𝐶𝐴𝑃𝐼́𝑇𝑈𝐿𝑂 𝑇𝑅𝐸̂𝑆

      A tão aguardada hora do almoço chegou. Esse breve intervalo na rotina funcionava como um pequeno oásis de normalidade no vasto deserto das mentes aflitas ali presentes. A atmosfera mudava, proporcionando uma pausa na correnteza frenética de pensamentos e angústias.

Como um intrincado ritual diário, a fila para o refeitório se formava, os pacientes alinhando-se em uma dança sincronizada de passos cautelosos. Esses momentos de conformidade eram personagens inanimados, ainda que cada vida contasse uma história profundamente diferente.

Dentro dessa tapeçaria de comportamentos previsíveis, havia um elo dissidente, um protagonista relutante daquele espetáculo. Eu, um paciente esquizoide, preferia distanciar-me do rebanho. Como um observador crítico, desafiava a obediência e optava por ser o último a entrar na fila. Cada almoço se tornava uma pequena batalha, uma expressão silenciosa de resistência, minha busca pela individualidade naquela clínica.

Enquanto todos se apressavam para ocupar seus lugares, eu permanecia no meu canto, onde a quietude era minha aliada e as palavras, quase intrusas. Ali, encontrava consolo em meu próprio mundo interior, como se meu silêncio fosse um abrigo contra as demandas sociais. No isolamento escolhido, tornava-me uma peça solta no quebra-cabeça humano daquele lugar. E, embora minha solidão fosse autoimposta, não era completa. Olhares curiosos e breves trocas de sorrisos com outros pacientes eram pequenos momentos silenciosos.

No compasso das murmurações da multidão, Beni descia as escadas de madeira envelhecida, os degraus cedendo sob seus passos apressados. Empunhando seu fiel celular, pausou momentaneamente no último degrau, absorto na composição digital de alguma mensagem, um sorriso brincando nos lábios enquanto se dirigia ao refeitório.

Voltei meu olhar ao meu pequeno mundo na varanda, onde me entreguei à suave brisa que enchia o espaço. Contudo, minha atenção foi logo capturada para o cheiro de comida, vinda do refeitório. A fome começou a se fazer presente no meu estômago, um lembrete insistente, mesmo que relutantemente, para levantar e enfrentar a fila.

Surgiu em mim um impulso, uma estranha vontade de me aproximar daquele novo camarada. A ideia parecia absurda, e a simples perspectiva de interação pessoal causava em mim certo desconforto.

Decidi, enfim, sentar-me em outra mesa, de frente para a dele, deixando-me envolver por uma melodia que tomava conta dos meus pensamentos enquanto degustava o macarrão recheado de almôndegas e banhado em molho. A repulsa pela instituição era um sentimento constante, algo que transmutava diariamente em um ritual fantasioso de escapismo. As vozes que ecoavam quase como um mantra ininterrupto, e a confusão era tamanha que mal discernia se emanavam de dentro de mim ou eram ecos dos outros pacientes.

Numa espécie de reflexo, desviei meu olhar da direção de Beni, que permanecia entregue à tela luminosa do celular, indiferente ao mundo ao seu redor. Havia um lampejo de cumplicidade brilhando em seu sorriso, sugerindo que a pessoa virtual do outro lado do visor possuía um significado profundamente vital. Talvez um familiar ou uma paixão?

Nossos olhos se encontraram, e ele saudou-me com um amigável aceno. Por um instante, hesitei e então, reunindo coragem, decidi romper o muro do silêncio.

— Olá? — disse.

— Oi, Be!

— É interessante como você sempre está absorto no seu dispositivo. — comentei, buscando abrir uma conversa.

O rapaz ergueu os olhos da tela, seu sorriso se alargando um pouco mais.

— Ah! Você também notou isso, não é? — ele sorriu. — Às vezes, é o único jeito de escapar deste lugar.

Fiquei surpreso por sua resposta franca e sorri de volta.

— Concordo, de certa forma. Mas até onde sei, é proibido ter um celular aqui. Como você conseguiu?

Ele me olhou com seus olhos bicolores, inseguro do que deveria dizer.

— Não se incomode em responder. Fica tranquilo. O que você tanto digita? Alguma missão secreta?

Ele sorriu suavemente, como se compartilhássemos um segredo.

— Mais ou menos. É uma janela para o mundo além destas paredes. Fico conversando com alguém especial.

Nesse exato instante, André, uma figura peculiar do hospício, decidiu intervir com sua voz característica.

— Ei, novato! Se precisar de um amigo, é só me chamar! Posso te ensinar muita coisa diferente!

O enfermeiro responsável o fez silenciar. Era comum para André perturbar os recém-chegados, como se fosse uma especialidade pessoal.

Meus sentidos entraram em alerta, pois de algum modo, desejava ser útil. A serenidade de Benício ressaltava dramaticamente em meio ao caos ao nosso redor, e as perguntas sobre sua presença ali se multiplicavam em minha mente.

Ele, no entanto, inabalável, continuou a saborear sua refeição, desviando-se do mundo exterior apenas para as rápidas digitações em seu telefone.

Enquanto me encontrava imerso em meus devaneios, uma indagação crescente ecoava dentro de mim. A quem seriam direcionadas essas enigmáticas mensagens? Que segredos profundos e ocultos repousavam nos gestos serenos daquele indivíduo? Pelo qual o diretor deu permissão somente a ele para usar?

Permiti que meus olhos vagassem pela cena tumultuada à minha volta, captando a agitação frenética dos outros, enquanto uma sensação de inquietação sutilmente se enraizava em meu ser. Era como se o mistério que permeava aqueles escritos cifrados também se insinuasse em minha alma curiosa.

Em meio a suspiros profundos, minhas palavras escaparam em um sussurro cauteloso:

— Independentemente da identidade oculta por trás desse celular, espero que você seja libertado dessas restrições antes que o mesmo destino sombrio que afetou os outros também o atinja.

— Obrigado, Be! — sorriu.

Minha voz suave revelava uma preocupação genuína, um desejo ardente de resgatar aquele desconhecido de um destino traiçoeiro. Meus olhos, por um breve instante, desviaram-se das mensagens e se fixaram na bola de carne desolada à minha frente, envolta por uma fina camada de molho enfraquecido, um lembrete da fragilidade da existência. Enquanto meus dedos brincavam com a borda do prato, meu pensamento retornou ao estranho e enigmático indivíduo, questionando silenciosamente a realidade de suas ações e a rede de mistérios que o envolvia.

Em um mundo onde as palavras eram escudos contra o desconhecido, eu permanecia imerso no caos das minhas próprias vozes, desvendando enigmas internos e externos. Enquanto minha mente explorava o intricado labirinto de possibilidades, o destino daquele ser misterioso permanecia incerto, à mercê das escolhas, mensagens e do meu papel nesse drama complexo. No fim das contas, eu buscava apenas algo novo que me desse motivo para continuar ali.

Total de palavras: 1043

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