe muitas cartas. E é bem bonitão. Deve ter deixado um monte de garotas com saudade de onde você veio — mordo minha língua para não soltar um comentário a respeito do quanto ele está sendo inconveniente em ficar supondo essas coisas, mas me contenho. Thadeus então continua: — Aliás, por que você veio para Arasdil, de qualquer maneira? Ninguém nunca quer vir para cá. Você é o primeiro que vejo desde que eu tinha a sua idade.

— Tinha coisas a tratar aqui. — Khalled diz, evasivo. Penso que vai deixar por isso mesmo, mas estou redondamente enganada: — E sobre o que disse antes, você está errado. As cartas são da minha mãe. E não sou muito popular entre as garotas. Nem poderia, aliás. Eu tenho namorada.

Deus, que ele não esteja prestes a fazer mais uma de suas gracinhas. Incerta, recuo alguns passos para trás, com o olhar fixo no chão. Não estou nem um pouco preparada para ser exposta. Minhas lentes não estão comigo, o que significa que qualquer um que dê uma atenção indevida para o meu rosto saberá quem eu sou.

Khalled — advirto, em voz baixa. Ele tem muita sorte de eu não dar um chute em suas bolas mais uma vez.

Como o imbecil que é, ele não me ouve. Em vez disso, agarra minha mão, prendendo meus dedos entre os seus.

— Vamos, Estrelinha. Não seja tímida.

Estou prestes a mostrar-lhe o quão brilhante sou, mas então Thadeus, - o senhor na recepção, - solta uma risada forte e cheia de vigor que quase me faz pular de susto.

— Ora, rapaz. Não deixe sua garota constrangida. — por conta do meu senso de autopreservação, não posso vê-lo, já que estou determinada a continuar encarando o piso. Apesar disso, ainda ouço o som de aprovação que sai de seus lábios: — Vocês dois dão uma bela visão juntos. Tenho certeza de que terão ótimos filhos junt...

— Er, obrigada senhor, mas estamos mesmo de saída. — digo, apertando a mão de Khalled com mais força e arrastando-o para fora. O vento gelado que me recebe é bom, porque meu rosto está em chamas. — Qual é a porra do seu problema?

— Ah, vamos, Esther. Foi divertido. — ver que o homem a minha frente está se esforçando para prender o riso é mais um combustível para inflamar a minha raiva.

— Não seria nada divertido se ele me reconhecesse — ranjo os dentes.

— Não sei o motivo de você ter tanto medo de que as pessoas de fora do castelo saibam quem é. — ele diz, começando a rasgar o selo da carta de sua mãe.

— Você também não saiu por aí gritando que era príncipe.

— Sim, mas é diferente. Não estou em Asgoldien, mas mesmo se estivesse, não se aplicaria. Todos que vivem em meu reino sabem quem eu sou. — Então para por um momento, seus olhos buscando os meus. — Não vai me contar o porquê de ter medo?

— Eu não tenho medo, está bem?

— Como não? — ele aponta para o prédio atrás de nós. — Você recuou lá dentro. Literalmente recuou. E nem sequer ousou erguer os olhos. Essa não é você. Algo de muito grave deve ter acontecido para fazer com que tenha tanto receio de assumir sua identidade.

— Por que você sempre quer saber de tudo? — questiono. — Vai fazer alguma diferença se souber? — sei que estou sendo grosseira, mas agir de modo defensivo já se tornou um tipo de reflexo. Estou tentando mudar, e Khalled sabe.

— Estrelinha. — essa é a forma dele de dizer que está tudo bem se eu ainda não conseguir.

Suspiro.

Desde que nos conhecemos, Khalled tem sido assim: honesto; atencioso; preocupado; irritante. Ele é a primeira pessoa que me conheceu quando eu não era mais criança e se manteve por perto.

Se estou chateada, ele não se afasta: pergunta o motivo e juntos damos um jeito de resolver. Nas vezes em que me permiti chorar na frente dele - muitas mais do que me sinto bem em admitir, - ele nunca me taxou de fraca ou usou isso contra mim. O caminho que percorri até confiar nele foi árduo, e ainda está sendo. Tento negar e mentir para mim mesma, mas sei que Khalled já se tornou alguém que eu temo perder.

— Eu fugi de casa, um dia. — começo, fixando o olhar em um letreiro de loja do outro lado da rua. Essa não é uma história de qual me orgulho. — Não sei no que estava pensando, já que nem tinha pego dinheiro o suficiente. Passei uma noite nos fundos de um estábulo. No dia seguinte, quando saí, haviam cartazes do meu rosto por todos os lugares. — arrisco olhar de relance para Khalled e tenho toda sua atenção voltada para mim. — Eu não fui burra a ponto de andar sem um capuz que me cobrisse, mas foi fingindo ser outra pessoa que acabei sabendo da opinião que tinham sobre mim.

— E qual era? — ele pergunta, a voz séria.

— Você vai achar uma besteira...

Qual era, Esther?

Por um segundo, penso em mentir, mas sei que ele vai saber se eu o fizer. Então respiro fundo e digo a verdade:

— Por onde quer que eu passasse, todo mundo estava falando sobre o sumiço da princesa. Diziam que eu era uma ingrata egoísta por fugir, que havia cuspido no túmulo da minha irmã, já que ela tinha morrido para que eu pudesse viver. Alguns homens também diziam... — engulo em seco, sabendo que essa parte vai chateá-lo ainda mais. — Que eu provavelmente tinha fugido porque era uma vagabunda e estava cansada de sentar somente nos soldados do meu pai. Todos inventavam coisas horríveis, como que eu só tinha entrado no exército para ficar entre os homens, ser a princesinha deles. Descobri que eu era popularmente conhecida como...

— A vadia da guarda. — o príncipe completa, me fazendo erguer o olhar para seu rosto, que está impassível. Mas eu não perco o brilho de raiva que seus olhos exibem. — Eu já ouvi isso antes. Só não sabia a quem se referia. — sua voz sai dura, e ele aperta a carta de sua mãe contra o punho. — E você se esconde por causa disso, não é? Porque um bando de filhos da puta fizeram você se sentir suja e com vergonha de si mesma por algo que você nem fez.

Antes que eu possa dizer alguma coisa, ele está me dando as costas.

— Khalled? Para onde você está... — começo a perguntar, mas ele se vira para me encarar de súbito. Sua altura nunca pareceu tão intimidadora quanto parece agora.

— Você acha que vai ficar assim? Eles falam merda de você e não vão pagar por isso?

Khalled. chamo seu nome, na intenção de que ele olhe nos meus olhos. Quando ele o faz, as emoções que vejo ali dentro me deixam desestabilizada. Ergo minhas mãos até seu rosto, sentindo sua pele. — Se acalme. Está deixando seu lado irracional te dominar. Pense bem, o que você vai fazer? Bater em todo mundo?

Ele solta o ar pelo nariz.

— Por que você se importa com em quem eu vou bater? Você sempre bate primeiro e pergunta depois. E eles merecem. Essa é você.

— Sim, eu sei que eles merecem e eu sei que essa sou eu. — trago seu rosto mais para baixo, encostando nossas testas. — Mas sou eu. Não você. Você é diferente. E é por isso que somos bons juntos. Eu sou a louca e você é a minha razão.

— Eu sei. — ele diz, rouco. — Mas eu também fico louco se mexem com você.

Ignoro as borboletas que levantam vôo em meu estômago.

— Eu posso lidar com quem mexe comigo.

Fico feliz de ver a sugestão de um sorriso se erguendo em seu rosto. O Khalled que conheço está de volta.

— O único motivo de eu ainda não ter ido atrás dos caras que ouvi falando mal de você é que sei muito bem disso — sinto sua mão envolver minha cintura. — Mas não estão mexendo só com você agora.

Desvio o olhar, não dando crédito ao significado de suas palavras.

— Vamos embora. — digo, saindo de seu abraço. O olhar que Khalled me dá quando me afasto faz com que os pelos em minha nuca se arrepiem.

— Você tem que me prometer uma coisa. — ele diz, enquanto desamarro as rédeas de Silver de onde as deixei.

— Tudo o que estiver ao meu alcance, senhor comandante. — respondo, montando sobre a minha égua cor de caramelo. Mesmo em cima do cavalo, sou apenas alguns centímetros mais alta que Khalled.

— Da próxima vez que viermos, — ele fala, tocando meu joelho. — Você não vai esconder quem é, ouviu? Os únicos que tem que se envergonhar são os idiotas que disseram aquelas coisas sobre você. Estamos de acordo?

Anuo com a cabeça. Sei que ele está certo. Ele sempre tende a estar em casos como este.

Satisfeito, Khalled aperta meu joelho em um agradecimento silencioso e então vai até Velaris.

Dessa vez, partimos de Kihast sem competições. Aprendemos um ritmo em que um acompanha o outro. Nenhum está liderando ou seguindo; estamos na frente juntos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top