𝐶𝐴𝑃𝐼́𝑇𝑈𝐿𝑂 𝑁𝑂𝑉𝐸


       Um mês se passou desde que os pontos e o dreno foram retirados. A dor que antes se infiltrava em meu corpo agora parecia ter se dissipado pela persistência implacável do tempo. Enquanto os dias se desenrolavam, eu meticulosamente registrava cada um deles em blocos de papel que, com o tempo, acumulavam dobras e vincos, cada marca contando uma história própria. Essas dobras, cicatrizes visíveis de minha sobrevivência, agora pareciam partes essenciais da minha jornada.

À medida que os dias avançavam, eu soltava suspiros profundos, tão intensos que, por vezes, me pegava flertando com uma ligeira vertigem. A verdadeira inquietação que perturbava minha serenidade era a contagem regressiva implacável em direção à minha liberdade. A incerteza de uma futura escapada delirante, urdida pela minha própria mente, projetava-se como uma sombra inquietante no horizonte da minha consciência.

Nesse momento, Marcos, um dos pacientes, percebeu minha crescente ansiedade e perguntou, curioso:

— Você parece distante ultimamente. O que está te preocupando tanto? Sentindo muita dor?

Olhei para ele, surpreso pela sua perspicácia e pelo tempo que havia se passado desde nossa última interação.

— Não. A dor física está fácil de suportar. Às vezes, sinto que minha mente está armando uma armadilha para mim mesmo, e não sei como escapar.

Marcos coçou a cabeça, ponderando e, após alguns minutos, respondeu:

— Todos enfrentamos nossos labirintos internos, aqui. Talvez, enfrentar essa inquietação seja o caminho para desvendar os mistérios que nos aguardam.

— Desde quando você virou um filósofo, Marcos? — perguntei, tentando aliviar a tensão com um toque de humor.

Marcos sorriu levemente, uma mistura de resignação e aceitação em seu olhar:

— Quem sabe? — riu. — Às vezes, a vida nos coloca em situações que exigem reflexão. Não somos apenas pacientes. Quem sabe o motivo de eu estar aqui? — falou, encolhendo os ombros despreocupadamente.

Foi se afastando, cantarolando e rindo pelo corredor da clínica. Fiquei observando-o, refletindo sobre como até mesmo aqui, na quietude forçada de uma clínica psiquiátrica, a vida poderia nos surpreender com suas ironias e lições inesperadas.

— Nada mais me surpreende nesse lugar... — pensei em voz alta.

Naquele dia em particular, enquanto me dirigia à sala de informática, um grito agudo irrompeu pelos corredores:

— Mais um! Rápido! Corram! Aconteceu de novo! O número onze!

O alarme reverberou nos meus ouvidos, e sem hesitar, apressei meus passos, já antevendo o que estava por vir. Chegando à borda da escada, inclinei-me o suficiente para vislumbrar o hall de entrada. Uma ambulância estava estacionada, suas portas escancaradas como as mandíbulas do submundo, apontando ameaçadoramente para a entrada do prédio.

No térreo, uma agitação frenética se apossava dos pacientes que, anteriormente, repousavam tranquilos. Enfermeiros corriam de um lado para o outro em movimentos frenéticos, cada passo ecoando como um martelar urgente no corredor estreito. O diretor da instituição emergiu, seu semblante usualmente calmo agora crispado pela urgência da situação. O corredor ressoava com vozes exasperadas e instruções rápidas, um caos meticulosamente organizado que sugeria uma tragédia iminente.

Aquela cena, tão reiterada e rotineira naquela clínica de reabilitação psiquiátrica, mergulhava meu âmago em um abismo de desesperança. Eu compreendia plenamente a magnitude da tragédia que se desenrolava, pois, eu mesmo, em muitas noites insones, havia me imaginado ocupando o lugar daquele paciente desconhecido. A sensação de impotência frente à escuridão crescia, cada pulso acelerado ecoando minha própria luta interna contra os abismos da mente.

Benício, meu fiel amigo, aproximou-se silenciosamente e posicionou-se ao meu lado. Seus olhos, normalmente cheios de uma inocência que contrastava com o ambiente sombrio, absorviam a cena diante de nós enquanto ele tentava decifrar seu significado. Sua expressão sincera revelava a pureza inerente ao seu autismo, um contraste doloroso com o caos que se desdobrava à nossa frente.

— Be Dois, o que está acontecendo? — perguntou, com um misto de confusão e preocupação.

— Digamos que mais uma alma decidiu buscar refúgio nas sombras da eternidade. — falei de forma gélida, quase indiferente, carregando o peso da tragédia que havia ocorrido.

— Como assim? Não entendi.

— Quando as formas habituais de escapar da realidade se tornam intransponíveis, a mente humana procura outras saídas... outros horizontes inalcançáveis. — disse.

Ele me encarava, confuso.

— A morte, meu amigo Beni. Às vezes ela é a única saída encontrada, mesmo que errada.

Benício olhou para baixo, absorvendo minhas palavras com uma expressão de pesar e compreensão misturados. O silêncio pesado entre nós, foi rompido apenas pelo som distante dos passos apressados e vozes exaltadas que ecoavam pelos corredores da instituição.

— É importante, amigo, que estejamos atentos nestes momentos mais sombrios.

— Isso é tão triste...

Permanecemos lado a lado, envolvidos em um silêncio que parecia ecoar nossos próprios pensamentos. Benício, transmitindo as informações digitalmente ao seu parceiro, e eu, imerso em reflexões sobre a identidade daquele que havia abraçado o desespero.

Gradualmente, o choque que antes acompanhava esses eventos, começava a dissipar-se. Era o décimo primeiro caso desde a minha chegada, e em algum ponto dessa jornada, o medo e a perplexidade haviam se metamorfoseado em apatia. Às vezes, até mesmo uma pitada de inveja surgia em relação àqueles que, de alguma maneira, conseguiram escapar das muralhas asfixiantes dessa clínica.

Minhas mãos tremiam involuntariamente, como se carregassem o peso do sofrimento de todos os que haviam passado por ali. Meu peito queimava, não apenas pela dor física, mas pelo peso das emoções não expressas que ameaçavam transbordar a qualquer momento. Eu lutava para controlar as lágrimas que teimavam em se formar, silenciar a voz interior que sussurrava incessantemente para eu me libertar daquele sofrimento, mesmo que fosse pela última vez.

— Be Dois, como isso aconteceu? Você sabe quem era?

A voz trêmula de Benício quebrou o silêncio, suas palavras carregadas de uma ansiedade palpável. Notei a umidade em seus olhos enquanto ele mordiscava o dedo indicador nervosamente.

— Foi um paciente da ala sul. Ele escolheu o trágico caminho de cortar os próprios pulsos. — respondi, evitando o contato visual, meus olhos perdidos em um vazio que refletia minha própria angústia.

— Mas você sabe quem era?

— Não faço a menor ideia, Beni. E sinceramente, isso parece irrelevante agora. Aqui dentro, as identidades se perdem diante da agonia compartilhada. — falei, resignado.

Minha voz carregava um desinteresse imparcial, como se já tivesse aceitado a inevitabilidade desses eventos dolorosos.

Ele abaixou a cabeça, entregando-se à digitação frenética em seu dispositivo. Após alguns segundos, ergueu os olhos na mesma direção que os meus. Permaneceu ali, imerso em seus pensamentos, até que seus dedos voltassem a dançar pelas teclas, e então ele falou:

— Ele já demonstrava sinais disso?

— Neste lugar, meu caro amigo, não se trata de demonstrar sinais. Basta possuir a dose certa de desequilíbrio para compreender quão insano é este ambiente. As paredes carcomidas pelas sombras, os corredores ecoando os suspiros silenciosos dos desesperados e os murmúrios ininteligíveis dos que perderam a esperança... — suspirei, desviando o olhar.

— Tudo isso é tão triste e tão amargo... — murmurou com olhos marejados.

Foi nesse momento que percebi a profundidade de sua emoção. Temia que meu jovem amigo não suportasse mais a pressão desse lugar.

— É um labirinto de loucura que nos envolve a cada dia. Mas prometo que isso não irá nos consumir — assegurei, buscando transmitir um pouco de esperança em meio à escuridão.

O silêncio retomou sua presença, as palavras perdendo-se pelos corredores vazios. Vi o semblante pesado de meu xará, encarando a maca carregando o corpo coberto. Pensei em dizer algo, mas nada ajudaria mais que o silêncio.

Ele voltou a me encarar, compreendendo o fardo do entendimento mútuo, mesmo que a solidão ainda espreitasse como uma sombra intransponível, ameaçando nos engolir a qualquer momento. Era um cenário onde a luz da esperança parecia quase extinta, deixando apenas um resquício frágil e vacilante no horizonte sombrio.

Total de palavras: 1286

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