𝐶𝐴𝑃𝐼́𝑇𝑈𝐿𝑂 𝑂𝑁𝑍𝐸
— Mendez? — anunciou o enfermeiro José, interrompendo suavemente minha imersão no mundo virtual das aulas de informática.
A luz brilhante do monitor deu lugar à iluminação suave da clínica. O toque da realidade parecia invasivo, mas eu precisava enfrentá-lo. Havia um contraste marcante entre as delicadas linhas de código que eu estava decifrando e o chão frio da clínica. Enquanto me desvencilhava das minhas imaginações binárias, José continuou com seu habitual sorriso amigável.
— Uma ligação para você, na sala do diretor. Vou acompanhá-lo até lá.
Obedeci em silêncio, sem ter ideia do que poderia ser, já que há muito fui esquecido naquele limbo. Assim que cheguei, sentei-me em frente à mesa, cujo cheiro forte de linóleo me causava náuseas. Ficamos nos olhando em silêncio, como se estivéssemos estudando a reação inimiga antes de atacar.
Ele sorriu e estendeu o telefone em minha direção, aquele aparelho antiquado em um mundo de transistores. Era uma linha direta com a realidade, uma conexão que eu muitas vezes preferia evitar.
— É do seu irmão, Mendez. — disse ele, sabendo que aquele nome estava gravado em meu coração como uma tatuagem de sentimentos.
A ligação atravessou o espaço entre nós, uma ponte frágil e imaterial. Aceitei o aparelho, sentindo sua textura lisa e fria contra minha pele. A voz do diretor se distanciou à medida que meus pensamentos mergulhavam no abismo da incerteza. A voz do outro lado da linha soava pesada, carregada de algo que eu ainda não conseguia discernir.
[ — Benício? É você? ]
Perguntou hesitante, como se não tivesse certeza de que queria falar comigo após tanto tempo.
— Sou eu. Como você está, Guto?
Augusto parecia estar do outro lado do mundo, com suas palavras ecoando através do espaço e do tempo. Eu queria alcançá-lo, trazer sua presença para mais perto, mas algo parecia nos separar, algo que eu ainda não entendia.
O silêncio se estendeu como uma névoa densa que envolvia nossa conversa. Eu me esforcei para rompê-lo, para trazer clareza àquela ligação tão imprecisa.
— Alô?
Minha voz soou trêmula, como se cada palavra fosse um fio esticado sobre um abismo.
[ — Então... Vou te buscar amanhã. Já está tudo preparado com o psicólogo e com as papeladas de liberação. Estarei aí de carro, logo após o almoço. Peça ao seu enfermeiro para organizar suas coisas. E, pelo amor de Deus, troque de roupa! Essa bermuda cor de telha me enlouquece! ]
As palavras de Augusto caíram sobre mim como pedras. Sua voz, normalmente segura, parecia vacilante, como se estivesse escondendo algo. As informações vieram em um turbilhão, e eu mal consegui processar tudo.
— Está certo. A bermuda pertence à clínica mesmo. Portanto, não vejo motivo para estar usando outra.
[ — Você entendeu, Benício? ]
Perguntou, enfatizando sua preocupação.
— Entendi. Você virá me buscar.
Consegui dizer, minha voz vacilante, tentando encontrar firmeza em um terreno instável.
[ — Ótimo! Perfeito! Você está bem? E os ferimentos? ]
— Já cicatrizaram. Obrigado por perguntar.
[ — Certo! Melhor assim. Então, até amanhã, mano. ]
"Mano". Aquela palavra tão simples, mas carregada de uma frieza disfarçada, uma formalidade que beliscava as lembranças de nossa infância. Eu sabia que Augusto estava sempre lá, mas às vezes parecia que ele estava apenas cumprindo um dever, uma responsabilidade que carregava com um certo desconforto.
— Até amanhã, Guto! E obrigado por fazer isso. — murmurei, sentindo uma onda de gratidão me envolver.
[ — Fazer o quê exatamente? Tirar você desse lugar? ]
— Também, mas principalmente evitar que eu fosse o número doze. Você não entenderia, mesmo que eu explicasse.
Houve um momento de silêncio do outro lado da linha, como se as palavras tivessem deixado meu irmão perplexo.
[ — Do que você está falando? ]
Sua voz soou intensa, carregada de um misto de curiosidade e irritação.
Me vi mergulhado nas lembranças dos onze que vieram antes de mim, aqueles que suportaram mais do que qualquer pessoa deveria suportar. As histórias de sofrimento que testemunhei, os sorrisos que escondiam a angústia. O "número 12" era uma lembrança sombria da nossa história, um lembrete constante da fragilidade da mente e da força da família.
— Já não importa mais. Esquece isso, Augusto. — disse, desligando o telefone antes que pudesse me explicar mais, pois sabia que só iria irritá-lo.
A frase pereceu no ar, ecoando como um lamento não dito. A dor silenciosa que se acumulava há tanto tempo agora pesava sobre mim, uma carga que apenas aqueles que compartilharam do meu destino poderiam compreender.
Agradeci ao homem de bigode farto, sentado naquela poltrona encardida, e fui direto para meu quarto. As emoções contidas explodiram em lágrimas silenciosas. Eu me deitei na cama, meu rosto pressionado contra o travesseiro, os soluços sacudindo meu corpo. As lágrimas caíram como gotas de chuva em um dia nublado, um alívio e um tormento ao mesmo tempo. Precisava exorcizar toda a dor presa em mim.
— Sairei desse inferno, após tanto tempo! Voltarei para casa, enfim! Obrigado, meu Deus! — pensei, ao mesmo tempo que as lágrimas desciam.
Depois de alguns minutos, respirei fundo e lavei o rosto. Precisava voltar ao computador e dar uma explicação pela minha ausência ao meu novo amigo, Henrique. Já fazia alguns dias que começamos a trocar mensagens esporadicamente através do computador, e mesmo sendo por um tempo muito limitado, eram as mais agradáveis.
Do outro lado da tela, Henry percebeu minha ausência:
Henrique: Ei, Benício, você está aí? Aconteceu alguma coisa?
Mendez: Desculpa, Henrique. Uma ligação do meu irmão me abalou um pouco.
Henrique: Se quiser falar sobre isso, estou aqui para ouvir.
Mendez: Obrigado, amigo. É que... esperei por tanto tempo e, quando este dia chegou, não sei exatamente o que pensar.
Henrique: Compreendo. É uma sensação quase inimaginável de prazer. Mas este dia chegou e é a realidade de fato, meu amigo.
Mendez: Exatamente. A partir de agora, estarei do lado de fora dos muros.
Henrique: Estou pensando no meu amor. Ele sentirá falta da sua presença. Mesmo assim, o importante é que você está próximo da tão desejada liberdade.
Mendez: Obrigado pelas suas palavras, Henrique. Também estou preocupado com o seu amado. Pedirei para o Marcos cuidar dele na minha ausência. Ele é o único em quem confio aqui.
Henrique: Você faria isso por mim? Ficaria imensamente feliz se alguém pudesse protegê-lo. Sinto-me impotente estando longe. De qualquer forma, conversarei com ele e estarei presente todos os dias. Agora, pense em você e no seu próprio caminho. Estarei aqui para te apoiar, mesmo que seja apenas virtualmente.
As palavras de Henrique eram como um bálsamo suave, acalmando minha alma inquieta. Enquanto as lágrimas secavam, eu me sentia grato por ter alguém que se importava tão profundamente, sem nunca ter me visto. Respondi a ele, uma mistura de gratidão e otimismo enchendo minhas palavras.
Mendez: Obrigado, Henrique. Suas palavras realmente me ajudaram a ganhar perspectiva. Lutar contra os fantasmas do passado é difícil, mas ter vocês dois como amigos é uma luz viva em meio à escuridão.
Henrique: Estou verdadeiramente feliz por poder ajudar de alguma forma, Benício. Juntos, superaremos cada desafio dessa jornada.
Mendez: Ter você e meu xará como companheiros renova a esperança e me dá forças para seguir em frente, mesmo nos momentos mais difíceis.
Henrique: Acredite, você é muito especial para o meu amor e agora, para mim. Nossa conexão é única e duradoura, estaremos sempre ligados de alguma forma.
Cada palavra pronunciada por Henrique era como uma pincelada precisa sobre a tela da nossa conversa, compondo uma paleta de cores e tons que formavam um quadro emocional complexo. O diálogo fluía perfeitamente sintonizado, cada frase sendo uma resposta à anterior, cada pensamento sendo expandido e enriquecido pelo eco das palavras do outro. À medida que o tempo passava, nossa conexão parecia crescer como uma planta rara, enraizando-se profundamente na terra fértil da compreensão mútua.
No dia seguinte, a aurora tingiu o céu com tons suaves de rosa e dourado, um prelúdio visual para a chegada iminente de Augusto. A eterna espera que acompanhava esse momento era contrabalançada pela certeza reconfortante de que eu não caminhava mais pelos trilhos da incerteza sozinho, mas sim com o apoio discreto e constante de Henrique.
Os primeiros raios de sol começaram a aquecer meu rosto, e naquele instante, senti a liberdade se aproximar, não apenas como um conceito distante, mas como uma realidade palpável e ao alcance das minhas mãos.
Mais uma vez, respirei fundo e, após uma breve pausa, juntei todas as minhas forças, segurei as barras da janela, observei o jardim florido e respirei o ar perfumado de lavanda. O vento sussurrou promessas de renovação e um novo início para mim.
Total de palavras: 1429
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