• CAPÍTULO 04: Kaden Sinclair

   A Rua dos Pinheiros é uma das menores de Axel e por isso todos os moradores se conhecem e possuem uma grande amizade, são, na maioria das casas, modestos e pouco barulhentos.

   Na realidade, seu nome é Watson Hiddlestone mas é carinhosamente chamada por esse apelido por ser um local muito arborizado e com enormes pinheiros em toda a sua volta.

    O principal ponto da rua é o Orfanato Lewis, criado em 1946 após um incêndio que acarretou na morte de diversas famílias que ali moravam. Com isso, o prefeito à época, Lewis Henderson, decidiu construir o local para que muitas crianças que haviam perdido seus pais pudessem ter um lar.

   A construção foi muito moldada à época e passou por poucas reformas. A condução elétrica e seus fios foram corrigidos com o passar do tempo, quadros com teor bíblico são pendurados nos quartos das crianças e no refeitório existem pinturas de artistas que fizeram sua carreira em Axel, como Olivier & Duchant, dupla francesa que fez boa parte de sua vida na cidade.

   Hoje são dois andares - o segundo fora construído na década de 60 com o aumento de crianças - o primeiros é completamente pintado por amarelo e laranja, enquanto o segundo é misturado entre verde e azul.

   São pouco mais de sessenta crianças dividindo o ambiente na data atual, sendo a maioria meninos, ocupando o número de 43.

   As regras são básicas e foram mantidas desde que Lewis construiu o orfanato. As crianças podem ficar fora do orfanato apenas por duas horas - não contando o tempo em suas escolas - e aos fins de semana, esse tempo é aumentado para três horas e meia.

   Quando construído, Lewis afirmou que gostaria que o lugar recebesse crianças de qualquer idade e pudesse viver como uma pessoa normal, sem tantas restrições. O prefeito - que dirigiu a cidade de 1940 até 1950 - defendia a liberdade para que as crianças pudessem moldar sua vida livremente e não se sentissem presas. Lewis também lutou para que as crianças pudessem viver ali até sua fase adulta, os dezoito anos, mas desde que faleceu devido a um câncer em 1962, muitas regras mudaram e hoje o comando está nas mãos do Grupo Baker, uma entidade que pouco aparece em Axel, mas comanda e empresaria muitas outras fontes de renda na cidade desde 1969, quando Edson Baker abriu sua primeira empresa na região.

   Hoje, o Grupo Baker tem sede em Illinois e atua à distância, enviando funcionários especiais para tratarem de assuntos sigilosos e negociarem termos e contratos com suas fontes em Axel.

   Elianna Baker e Lincoln Baker - filha e filho de Edson e Lyanna - são os chefes do grupo e decidiram mudar algumas regras quando a década de oitenta começou, o que chateou boa parte da população e inclusive fez com que Lincoln desistisse de sua candidatura a prefeito da cidade.

   Porém, ambos continuaram com seus planos e alteraram o principal ideal que Lewis havia implantado na criação do orfanato.

   Com Lewis, as crianças permaneciam no orfanato até os 18 anos e só aí seriam liberadas, já que não poderiam passar a vida inteira no local. Após saírem, a própria prefeitura da cidade arcaria com um card-fixo de 200 dólares para as crianças por até seis meses, ajudando-as por um determinado período.

   Com o casal de irmãos, a regra diminuiu para 15 anos, o card foi barrado e caso você não fosse adotado, seria despachado no dia seguinte ao seu aniversário. Os horários para ficar fora continuam os mesmos.

   Kaden Sinclair é uma dessas crianças. Sinclair nunca conheceu seus pais e vive no Orfanato Lewis desde que nasceu, quando o próprio hospital pediu para que ele fosse colocado.

   No início, era o garoto que sem dúvidas mais dava trabalho para as funcionárias, mas com o passar do tempo e da criação, foi mudando seus hábitos, em que pese ainda ser um dos maiores boca-sujas de toda Axel.

   É o mais velho entre Calvin, Bonnie e Steve, sendo branco e o mais magro do grupo. Tem um físico bem pequeno, cabelo liso e completamente negro dividido no meio da sua cabeça. Tem um olhar que aparenta sempre cansaço e no início era sempre questionado se estava com sono ou não.

   Kaden costuma ser mais pacífico no orfanato, mas quando está na escola adota outra postura, mais liberal e infantil, sendo sempre sarcástico e debochado com os outros, incluindo alunos das turmas avançadas ou até mesmo pessoas mais velhas, como professores e outros funcionários.

   Uma particularidade do garoto é o receio em ir a funerais ou cerimônias de despedida, já que isso sempre o remete a pensamentos de como seriam seus pais e porque eles não estão mais aqui.

   Ele também não tem muito carinho por igrejas, mas costuma ir aos domingos pois sempre foi induzido pelo orfanato a ir, nem que fosse por uma missa nos finais de semana e naquele domingo não foi diferente.

   — Vou aproveitar que está cedo, não deve estar cheia. - Kaden conversava com Alice, uma das secretárias do orfanato, era domingo de manhã e ele pretendia se confessar.

   Sua bicicleta era um presente do sr. Hopper, um homem de pouco mais de cinquenta anos e que trabalhava nos arredores do orfanato. Era uma das poucas amizades de Kaden tirando os conhecidos da escola.

   Na bicicleta, havia a frase "Nunca desista", em sua lateral direita. Arte provavelmente feita pelo próprio Hopper, que sempre cuidou do garoto e o observava de perto desde que entrou no orfanato, sendo um apadrinhado por ele.

   Hopper era um homem branco, de cabelos liso na cor preta, com grandes entradas e nunca era visto com blusas de manga curta, sempre trajando roupas escuras e longas, tampando sua pele. Era um homem misterioso, mas que trabalhava para o orfanato sem remuneração há anos, sendo uma pessoa muito querida pela comunidade da Rua dos Pinheiros.

   Kaden o cumprimentou com um sinal com as mãos - Hopper sabia que ele iria a igreja - e assim o menino desapareceu pelas ruas.

   Eram duas quadras até chegar na Igreja do Acreditar, uma comunidade cristã que recebia pouco mais de quinze pessoas.

   Mesmo pequena, era muito aconchegante aos fiéis. Seus vidros com pinturas religiosas, cores fortes e vivas nas vidraças, paredes brancas, bem limpas e estátuas de anjos pelo local.

   Diferente do restante das igrejas de Axel, ali, a confissão vinha antes da missa, que acontecia aos domingos especificamente em três horários. Dois na parte da manhã e outro no início da noite.

   Kaden era um dos mais queridos pelos funcionários, ajudantes e outras pessoas que frequentavam - mesmo sendo boca-suja - e por isso era sempre muito bem vindo, recebendo carinho de todos.

   O garoto inclusive tinha uma cópia da chave da igreja, pois muitas vezes chegava antes dos outros e até mesmo abria o local. Alguns dias, por exemplo, ele chegava a limpar, arrumar os bancos e tirar a poeira da igreja.

   Neste dia, Kaden chegou alguns minutos antes, mas ainda assim acreditava que o padre estivesse já presente.

   Quando passou pela grande porta de madeira, reparou que ainda não havia ninguém.

   — Padre? Alguém aí? - sua voz ecoou pela pequena igreja. Atrás, havia apenas um pequeno espaço onde o padre e ajudantes costumavam se preparar para entrar.

   Kaden não tinha o restante das chaves e por isso olhou para o pátio dos fundos subindo num dos bancos e olhando pela janela na parede. Não tinha ninguém.

   Quando desceu, reparou que havia muita poeira nos bancos e nas estátuas. Kaden foi até o interruptor na parede esquerda e apertou. O botão não funcionou de primeira e por isso ele precisou apertar mais uma vez, até que todas as luzes se acenderam. Eram oito, quatro de cada lado, iluminando as fileiras da direita e esquerda.

   Kaden não tinha muito carinho pelas igrejas, mas por ser tão bem tratado e acolhido, ele frequentava aos domingos, além de ser um lugar no qual ele se sentia bem querido.

   Sem entender o motivo de não ter ninguém presente, ele acreditou que havia chegado cedo demais e então decidiu organizar a igreja para os que chegassem depois.

   Foi até uma pequena sala que ficava à direita de onde padre atuava. Não precisa de chave pois não tinha porta. Tirou um balde com água e dois panos.

   Iniciou a limpeza pelo lado direito. De joelhos, começou a esfregar sem parar. Uma, duas, três e quatro vezes em cada um dos bancos. Repetidamente.

   Depois disso, tirou a poeira das pequenas estátuas, foi bem mais tranquilo e rápido, já que não eram tantas e o tamanho ajudava.

   — Nossa, os meus joelhos vão ficar uma merda. - arregalou os olhos assustados. — Opa, desculpa qualquer coisa aí. - se benzeu olhando para a imagem de Cristo na parede.

   Ele já havia retornado ao agachar para agora limpar as fileiras da esquerda, quando notou que o tempo havia mudado olhando pela janela. — Nossa, não pensei que o tempo fosse mudar desse jeito.

   Um estouro no céu fez com que Kaden chutasse o balde para longe. Por sorte, não entornou a água e era só um trovão, mas ele se assustou do mesmo jeito.

   Kaden não puxou o balde de volta, preferiu continuar a esfregar os bancos da esquerda com o pano que já estava umedecido.

   Uma das luzes piscou mas Kaden demorou a reparar.

   — Essas fiações velhas. Ninguém dá um jeito nisso. - essa luz em questão apagou-se sozinha e Kaden voltou ao interruptor.

   Dedilhou-o várias e várias vezes, rapidamente e sem parar, até que finalmente aquela luz se acendeu novamente.

   Raios começaram a rasgar o céu e ele observara pela janela. — Vou chegar no orfanato completamente ensopado. A meteorologia só erra agora? - se questionava, pois não havia indício algum de chuva naquele dia.

   O pano que ele estava usando já não estava tão úmido e por isso ele precisou se levantar novamente. Dessa vez para pegar o balde que havia empurrado com o susto do trovão.

   Quando chegou perto do balde e se abaixou para pegá-lo, havia uma sombra logo atrás da porta que levava ao pátio. Era possível ver pelo vão da mesma. Kaden ficou com medo, mas perguntou.

   — Olá. Padre Winston? É o senhor? – respirou fundo. — Você está na chuva? Eu não tenho a chave dessa porta. - dizia ele, mas não era respondido.

   Um novo trovão chegou e Kaden chutou o balde de vez, entornando a água pela igreja.

   Kaden sentiu-se ameaçado, seu estômago estava embrulhado e ele sentia uma angústia colossal por dentro. Não imaginava o que era.

   Logo após tentar se estabilizar, reparou que não havia mais sombra atrás da porta. Ele já ficara preocupado e sem saber o que fazer.

   Sozinho, Kaden fechou os olhos para rezar, mas tampouco pôde começar. A imagem de Cristo - pregada à parede da frente - desceu abaixo e caiu no chão, fez com que Kaden desse um pulo abrindo os olhos novamente.

   Seu coração parecia saltar do peito, suas mãos já estavam cobertas de suor e tudo pioraria quando percebeu que escorria sangue feito lágrima dos olhos de uma das estátuas de anjo. Desciam como uma cachoeira vermelha.

   As luzes começaram a piscar. Todas elas e sem parar por minutos. Kaden segurou o choro como nunca antes na vida e quando as luzes se estabilizaram, ele disparou para dentro da cabine onde as confissões eram feitas.

   Kaden se embrulhou, se retorcendo por completo e ficou em posição fetal enquanto fechava os olhos e começava a pedir ajuda divina.

   — Kaden. Kaden, você precisa sair. Não pode dormir aqui. - murmurava uma voz.

   Kaden colocou a cabeça para fora. Era o padre. O padre Winston, um senhor bem claro vestindo uma longa roupa branca com detalhes em dourado, com seus sapatos negros e crucifixo na mão direita.

   — Vamos lá, garoto. Saia daí.

   — Já terminou? - — O que? - questionou sem entender. - — A tempestade, padre.

   — Mas não houve tempestade, filho. Saia daí. Está um grande dia lá fora.

   Quando Kaden saiu da cabine, a porta da igreja estava aberta. Era visível a rua e o clima. Estava um belíssimo dia, sem nuvens e o céu dominado pela cor azul. Provavelmente batendo uns 30 graus naquele momento.

   Kaden olhou da direita à esquerda. Duas vezes. Não havia sangue nas estátuas e a imagem de Cristo estava intocada na parede.

   A última confirmação se deu quando ele viu o balde no chão e o pano num dos bancos. Sendo assim, correu para a porta que levava ao pátio e não viu ninguém.

   — Não chegou ninguém, padre? Só nós dois?

   — Filho, eu cheguei agora a pouco. Não tem nem meia-hora. Acabo de colocar minhas roupas e aí reparei que havia alguém dentro da cabine.

   Kaden levou as mãos à cabeça, cruzando-as em sinal de não acreditar em algo. Parecia perplexo, fora da realidade, num universo paralelo ao que ele havia vivido momentos antes.

   — Olha, filho. Seja lá o que aconteceu, você pode falar comigo. Nós da comunidade o adoramos, podemos ajudá-lo. Você sabe bem disso. - Winston remexia os braços e gesticulava enquanto mostrava afeto pelo garoto.

   — Padre, eu preciso ir embora. 

   — Não vai ficar para se confessar ou ao menos assistir a missa?

   Kaden fez sinal negativo com a cabeça e saiu pela porta de forma cabisbaixa. Já não conseguia diferenciar o clima que havia passado.

   Quando passou pela entrada, sua ficha caiu. Realmente, não havia chuva, trovão, relâmpago ou qualquer coisa próxima a uma tempestade. O gramado dos vizinhos estavam secos, verdinhos ao sol. Não havia acontecido nada.

   Kaden montou em sua bicicleta e retornou para o orfanato sem conversar com ninguém, nem mesmo com Hopper, que estava sentado dando comida aos passarinhos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top