6 - Barata tonta

Eu quero sentir como se estivesse perto de algo real, eu quero achar algo que sempre quis, algum lugar ao qual eu pertença.
Somewhere I Belong - Linkin Park

Os três entraram no carro e Rita não parava de falar como foi extremamente prazeroso ver o ego do homem murchar conforme sua advogada falava sem perder a pose ou o raciocínio. Gael e Diana sorriam um para o outro por verem a felicidade quase infantil estampada no rosto da moça de 21 anos. Por estarem perto da residência da mãe do rapaz, decidiram deixar Rita em casa antes de seguirem para o centro de São Paulo.


– Eu mato essa menina!


Ouviram uma voz ainda dentro da casa assim que Gael buzinou e Rita desceu do carro. Uma senhora com seus sessenta anos vestindo um avental úmido e carregando um pano de prato no ombro abriu o portão com sua feição cansada e ao mesmo tempo aliviada de ver a filha bem.


– O que foi que você fez agora, Rita?! – a mulher bradou.

– Mãe, eu não fiz nada, eu juro! – ergueu as mãos em rendição – A culpa foi daquele porco nojento do policial, pode perguntar pra advogada!


Rita apontou para o carro e naquele momento a senhora se deu conta que sequer cumprimentou Gael. Assim que debruçou sobre a janela para beijar o rosto do filho viu a mulher no banco do passageiro dar um aceno acompanhado de um sorriso tímido sem pronunciar uma palavra.


– Gael! Onde você arrumou uma advogada?! – ela continuou debruçada no vidro do motorista – Muito prazer, doutora! Sou a Aparecida, mas pode me chamar de Cida, Cidinha, como preferir!

– O prazer é meu – Diana respondeu com um sorriso – Não precisa me chamar de doutora, eu nem tenho doutorado. Pode me cham...

Vem, doutora! Eu fiz janta agora mesmo, tá quentinha esperando essa aqui voltar do passeio na cadeia – Cida deu um tapa no braço da filha – É minha forma de agradecer por ter tirado minha caçula de lá!

– Mãe, acho que a Diana tá cansada, eu estava dando uma carona pra ela até em casa quando a senhora ligou.

– Deixa disso, menino! Eu faço questão. A senhora aceita jantar com a gente?


Gael a encarou e sussurrou que ela não era obrigada a aceitar. Diana de fato estava cansada e desejando um banho gelado, mas também estava faminta e os olhos recheados de gratidão da mãe de sua cliente a fizeram assentir ao convite. Os dois desceram do carro e seguiram portão adentro por um corredor estreito até a cozinha da casa dos fundos em meio a latidos do vira-lata de Cida. O cheiro de tempero e comida fresca brincaram com o estômago vazio da moça.


– O cheiro está maravilhoso – Diana elogiou ao colocar seu prato e se sentar à mesa.

– Bondade sua, é só comida do dia-a-dia mesmo, arroz, feijão e bife. Se eu soubesse que a senhora viria aqui eu faria algo mais sofisticado – Cida sorriu.

– Pode me chamar só de Diana – retribuiu o sorriso e deu a primeira garfada – Nem se preocupe com comidas sofisticadas porque eu gosto mesmo é disso aqui, que inclusive está maravilhoso.


Cida agradeceu e sentou-se para jantar ao lado dos três. Rita contava empolgada palavra por palavra o que a advogada falou na delegacia e Gael afirmava que não sabia como Diana conseguia ser tão articulada, pois ele esqueceria o que estava falando no meio de seu próprio raciocínio. Só haviam quatro pessoas naquela mesa, mas o cômodo parecia cheio já que com exceção da convidada, todos falavam sem parar.

Diana observava aquela família e não conseguiu evitar a comparação com a sua. Eliane jamais convidaria alguém para jantar sem um planejamento prévio, as refeições sempre aconteciam em meio a poucas palavras e a mesa sempre era posta para impressionar quem quer que fosse. Já ali naquela pequena cozinha uma toalha de mesa desbotada era o único enfeite, as panelas eram gastas e os pratos e copos eram todos diferentes uns dos outros, mas nada disso importava pois ela não se lembrava da última vez que comeu uma comida tão gostosa, com sabor de lar.

Diana estava lavando a louça após muito insistir para que Cida a deixasse ajudar ao menos nisso e Rita fazia companhia para a moça, secando os pratos e perguntando sobre sua carreira. Gael aproveitou para trocar a lâmpada do quintal a pedido da mãe, que o rodeava querendo falar alguma coisa.


– Vai, dona Cida, fala... Tô vendo que tá me rodeando igual barata tonta – Gael riu.

– A moça é bonita né? – ela sorriu.

– Ela é normal – deu de ombros.

– Você tá namorando com ela? – sussurrou e riu em seguida.

– Claro que não! De onde você tirou isso? Tá doida?! – terminou de trocar a lâmpada e a acendeu – A gente se conheceu esses dias, ela é a mulher que me atropelou.

– Nada acontece por acaso...

– Você não viu o tamanho da aliança no dedo dela? Ela é noiva.

– Se até casamentos acabam, imagina um noivado...


Gael não teve tempo de responder a senhora que ria sozinha, pois Diana informou que já havia terminado de lavar a louça e ele se apressou em se despedir da mãe e da irmã para evitar mais constrangimentos. Rita agradeceu mais uma vez a ajuda e prometeu que não se meteria em mais problemas. Cida acompanhou a filha, mas disse ter certeza que era uma promessa falha já que a caçula vivia aprontando. Também pediu inúmeras vezes para que ela voltasse para visitá-las. Em meio a acenos os dois entraram no carro e o rapaz acelerou assim que possível.


– Me desculpa por hoje, se eu soubesse tudo o que ia acontecer, tinha pedido um Uber pra você ao invés de te buscar – a voz de Gael estava tão cansada quanto sua feição.

– Não precisa se desculpar, foi um prazer ajudar – Diana sorriu e pela primeira vez ele a viu relaxar no banco.

– Depois me passa quanto eu tô te devendo por liberar minha irmã.

– O jantar maravilhoso da sua mãe já pagou tudo.

– Diana, não é justo, é o seu trabalho.

– Gael, eu estou falando sério, você não faz ideia de quanto tempo faz que eu não como uma comida tão boa e só isso já valeu o esforço.

– Então vamos fazer assim, se um dia você quiser se tatuar, eu te dou uma tatuagem. Meu trabalho pelo seu.

– Meus pais me deserdariam na hora, eles odeiam tatuagem, falam que é coisa de marginal.


Ela apoiou a cabeça no encosto do banco e olhou para ele, que começou a rir na mesma hora. Só aí se deu conta que o chamou de marginal sem querer. Explicou que essa era a opinião de seus pais e que ela não concordava, mas que eles eram um tanto conservadores e que nada faria com que mudassem de ideia. Gael disse não se importar, pois já estava acostumado com julgamentos.


– Errado é quem julga – ele deu de ombros – Vivem julgando a minha irmã e você viu hoje como ela não dá a mínima.

– Eu não ia perguntar, mas...

– Ela era usuária – ele a interrompeu pois já sabia qual era a pergunta – Ficou internada numa clínica por um ano mais ou menos, saiu tem uns dois meses ou um pouco mais. Um dos motivos que eu tenho dois empregos era pra pagar a clínica, mas aí ela teve alta e eu continuei caso um dia ela tenha uma recaída. Não que eu não confie nela, mas é sempre bom ter um plano B caso isso aconteça. Isso é uma das poucas coisas que eu tenho planejada na vida.

– Hoje o seu medo foi esse... – Diana constatou.

– Sim. Graças a Deus ela só xingou aquele policial, porque eu juro que não sei o que faria se ela tivesse sido pega com algo...

– Ao menos ela tem você, seus pais...

– Não, ela tem a mim, minha mãe e minha irmã mais velha. Meu pai é aquele famoso caso de ir comprar cigarro e nunca mais voltar, e olha que nem fumante ele era – deu um sorriso amargo – E não faz falta nenhuma.


Gael tinha pouco mais de seis anos quando seu pai foi embora. Rita ainda era um bebê, mal havia completado um ano e Isadora, a irmã mais velha, tinha nove. Para Cida foi um alívio quando o homem saiu pela porta uma última vez, pois ele era alcoólatra e a agredia quando chegava bêbado e ela questionava onde o marido estava. "Não é da sua conta" era o que mais ouvia dia após dia, além de ser proibida de trabalhar pois, segundo ele, mulher só servia para limpar casa e lavar fralda. Cida não chorou quando o viu fazer as malas e partir, mas um peso saiu de seu peito. Dali em diante seria ela e seus três filhos e ninguém jamais a diria o que fazer de novo.

Assim como afirmou para Diana, Gael realmente não sentia falta do pai. Apesar da pouca idade, se lembrava das brigas, gritos e agressões que aconteciam em sua casa e mesmo não entendendo direito o que acontecia, via sua mãe chorando constantemente. Isadora dizia que não era nada e mantinha os irmãos mais novos distraídos no quarto com algum brinquedo barulhento para disfarçar as discussões.

Começou a trabalhar assim que pode nos comércios do bairro para ajudar em casa, aos dezesseis comprou sua primeira moto mesmo sem idade para tirar habilitação e passou a trabalhar como motoboy das pizzarias da redondeza. Ainda nessa idade se interessou pela tatuagem e juntou dinheiro para comprar uma máquina. Treinou em pele artificial e pele de porco até fazer sua primeira tatuagem de verdade – um diamante nas costas de Isadora, desenho bem comum para a época. Aos 27 morava sozinho, tinha uma moto que não era a dos seus sonhos mas que o levava para todos os lugares, um emprego que gostava no bar, tatuava em um estúdio movimentado e tinha o seu trabalho finalmente reconhecido.

Rita cresceu com uma boa influência dentro de casa, mas os caminhos que escolheu seguir não foi dos melhores. Tudo começou no último ano do ensino médio enquanto matava aula atrás da quadra. Não lembrava quem foi que apresentou, mas tinha a impressão de que foi um namoradinho de escola. Todos estavam usando, então ela decidiu experimentar também. Todos os dias ela e os amigos perdiam a última aula para se juntarem no mesmo local. Dali algumas semanas as drogas foram ficando mais pesadas e alguns tomaram consciência do que estavam fazendo, mas ela não.

A abstinência bateu quando entrou de férias e ela não tinha mais ninguém para fornecer, então Rita foi atrás da própria droga. Foi quando desapareceu por alguns dias e voltou em um estado deplorável. Cida batia e chorava na mesma proporção quando a viu depois de achar que talvez a filha estivesse morta em alguma vala por aí. Gael e Isadora tentaram conversar, mas a adolescente fingia ouvir e fugia em seguida. A intervenção chegou quando ela pediu ajuda, pois já não se reconhecia mais. Os irmãos se desdobraram, trabalharam em mais de um emprego para pagarem a clínica onde a moça se internou algumas vezes até finalmente receber alta. E por mais que algumas pessoas desconfiassem, Rita estava limpa há pelo menos um ano e tinha orgulho de dizer.

Já Isadora sempre foi a filha tranquila e que nunca deu problemas. Talvez foi a necessidade de crescer muito rápido para ajudar a mãe a cuidar dos irmãos que a amadureceu tão cedo. Não que Cida não a deixasse ser criança, mas ela se sentia na obrigação de manter tudo em ordem quando tudo parecia desmoronar. Sempre confidente dos mais novos, foi a primeira a perceber que havia algo de errado com Rita e a primeira a acreditar no sonho de Gael.

Desde a infância sonhou em ser professora, mas decidiu adiar seus planos ao engravidar aos 23 anos de Alice, vindo a se casar com o namorado naquele mesmo ano. Dois anos depois deu à luz a Ryan, seu caçula. Aos 30 decidiu resgatar seus sonhos e com o salário de vendedora de uma loja de roupas conseguiu pagar e dar início a tão sonhada faculdade de Pedagogia.

Gael estava tão perdido nos próprios pensamentos que ficou em silêncio boa parte do caminho. Diana se repreendia mentalmente por ter tocado no assunto do pai dele pois claramente foi isso que o fez ficar daquela maneira. Tentando encontrar uma maneira de acabar com a mudez que pairou sobre o carro, fez o que jamais faria com um desconhecido: se abrir.


– Vendo você e a Rita hoje me deu um pouco de inveja – ela falou e ele desviou os olhos para ela – Se eu estivesse detida e minha irmã soubesse, iria até mim somente para contar vantagem por nunca ter pisado em uma delegacia.

– Achei que você tivesse uma família perfeita – Gael confessou.

– Muito longe disso. Meus pais são apaixonados pela Fernanda, eu provavelmente sou só... a filha não planejada. Ela é a mais velha, minha mãe planejou não só a gravidez como toda a vida dela, aí cinco anos depois eu cheguei e foi só isso.

– Eu sinto muito por isso – ele falou com sinceridade.

– Tudo bem – Diana esboçou um sorriso – É muito feio eu dizer que não gosto da minha irmã? Se bem que não é que eu não goste, eu a amo porque ela é minha irmã e as convenções me obrigam a amá-la, é só que... ela é perfeita demais, sabe? Tudo o que ela faz é perfeito, o trabalho dela é perfeito, o marido é perfeito, a beleza dela é perfeita...

– Você que tá afirmando tudo isso?

– É o que meus pais dizem a vida toda – deu de ombros – Eu sempre fui a filha que deu errado, que prestou vários vestibulares antes de passar, que precisou do precioso dinheiro deles porque não foi capaz de sair da faculdade com uma clientela pronta, que continua solteira com 30 anos...

– A gente vive num mundo muito paralelo, porque se você fosse minha irmã, seria a filha que minha mãe mais se orgulharia. Mano, você é advogada! Acho que só um terninho seu já paga minha roupa completa e o valor dos seus sapatos são capazes de quitar metade das minhas dívidas. E pra você não dizer que só tô falando de dinheiro, você é muito inteligente! É só ver você defendendo a minha irmã na delegacia hoje, eu duvido que sua irmã seria capaz de falar de forma tão articulada e precisa quanto você. E outra, idade é só um número, eu tenho 27, sou solteiro e pretendo continuar.

– Você deveria ser coach – ela falou com um sorriso.

– Isso nem é trabalho de verdade – fez uma careta – Mas eu tô falando sério, não conheço sua irmã e nem você direito, mas já te acho melhor que ela.


Diana sorriu ao ouvi-lo dizer isso, já que todos sempre preferiram Fernanda. Até mesmo Maurício sempre dizia que essa preferência dos pais pela irmã era coisa de sua cabeça e não existia, pois as duas eram excelentes em tudo que se propunham. Ela e Gael seguiram conversando amenidades até estacionarem em frente ao prédio onde deveriam ter chegado algumas horas antes.


– Então, é isso – Gael desligou o carro – Te conheço há três dias e um dá carona pro outro há três dias, já podemos pedir música no Fantástico.

– Best of You, porque só te atropelei por causa dela – Diana desafivelou o cinto de segurança e se virou para ele – Obrigada pela carona e por inflar meu ego ao me dizer que sou melhor que minha irmã.

– Só disse verdades – arqueou as sobrancelhas como se estivesse dizendo algo óbvio – Obrigado por ajudar a Rita. Agora eu preciso voltar pro trabalho, daqui a pouco é meia-noite e eu vou até às três.

– Bom trabalho – Diana desejou ao sair do carro.

– Bom descanso. Nos vemos por aí.


Ele a aguardou entrar e fechar o portão antes de seguir seu caminho até o bar. Diana subiu até seu apartamento respirando aliviada por estar em casa, e mesmo estando cansada não sentia as rotineiras dores de cabeça causadas pelo coque e nem mesmo o rosto grudento pelo excesso de maquiagem. Tomou um longo e relaxante banho e deitou para finalmente descansar, mas não sem antes se lembrar da noite estranhamente confortável e divertida ao lado de Gael e sua família.

Olá meus amores! Como estão?!

Eu preciso dizer que sou apaixonada pela família do Gael e principalmente da dona Cida, a maior shipper da Diana com o filho kk

Espero que tenham gostado do capítulo, sei que o começo é meio arrastado, mas eu juro que melhora ♥

Vejo vocês em breve!

Beijinhos ♥

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