𝐶𝐴𝑃𝐼́𝑇𝑈𝐿𝑂 𝑈𝑀

    

    Como fazia todos os dias, sentei-me no meu pufe predileto e abri o livro que já tinha relido três vezes, como se fosse a primeira. Sorri ao perceber que o sol não castigaria o dia com seu calor inclemente. Nuvens gordas de chuva logo cairiam, trazendo um alívio bem-vindo. Estava tão absorto em minha leitura que não notei o paciente recém-chegado. Decidi me aproximar.

— Olá? ― disse, aproximando-me do novato que se encolhia em um dos sofás espalhados pela clínica.

Ele respondeu quase num sussurro ao meu cumprimento. Tentei me aproximar mais, sem invadir seu espaço, pois ainda não sabia exatamente o motivo dele estar ali, internado.

— Posso me sentar aqui com você?

Um leve aceno de cabeça foi a resposta.

— Meu nome é Benício. Como você se chama?

— Também me chamo Benício. — respondeu, mexendo as mãos, nitidamente nervoso.

— É um nome bonito, não? — comentei, tentando suavizar o ambiente. — Posso te chamar de Beni, para diferenciar?

— Pode sim! — ele sorriu levemente, o nervosismo ainda presente.

— Então, Beni, por que você está aqui?

Ele soltou um suspiro longo, como se estivesse aliviado por finalmente poder falar.

— Tenho Transtorno do Espectro Autista em um nível leve. No entanto, minha família não sabia muito bem como lidar com isso, então… acabei aqui.

— E te trouxeram logo para cá? — perguntei surpreso. — Desculpe, não quis ofender.

— Não ofendeu. Na verdade, é uma boa descrição. A síndrome me torna um tanto “diferente” — frisou com os dedos. — Em comparação com a maioria das pessoas. Deve ser por isso. — disse, encolhendo os ombros.

— Não me parece justo. — comentei, sentindo a injustiça da situação. — Este lugar não parece adequado para alguém como você.

Encolhendo os ombros, ele deu um meio sorriso, um pouco triste.

— Muitas vezes tenho dificuldade em entender as sutilezas das interações sociais, mas aqui entre nós, acho que isso pode ser até uma vantagem às vezes.

Sorri de volta, percebendo o quão refrescante era encontrar alguém que encarava suas particularidades de forma tão tranquila. Nosso diálogo continuou a fluir, alternando entre risos e momentos de silêncio, nos quais ambos estávamos imersos em nossos próprios pensamentos.

— Sabe, Beni, as palavras que você disse me fizeram perceber que temos muito mais em comum do que eu pensava inicialmente. A sensação de ser diferente para a sociedade é algo que compartilhamos, mesmo que em contextos distintos. Às vezes, somos julgados por nossas características únicas, e isso cria um laço instantâneo de empatia entre nós.

A conversa fluía naturalmente, quebrando as barreiras invisíveis que normalmente separavam as pessoas naquela clínica. O som das gotas de chuva começou a bater contra as janelas, criando uma trilha sonora suave para nossa conversa.

— Acho incrível como as pessoas aqui se reúnem com todas as suas complexidades, suas lutas e suas histórias. Parece que a sociedade lá fora simplesmente não sabe como lidar conosco. Mas aqui, somos apenas pessoas, compartilhando nossas jornadas e tentando encontrar algum conforto. — disse.

Ele assentiu, olhando para a janela enquanto a chuva começava a cair com mais intensidade. Era como se as nuvens gordas finalmente estivessem cumprindo sua promessa de transformar o dia.

— Gosto do som da chuva… de —murmurou.

— Então, somos dois. Aqui, a chuva chega sem aviso e do mesmo jeito que chega, se despede. Você vai se acostumar. Pode me chamar de Be, para facilitar.

— Está bem, Be. E pode me chamar de Beni.

— Combinado! — disse, imaginando quem poderia tê-lo deixado naquele lugar.

— Não vou mentir, mas estou com medo de ficar aqui…

— Não precisa sentir medo. Estarei por perto.

Ele virou o rosto em direção à janela, novamente.

— Sabe, Be. — disse, olhando novamente para mim. — Acho que todos temos nossas próprias batalhas internas.

— Exatamente! Algumas são mais visíveis do que outras, mas todas são igualmente válidas.

— É reconfortante saber que não estou sozinho, mesmo que o mundo lá fora às vezes me faça sentir assim.

Ficamos em silêncio por um momento, absorvendo as palavras um do outro. Era uma sensação rara, estar em uma conversa tão sincera e significativa com alguém.

— Olha só, a chuva está começando a se acalmar. Como você disse! — observou ele, sorrindo para a vista lá fora.

— É verdade! Parece que o mundo lá fora está se acalmando com a chuva. — comentei, sentindo uma sensação de serenidade a preencher o ambiente.

À medida que os céus derramavam sua tristeza, transformando a chuva em uma garoa suave, que parecia dançar no ar, minhas reflexões ganharam profundidade. E assim, diante dos olhos molhados do céu, aquele encontro entre dois seres denominados “Benícios” desdobrou-se como um capítulo cuidadosamente escrito nas páginas do grande livro da vida.

Não foi uma simples coincidência que nossos caminhos se cruzaram. Foi uma coreografia cósmica, uma dança das estrelas que trouxe à luz a noção de que a solidão que muitas vezes se infiltra em nossos corações não é senão uma ilusão fugaz. A bruma que pairava no ar parecia ser um véu sutil, tecido pelo universo, unindo-nos naquela interseção de destinos.

Enquanto as últimas gotas da chuva deslizavam das folhas das árvores, fomos cativados pela mágica do momento. Nossos nomes idênticos, um acaso que se converteu em elo, de repente pareceram insignificantes diante da maravilha de nossa conexão. As palavras que trocamos eram como fios de uma teia complexa, cada uma delas, tecida com o propósito de formar uma tapeçaria de compreensão mútua e, acima de tudo, de amizade.

E assim, em meio à serenidade que sucede à tempestade, nossas palavras continuaram a fluir, criando um diálogo que ecoava como o murmúrio suave das águas que se esvaem. Cada frase que emergia de nossos lábios parecia ser um elo que fortalecia os laços invisíveis que já nos uniam. Os sorrisos trocados eram como estrelas brilhando timidamente através das nuvens escuras, lembrando-nos de que cada encontro é um presente, uma oportunidade de explorar os recantos mais profundos das almas que cruzam nosso caminho.

À medida que compartilhávamos nossas histórias, descobrimos que as linhas de nossas vidas eram surpreendentemente semelhantes em complexidade e diversidade. Por um momento, parecíamos viver histórias diferentes, mas com temas e emoções profundamente conectados.

À medida que a garoa parava e deixava o ar fresco, despedimo-nos com a compreensão implícita de que aquele encontro não era um fim, mas uma pausa temporária. Os olhares trocados e as palavras ditas agora faziam parte de uma história que continuaria além daquele momento, refletindo-se ao longo da vida.

— Foi ótimo conversar com você, Be. Sinto-me mais calmo. Tenho que ir até o psicólogo preencher minha ficha.

— Digo o mesmo, meu amigo. Também preciso voltar para meus afazeres. Até a próxima, Beni.

Ele sorriu enquanto se afastava. Cada um retomando seus respectivos caminhos naquele lugar insano, eu carregava comigo a certeza de que, de alguma maneira, o universo havia traçado seu curso para entrelaçar nossas vidas. Sob a chuva transformada em poesia, continuaria a inspirar-me nos dias vindouros, lembrando-me de que as conexões mais profundas muitas vezes nascem em meio à imprevisibilidade das circunstâncias e florescem como as mais belas flores da vida.

Total de palavras: 1178

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