• CAPÍTULO 11: Conta comigo

   O impacto que o nevoeiro causou naquele dia afetou não só fisicamente os moradores de Axel como também foram como uma onda psicológica para todos, devastando do mais cético ao mais fiel. Um acontecimento que colocou muitas perguntas na cabeça dos cidadãos.

   Toda a programação da televisão foi alterada, jornais só estampavam isso, buscavam respostas, paravam todos na rua para produzirem suas matérias sensacionalistas.

   A prefeitura amanheceu com pichações, das mais variadas frases, como pedindo renúncia a Hargrove ou respostas urgentes.

   Max e o restante dos funcionários estavam com a corda no pescoço pela primeira vez em muitos anos e o prefeito cedeu uma entrevista logo cedo a um dos canais locais.

   Enquanto jornalistas batiam com perguntas ácidas, Max foi decisivo novamente nas questões, colocando um ponto final na história. Não havia serial-killer, não havia monstros. Pediu tranquilidade ao povo e que voltassem a trabalhar. Axel não poderia parar e nem ficar à mercê disto.

   Por fim, o aluado jornalista Dustin Dursley - um gordinho, de cabelo encaracolado, formado numa universidade pouco conceituada em Iowa - incendiava a entrevista com perguntas infundadas e descabidas, como se existisse alguma criatura sobrenatural ou mística aterrorizando os impuros, mas fora expulso da sessão de perguntas pelos seguranças à pedido do prefeito.

   O prefeito encerrou a entrevista afirmando a uma jornalista - Janet Jerry, morena, de olhar forte e formada também em Iowa - que as investigações haviam sido abertas logo depois que o mesmo encerrou - notícias até então reveladoras para a mídia - e que uma nova equipe já estava investigando o caso. - uma mentira deslavada, visto que a prefeitura não tinha condições de bancar isso e a responsabilidade estava no colo do xerife Will Thompson mais uma vez.

   Mais tarde, naquele mesmo dia, houve a cerimônia à Billy Grusin, o jovem morto naquele episódio melancólico e obscuro do nevoeiro - o funeral aconteceu no Nook Of Peace, um pequeno cemitério que ficava bem distante da cidade, mas ainda assim em Axel.

   Poucas pessoas foram ao local, a família do próprio, os Grunnings - família por parte de pai - os Wright - família descendente de britânicos que eram muito próximos a Billy por serem amigos no time de basquete em que jogava - e por último, quatro ou cinco Collins, uma família de vizinhos.

   Billy passava as férias com sua família e foi brutalmente assassinado quando saía do supermercado naquele fatídico dia.

   A cerimônia - comandada pelo padre Granger, um senhor negro, de barba, careca e vestindo um roupão escuro - ainda teve uma parte dedicada ao funcionário desaparecido - e declarado morto - daquele dia. Tratava-se de Carmine Duffer, de quarenta anos. Seu corpo não foi encontrado e horas depois sendo declarado morto.

   O prefeito Max foi - não por vontade própria, mas sim para manter as aparências - ao funeral, mas não ficou por muito tempo, alegando trabalho na prefeitura.

   Will se ausentou, ficou em casa - com Harvey - estudando o caso. Sua residência amanheceu com apenas um protesto, uma pichação preta, numa das muretas da casa: Incompetentes, dizia. Will demorou um pouco para apagá-la com água.

   As crianças também não foram ao funeral, mas não por falta de empatia ou de trabalho a se fazer.

   A tentativa de esquecer os problemas e os acontecimentos recentes fazia com que Calvin, Kaden, Bonnie e Steve se concentrassem na noite do RPG - em que pese Bonnie não ser muito fã, eles já haviam combinado.

   O porão dos Smith na Blatty Callary serviria de refúgio e sossego para as crianças após o acontecimento no supermercado naquele dia mais cedo.

   A Callary era das ruas mais bem vistas da cidade com moradores influentes e afortunados, sendo sua grande maioria de classe alta.

   Lissa - mãe de Calvin - havia contatado o Orfanato Lewis pedindo a liberação de Kaden - a pedido de Calvin - para passarem a noite juntos.

   O primeiro a chegar foi Steve, seguido por Bonnie e Kaden. Os três guardaram suas bicicletas na garagem do senhor Smith.

   — Vocês querem jantar agora? - era pouco mais de dezenove horas e Lissa poderia arrumar a mesa para as crianças.

   — Não, mãe. - Calvin e os garotos preferiram deixar a barriga vazia para se encherem com besteiras enquanto jogavam

   A residência dos Smith retratavam bem a década em que viviam. O grande sofá da sala, estampado por pele de tigre; carpetes por toda a parte. Tapete colorido no meio da sala com um centro de madeira escura logo em cima.

   Além do que, a grande televisão na sala - objeto de luxo à época - onde as crianças começaram a noite assistindo seriados.

   Quando o ponteiro se aproximou do nove, os meninos desceram para o porão para o prato principal da noite: a Party, como era chamada.

   O lugar era bem espaçoso, mas poderia ser mais. Havia muito entulho, como algumas ferramentas do pai de Calvin, caixas de papelão e mais algumas tralhas que não eram boas de colocar na parte de cima da casa.

   No meio, uma grande mesa preta com um tabuleiro acima. Dados e um livro aberto. Quatro cadeiras as suas esperas.

   Kaden era o Guerreiro, Bonnie o Elfo e Steve o Mago. Calvin era o responsável por narrar e dar emoção ao jogo. O nome da campanha daquele dia foi escolhido pelo próprio, se chamava "O Demônio do Portal" e o enredo era bem simples.

   No vilarejo de Awkianna, a criatura fantástica e aterrorizante chamada Beholder invadiria o local e devoraria os moradores; cabendo ao grupo evitar as mortes.

   — O portal foi aberto, senhores! - gritava Calvin. — Os fanáticos realizaram seu culto com êxito, abrindo o grande portal e trazendo o monstruoso Beholder para dentro de Awkianna.

   — Em todas as minhas campanhas eu nunca vi um Beholder. - disse Steve.

   — Pensem no jogo. - Calvin aproveitou para abrir uma caixa de uma das pizzas para comerem enquanto jogavam.

   O grupo parecia esquecer completamente o que havia acontecido com eles e com Axel nos últimos dias e a hora passou voando.

   Entre garrafas de refrigerante, caixas de pizzas e muita diversão, o relógio já estava prestes a cravar meia noite e o Beholder ainda estava vivo.

   O Elfo Bonnie já estava morto, mas ainda feriu a criatura antes de cair da campanha.

   — O que vocês dois farão? O povo de Awkianna depende disto! Ó Guerreiro Kaden e Mago Steve! Não deixem que o Observador - como era chamado o Beholder - devore famílias inocentes com tamanha ferocidade.

   — Vamos matá-lo! - gritou o Guerreiro.

   — Muitas vidas se perderam, incluindo a de seu amigo Elfo, mas vocês podem evitar mais mortes e selarem a criatura!

   Steve arremessou os dados, conseguiu dois seis. Era o que ele precisava.

   — Mago Steve, você paralisou o Beholder! Seus tentáculos e seus inúmeros olhos estão estáticos! É a chance de salvar os aldeões! Kaden, sua vida está aumentando com a magia de cura usada pelo Mago na rodada anterior, mas a dele está abaixando consideravelmente.

   Kaden pensou bem em qual jogada fazer. Salvar o amigo, matar a criatura, selá-la ou tentar ajudar Bonnie e depois decidir.

   — Vou usar minha espada.

   Os meninos ficaram atentos aos dados e a jogada de Kaden.

   — Guerreiro Kaden, você sabe o que fazer!

   — Eu vou matar o Beholder! - Kaden jogou os dados para a mesa, um deles caiu no chão e o outro parou na mesa. Ele precisava tirar pelo menos um seis e um três para derrotar o Beholder.

   As crianças ficaram espantadas, não era a jogada que eles queriam, mas poderia dar certo.

   — Você tem certeza disso? O Beholder já está se libertando do feitiço! - narrava.

   O dado que estava em cima da mesa parou no seis. Faltava pelo menos um três para os aldeões sobreviverem.

   Bonnie e Kaden procuraram pelo chão para achar o segundo dado enquanto Calvin ficou de pé em sua cadeira com o livro aberto e Steve à espera de seu destino no jogo.

   — Achei! Achei! - levantou o braço esquerdo e sinalizando com um dedo onde estava o dado.

   Kaden se levantou para ver. Era um três. — Três! Eu tirei um seis e um três! A gente conseguiu!

   Calvin olhou timidamente para Steve e Bonnie e voltou a narrar.

   — O Beholder está morto! O Guerreiro Kaden o selou com sua espada sagrada!

   — É isso! Eu salvei o povo!

   Steve se levantou da cadeira e foi arrumar a cama, seu personagem acabou morrendo enquanto Kaden optou por selar o Beholder e não ajudá-lo.

   Calvin e Bonnie perceberam, mas não valia a pena começar uma discussão sobre a campanha naquele momento.

   — Vocês vão dormir aí, meninos? -— Sim, mãe. - Os garotos arrumaram colchões pelo porão inteiro e dormiriam ali mesmo. Entulharam as caixas e garrafas num dos papelões, como se fosse um grande lixo. O cheiro não atrapalhava muito.

   Havia três lâmpadas redondas nas paredes e a luz principal - no teto, que fora apagada.

   Os meninos deitaram em seus colchões, mas as luzes das paredes permaneceram acesas para dar alguma claridade ao local.

   Bonnie e Steve aparentemente dormiram, mas Calvin e Kaden estavam acordados.

   — Você sabe que podia ter salvado o Steve, né?

   — Como assim, Calvin? Eu salvei o povo. - respondeu. Os dois conversavam olhando para o teto.

   — Mas deixou o amigo morrer. De graça.

   — Ah, não leva a mal. É só um jogo e nós vencemos.

   — Não precisa se preocupar. - Steve falou em tom baixo. Estava acordado, só com o rosto virado para a parede enrolado nas cobertas.

   — Ah, foi mal por te acordar. — Não, eu ainda não dormi.

   — O que houve? - perguntou Calvin.

   — Não consegui esquecer o que passamos ontem no supermercado.

   Logo, Bonnie também entrou na conversa. — Estamos enganando a nós mesmos.

   — Estão falando de ontem? — Não só de ontem, Calvin. - respondeu. — Tem muita coisa acontecendo na cidade que não estão dando o devido valor.

   — Vocês não viram? Tinha algo naquela sala, eu vi passando pelo buraco da porta. O xerife não quis falar, mas eu vi. Vocês devem ter visto. - Steve foi cirúrgico no comentário.

   Steve levantou as costas da cama, ficando um pouco encurvado.

    — É verdade, eu também sinto isso. Na verdade, eu vi algo muito estranho, também.

   — Como assim?

   — Um tempo atrás, quando fui comprar revistas... Vi aranhas saindo do bueiro, aranhas terríveis subindo em mim. Foi assustador

   Os outros três garotos também se ergueram de suas posições.

   — Aconteceu comigo. Foi depois que vimos a morte do velho Bill. - falou Bonnie.

   — O que vocês viram? – Calvin ficou curioso.

   — Vi uma cratera gigantesca no chão... Parecia um buraco negro e haviam sussurros dentro. – relatou.

   — Você tem medo de buracos? — Não, Kaden, pelo amor de Deus. Bonnie tem medo de altura. - respondeu Calvin.

   — E você, Calvin?

   — Senti as paredes me encurralando quando fui comprar meu walkie-talkie. Não conseguia respirar, fiquei em pânico com o lugar pequeno e apertado. — Kaden, só falta você contar.

   — Um tempo atrás, quando fui pra igreja. Senti algo, vi uma tempestade, pessoas nas portas. As estátuas choravam sangue. Foi horrível.

   — E nada disso era de verdade, não é? — É, Steve. Parece que vivemos nossos piores medos desde então. - Calvin estava mais pensativo que o restante dos amigos.

   — O que sabemos é que não é uma pessoa. — Calvin tem razão.

   — Será que é um Neh-Thalggu? - um monstro famoso em D&D com alguns tentáculos, Steve viu semelhanças entre o que aconteceu no supermercado e com a criatura do jogo.

   — Essas coisas não existem, Steve.

   — Eu não sei, não. Aquilo que vimos não era humano e nem parecia um animal comum. - salientou Bonnie, virando-se para dormir.

   — Não vamos falar com o xerife?

   — Acho melhor não, Calvin.

   — Certo, amanhã nós pensamos melhor sobre isso.

   Os garotos finalmente colocaram para fora suas histórias e seus medos mais aterrorizantes entre si, podendo estabelecer uma linha de raciocínio e projetando uma história trás do que estava acontecendo em Axel.

   Era quase meio-dia quando Calvin, Bonnie e Steve levantaram de seus colchões. Kaden havia ido embora cedo, ninguém viu.

   Lissa estava conversando naquele grande telefone vermelho na sala, quando as crianças passaram correndo para o quarto de Calvin.

   — Já decidiram o que vamos fazer? - Calvin passou a chave na porta do quarto, se trancando com os meninos.

   Era um quarto relativamente grande, havia dois móveis escuros e trabalhados na cor mogno. Muito comum naquele momento. Eram resistentes e belos.

   Sua cama ficava à direita, encostada numa parede pintada com adesivos e abaixo de uma das janelas do quarto. Se você deitasse ali, sua visão de frente seria a de um pôster de filmes como "O Massacre da Serra Elétrica", de 1974 e de "Tubarão", de 1975.

   Havia uma segunda janela, que dava uma vista para trás da casa.

   — Eu acho que o xerife vai nos privar de ver o caso. - disse Bonnie.

   — Então vamos sozinhos.

   O pulso de Steve acelerou só de imaginar isso, era muito perigoso três crianças saírem assim procurando pelo desconhecido.

   — Vocês não acham arriscado? - perguntou.

   — Isso nos interessa. Nós estávamos lá em todos os momentos. Essa coisa também está ligada a nós.

   Bonnie concordou com Calvin e perguntou por Kaden. — É, mas e o Kaden? Ele foi embora antes.

   — Ele deve ter ficado chateado, vamos nós três. Não devem liberá-lo tão cedo do Lewis hoje.

   — E o que vamos levar nessa expedição?

   — Não nos preparamos. Vamos levar algumas garrafas de água e qualquer coisa para comer.

   — Não acham melhor levarmos nossas armas? - Steve puxou do bolso direito do casaco um estilingue. - todos eles tinham e sabiam usar. — Boa, Steve. - Calvin e Bonnie também tinham os seus.

   Um ruído passou pelo quarto naquele instante. — Desculpa, estou com fome. - O estômago de Steve não deu descanso.

   Os três gozaram da situação rindo no quarto. — Tudo bem, minha mãe deve preparar algo pra gente comer.

   — Vamos assim que terminarmos. - concluiu Bonnie.

   Infelizmente não foi como eles esperavam. Só foram almoçar por volta de uma e trinta da tarde e ficaram com a barriga cheia, dormiram todos no porão enquanto arrumavam suas mochilas para sair em busca de informações.

   Daquele porão, só se ouvia a respiração do trio e alguns roncos perdidos.

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