• CAPÍTULO 14: O girino e os nativos
Aquele rapaz não inspirava confiança, era completamente deslocado e por mais que Will tenha dado a ele a chance de falar, ninguém esperava que muita coisa saísse daquela boca.
— Pode se sentar.
Adam o fez e todos na sala ficaram de frente para ele, como um círculo. Harvey estava com a mão no queixo, observando cada detalhe, movimentos e trejeitos. Parecia um interrogatório.
— Me desculpem por chegar assim. Mas sinto que chegou a hora.
— Hora do que? - perguntou Will.
— De saberem a verdade. - Adam tossiu e continuou. — O que vocês descobriram até agora?
— Não chegamos a uma conclusão. Ligando os assassinatos e a linha temporal, acreditamos que as mortes são por uma criatura na qual não identificamos. Fisicamente, teria tentáculos ou braços longos, viscosos. Uma arcada dentária brutal, além de espalhar o medo por onde passa. Sem peso, sem altura e sem forma e rosto, mas pelos relatos, acredito que tenha uma boa agilidade, além de conseguir entrar no psicológico das vítimas.
— Muito bom, acertou basicamente todas as deduções, mas ainda não é o suficiente.
Harvey notou a mudança de postura do meliante.
— Essa criatura pertence a uma linhagem antiga de demônios. Um horror sobrenatural que foge da compreensão da raça humana.
— E por que essa merda está justamente aqui? - Will não parecia acreditar muito naquela história.
— Não sei. Talvez alguém tenha aberto o selo de Q'ythshub. - Nem Adam parecia saber pronunciar a palavra.
Nenhum deles entendeu o nome dito.
— Escreve aqui. - Will entregou uma caneta e um papel para Adam escrever a palavra Q'ythshub. Só assim eles conseguiram entender, mas ainda não reproduziram direito. A pronúncia era dificílima e cada um falava de um jeito diferente do outro.
— Haja criatividade. - resmungou Hobs.
— Estou falando a verdade.
— Difícil acreditar. Diz que alguém invocou um demônio de uma linhagem antiga em Axel. Você tem que entender nosso lado.
— Não afirmo que alguém abriu o selo. Ele pode ter se aberto sozinho, ou foi desfeito. Não tem como saber. - explicou. — Mas podem acreditar em mim. O que vocês procuram é algo que transcende a linha humana e os coloca de frente para o verdadeiro desconhecido.
— Acho que já chega. - Will recolheu seu chapéu na mesa para ir embora.
— Ele não mente, Will. - disse Harvey, sentado e de olhos fechados. — Também não acredito nessas histórias, mas ele fala a verdade.
Os rostos na sala voltaram novamente a ficarem ligados.
— Aliás, ele poderia mostrar seu verdadeiro rosto.
— Do que fala, Harvey?
— A mudança no tom da fala, a fisionomia e essa barba falsa. Você é só um personagem montado.
Adam puxou aquele cavanhaque falso e despenteou o cabelo - usando-o do jeito normal. Era outra pessoa completamente diferente.
— Que olhar bom, detetive.
— Desde o primeiro momento que você passou por aquela porta eu observei seu comportamento. Poucas vezes fiquei na mesma sala que uma pessoa tão plastificada e falsa.
— Pelo menos o nome é verdadeiro? - perguntou Will.
— Sim, a idade também.
— Mas isso não torna suas histórias verdadeiras.
Adam se ergueu do sofá, com outra personalidade e tom de voz.
— Eu posso explicar. Tenho provas. Acreditem em mim, estou no mesmo lado que vocês.
— Vai nos levar até a coisa?
— Não, mas posso entregar as melhores respostas que vocês precisam.
Adam caminhou pela sala, abrindo a porta para sair.
— Me encontrem no topo da montanha ao leste, quando o sol se pôr.
Depois que o rapaz saiu pela porta, o grupo ficou em silêncio na sala.
Paul foi o primeiro a falar, logo depois de alguns minutos de silêncio.
— O que vamos fazer, xerife?
— Vocês dois - se referindo também à Hobs - vão ficar aqui para caso algo aconteça.
— Mas... — Sem mas, Paul. - interrompeu Will.
— Harvey virá comigo e as crianças voltarão para suas casas.
Os garotos começaram a tagarelar em voz alta, todos juntos. Uma barulheira.
— Vocês arrumam problemas demais.
— Eu acho que as crianças devem ir. - falou Harvey no meio da gritaria, fazendo com que todos se virassem a ele. — Ora, eles estão envolvidos diretamente. Participaram dos eventos. Nossas respostas podem ser oriundas dos acontecimentos em que eles estiveram.
— Harvey, você tem noção do perigo que estamos caso isso tudo seja verdade?
— Sim.
— E mesmo assim está querendo envolver quatro pirralhos?
— Sim.
— Tudo bem, não vai adiantar discutir com você. — Preciso esfriar a cabeça, quando eu voltar, espero que vocês estejam preparados.
Will se retirou lentamente, passando novamente pela sala.
— Blanche, liga para o Orfanato. Diz que o garoto Moore está comigo e vai extrapolar a hora hoje.
A secretária acenou positivamente enquanto Will foi para o lado de fora, fumar um cigarro.
Tinham uns seis cigarros jogados na calçada. Wil estava encostado no carro, passando o tempo, pensando na vida.
— Não acredita, não é? - Era Harvey, saindo pela porta escancarada.
— Não é questão de não acreditar. Você sabe disso.
Harvey pegou com Will a chave do carro e o abriu para pegar seu sobretudo verde.
— O que acha que ele vai nos mostrar?
— Sinceramente? Não tenho ideia. - Will apagava seu cigarro na mureta, enquanto isso.
— E se for uma emboscada?
— Vou jogá-lo morro abaixo. - disse rindo.
Harvey entrou novamente na delegacia e foi ao banheiro para tirar parte da roupa e colocar a tradicional.
Will aproveitou o carro aberto e foi arrumando os bancos de trás e tirando alguns entulhos que ele carregava para terem mais espaço para se sentarem.
Quando o sol já se punha, Harvey saiu da delegacia acompanhado pelas quatro crianças e Hobs e Paul, logo atrás.
— Preparados para embarcarem nessa viagem à curiosidade, garotos?
— Harvey, eles não têm 10 anos.
— Tudo bem.
Foram entrando um a um, Steve, Bonnie, Calvin e Kaden, nesta ordem. Todos na parte traseira do veículo.
— Quer levar a minha arma, Detetive? - Hobs ergueu-a, mas Harvey negou. — Não uso armas de fogo.
Will já estava sentado no banco, jogou mais um cigarro pela janela, esperando Harvey, que entrou minutos depois se sentando ao seu lado.
Para falar a verdade, não era bem uma montanha o lugar que Adam havia citado. Era o maior morro de Axel, para ser preciso e por isso havia mais semelhanças com uma montanha.
Eram imponentes, não existia uma altitude terrível - assim sendo, Bonnie não tinha muitas discordâncias em relação a ela - havia muitas escarpas pelo caminho, também.
Will dirigiu por quase vinte minutos, já estava cansado e ainda teria de passar pela floresta até chegar ao grande morro.
Harvey não abriu a boca durante o percurso e as crianças foram conversando a respeito de Adam, que estudava na mesma escola que eles.
— Eu não acredito que estamos seguindo dicas de Adam "Fracassado" Shelton. - disse Kaden.
— Eu nem acreditei que era ele. - Bonnie estava apertado no carro, posicionado no meio de Calvin e Steve. Sendo prensado.
— Por que vocês não falam um pouco sobre esse cara, garotos? - perguntou Will enquanto pilotava.
— Ah, ele é um fantasma. Ninguém o nota lá. É péssimo nos esportes, não conversa com ninguém, é gozado por quase todos os garotos. As meninas sequer olham para ele. - explicou.
— Acho que a única que olhou para ele foi a Lucille, no ano passado. - Lucille era uma garota pouco popular e também sofria perseguição dos outros alunos, no seu caso, por causa do peso - em que a pese ter perdido sete quilos neste ano. - Foi Calvin quem contou.
— Ainda bem eles não ficaram juntos. Ela podia devorar ele.
— E que diferença isso faz agora, Kaden? Agora ele pode ser devorado por um demônio da floresta. - respondeu Steve.
Kaden aproveitara qualquer brecha para fazer piadas, independente de cor, peso, idade, sexo ou qualquer outra coisa.
Will já deduzia que chegariam atrasados, o sol já havia ido e eles ainda estavam estacionando o carro.
— Espero que esse sujeito ainda esteja aí, se não, tudo foi à toa.
O grupo introduziu-se à floresta e por mais que o sol já estivesse desaparecendo, ainda estava claro, o que deu à eles certa liberdade de caminhar e desbravar o caminho sem tanto medo, em relação o que havia sido a primeira entrada deles naquela noite.
— Olhem! - disse Steve de repente. — Que é aquilo? - — E apontou para cima.
— É o topo, pessoal. - Will havia esquecido sua metralhadora, carregando apenas a pistola naquele dia.
— Só mais um pouco. - Harvey já estava suado, obviamente, aquele sobretudo contribuía para isso, mas ele não tiraria.
— Não seria melhor acelerarmos? - atalhou Calvin.
Eles apertaram o passo, passando por árvores, rochas e até um córrego que cortava alguns arbustos desaguava sabe-se lá onde.
Quando finalmente subiram, passando-se pelo curto relevo que havia, se depararam com Adam, de costas, olhando para aquele grande céu que se iniciava a escurecer-se por completo.
— Sejam bem-vindos.
— Você não mora aqui, não é?
— É claro que não, xerife. Eu moro num trailer, bem abaixo daqui, perto de um posto de gasolina.
Adam estava finalmente sendo original, sem barba falsa ou travestida com penteados curiosos e um toque de maquiagem para disfarçar seu personagem.
— Por aqui, venham.
Havia uma espécie de cabana à sua direita. Cheias de pedras em volta, nada chamava atenção ali.
— Eu não entro nisso. - exclamou Harvey.
— Detetive, o que vocês procuram está aqui dentro. Não temam, por favor.
— Era só o que me faltava. Ter um nômade, um ancião ou algum tipo de velho mago sentado aí dentro em volta de uma fogueira.
Adam puxou a espécie de cortina que servia como entrada e saída e para levar Kaden ao delírio, havia sim um homem ali dentro.
Vestido com uma grande túnica marrom, colares rodeando seu pescoço, o senhor aparentava ser muito velho, dizer que estava na casa dos cem não era loucura. Ele era branco, não possuía cabelo no centro da cabeça, apenas em volta e chegava a ser longo até as costas, sendo grisalho. Tinha um olhar sereno e transmitia paz pela suavidade de seus movimentos.
— Tá de sacanagem, é um velho, mesmo. - disse Kaden estupefato. — Puta merda é um ancião.
Harvey cutucou Kaden com o ombro, num gesto em pedido de respeito.
— Por favor, Adam, feche os panos, precisamos de privacidade para com nossos célebres visitantes. - disse o senhor de voz tranquila.
— Não, espera aí. - Will já colocara a mão na arma.
— Xerife, não se preocupe. Sinto muito se lhe pareço estranho, apenas quero conversar com vocês. - disse ele. — Aliás, sentem-se por favor.
— Mas no chão?
— Cala a boca e senta, Kaden. - Calvin foi o primeiro a sentar-se naquele chão de terra.
Aquela morada era pequena, mas conseguiu abrigar todos que ali estavam naquele momento.
— Sejam bem-vindos, novamente. Chamo-me Shiro.
Todos o saudaram com a cabeça.
— Recentemente, completei meu aguardado centenário.
— Incrível, senhor. - elogiou Harvey.
— Ah, vamos lá. Viver cem anos não é muito legal. - brincou.
— O que você sabe sobre essa coisa?
— Vamos com calma, xerife. - respondeu. — Primeiro, preciso que voltemos séculos atrás. Essa coisa, não chegou aqui hoje, ontem, ou semana passada. Ela pertence à uma antiga linhagem de demônios, o selo Q'ythshub - pronunciava de modo diferente à Adam, também. Era um nome dificílimo - é um selo no qual separa nosso mundo do outro, ou melhor, tenta.
— E como vive até hoje? - a breve explicação do velho causou muitas dúvidas as crianças e principalmente a Steve.
— Olhe para mim, jovem. Eu tenho cem anos completados. - respondeu. — Este selo foi aberto há muitos anos atrás, até antes da minha pessoa nascer, por exemplo.
Todos os olhos naquele momento estavam fixados e grudados em Shiro, até mesmo Adam, que conhecia um pouco da história.
— Um certo dia, um homem da Tribo dos Calimãs abriu este selo. Não foi por maldade, fora por inocência. Neste momento, três criaturas descritas como de cor escura, viscosa e com braços e pernas finas, foram libertadas.
— Supondo que seja verdade, temos três criaturas então e não uma, como pensávamos?
— Não, pois os Calimãs mataram elas.
— Esses Calimãs, como você sabe tanto a respeito deles?
— Xerife, você está falando com o último homem vivo que possuí o sangue dos Nativos correndo em suas veias. - todos se espantaram, exceto Adam, que já sabia desta parte.
— Meus antepassados puderam me contar todos os detalhes. Estou apenas repassando para que vocês saibam o que estão enfrentando.
— Por que nós? Você não se incluiu? - Harvey finalmente falou alguma coisa.
— Já tenho cem anos, senhores. Não posso fazer muita coisa. Agora, como um guia, sou o melhor que vocês podem ter.
— E como matamos essa coisa? - Will finalmente fez a pergunta que queria desde o início.
— Primeiramente, torçam para que ele ainda não tenha chegado em seu último estágio.
Will suspirou fundo naquele momento.
— O que você quer dizer exatamente?
— Essa coisa, como vocês chamam, possui três estágios de evolução. É como a metamorfose de um girino.
— E em que fase ele está agora?
— Eu nunca o vi. Só conheço a velha lenda. - respondeu ele. -— Em sua primeira forma, sua coluna é coberta por um tecido vermelho ardente.
— Foi o que vimos aquele dia, pessoal. - Calvin logo notou do que se tratava.
— E as outras formas, como são? - interpelou Harvey.
— A segunda, seus braços e pernas se esticam, sua postura se assemelha à de um homem encurvado. É mais humana.
— Dê detalhes do rosto, da pele, por favor.
— Eu já comentei sobre sua pele ser viscosa... Alguns dizem que há dois ou quatro tentáculos, mas não sei em que lugar essa parte do corpo fica. Eu sinto muito, não sei mais detalhes. Estes são os maiores detalhes que conheço. Suas características, por assim dizer.
— Você não falou sobre o último estágio.
— É porque nunca ninguém viu. - finalizou com a cabeça baixa, numa serenidade que assustava.
— Sua passividade. Não tem medo de morrer?
— A morte é apenas uma mudança de existência, meu caro amigo de sobretudo verde. - disse com o sorriso de canto de boca.
Will se levantou, saindo para fumar um cigarro sem dar satisfação.
— Senhor, se os Nativos mataram as criaturas da época...
— Ótimo ponto ter voltado a esse trecho. O mais plausível é que havia um casal naquele trio. Você sabe...
— Mas por que tanto tempo para essa quarta criatura aparecer?
— O processo de nascimento é demorado, podem-se passar até cinquenta ou oitenta anos para que uma delas consiga se desenvolver e sair de seu casulo, digamos.
— Ou alguém abriu o selo. - falou Adam no fundo.
— Essa hipótese não existe. Não há ninguém que saiba abri-lo.
Will retornou, puxando o pano que servia como porta.
— E como vamos matar essa coisa? - perguntou com a pistola em punho. -— Preciso que me diga para vingar meu pai.
— Não tem um modo específico. Apenas mate-o. Assassine-o. Faça-o. - disse em tom sério.
Will recarregou sua pistola. — Vou fazê-lo.
Shiro pediu que o chamassem de volta para dentro, e Calvin o fez.
Quando reunidos novamente, Shiro desenhou ao chão sujo, com a ajuda de terra, lama e com os dedos, alguns símbolos, absolutamente nenhum deles sabia do que se tratava, exceto Harvey.
— São hieróglifos. Por que isso?
— Exato, isto é como um grande jogo de tabuleiro e quando você se liga à ele, não pode sair. Vocês estão fadados a isso. São como peças, como cartas de um destino obscuro, desconhecido e que representa a alma do inescrupuloso.
Will já estava com pressa, em pé, à direita daquela cortina que separava entrada e saída.
— Xerife, se quer saber sua função neste jogo. Posso lhe dizer que você representaria a Estrela. Você é o personagem que guia e orienta.
Will cerrou os punhos, mas entendera que não se tratava apenas de vingança e sim de algo bem maior.
— Amigo do sobretudo.
— Diga.
— Você sem dúvida alguma seria o Louco. O representante do início e fim. Aquele que quebra ciclos, entusiasta da curiosidade. - disse o velho carinhosamente.
— Vocês, crianças, se me permitem. Vejo em vossa serenidade, olhares e pureza. O Sol, a Lua, o Imperador e o Mago. Nesta ordem para Calvin, Kaden, Bonnie e Steve, que ficaram arrepiados com as palavras proferidas bem à sua frente.
— E o seu filho? - perguntou Will, apontando para Adam.
— Não é filho dele. Aproveito para questioná-lo a respeito da relação entre os dois.
— O Shiro cuida de mim. Nunca conheci meus pais, sou sozinho, vivo sozinho. Até que um dia ele me acolheu. Tudo que aprendi foi graças a ele. Mas não temos conexão por sangue ou algo do tipo.
— Xerife, Adam é o Eremita, o meu Eremita. Ele apenas segue seu destino, livre do julgamento existencial e em busca pela verdade interior.
— E por que o disfarce de retardado? - questionou em tom de deboche Kaden.
— Foi um pedido meu. Pedi para que ele não se misturasse com os outros, não fosse notado. Andasse em meio ao caos sem ser visto. Mas agora, ele sabe que chegou à hora de mostrar seu verdadeiro eu.
Will se retirou, desceu morro abaixo. As crianças, fizeram o mesmo caminho alguns minutos depois, mas Harvey ficou por mais um momento.
No cume calmo, sentou-se à sombra da Lua que se levantava.
— É um bom lugar para passar a vida. - disse ele para Shiro, que olhava para o vasto céu estrelado.
— E eu pude aproveitar. Cada momento. - O velho deu um tom de despedida em suas falas, mas agraciando o diálogo.
Harvey foi embora logo em seguida, encontrando-se com o restante do grupo frente ao carro do xerife.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top