30 - Certo e errado

Eu vejo a vontade emanando de você. De frente enfrente o medo, o medo tem dois corações.
De Pé - R.Sigma

O trânsito daquela segunda-feira estava mais intenso do que o normal devido a um acidente entre dois carros que acabou fechando uma das faixas da avenida. Diana sempre chegava mais cedo no escritório, mas só conseguiu estacionar na garagem do edifício perto das oito e meia da manhã. Irritada pelo tempo em que passou parada no congestionamento, respirou aliviada ou entrar no elevador.

Ao chegar no décimo andar, foi recepcionada por Márcia com um "bom dia" animado e até mesmo Maurício foi cordial ao cumprimentá-la com um sorriso no rosto. Um sorriso ardiloso demais para seu gosto. Diana estranhou aquele comportamento do ex-noivo e evitou olhá-lo enquanto procurava pela chave de sua sala. Assim que destrancou a porta e a abriu, teve vontade de gritar.

A sala antes bem decorada com móveis caros e elegantemente sem graça estava praticamente vazia. Seu computador estava sobre o piso amadeirado onde antes ficava sua mesa e todos os arquivos que ficavam guardados no armário planejado estavam amontoados em um canto. Nem mesmo as cadeiras estavam ali. Na parede onde um balcão ficava, apenas o vaso de flores artificiais rachado no chão. Diana sentiu os olhos encherem de lágrimas ao ver seu escritório daquela maneira e com uma fúria que não sabia dizer de onde veio, caminhou até o ex-noivo que sorria abertamente e o segurou pelo colarinho da camisa.


– Quer merda é essa que você fez?! – gritou ao puxá-lo.

– Eu te falei que esse escritório é majoritariamente meu – deu de ombros – Você disse que a sua sala ainda era sua, mas não vamos nos esquecer que foi a minha mãe quem fez o projeto e pagou pela mobília.

– Você é doente! – soltou o colarinho e o empurrou contra a parede – Um megalomaníaco doente!

– Eu só quero te provar que você não vai a lugar nenhum sem mim. O que aquele seu marginal pode te dar? Uma mesa de plástico e cadeiras de bar? – ajeitou a camisa antes amassada pelas mãos da ex-noiva.

– Você realmente acha que eu preciso de você? – Diana riu com escárnio – E eu não dependo do que ele pode me dar. Eu não sei se você já percebeu, mas tudo o que eu tenho, eu conquistei sozinha. Nunca dependi nem mesmo de você.


A discussão foi interrompida pelo barulho do telefone. Márcia, que até então estava atônita prestando atenção no bate-boca entre os chefes, correu até o aparelho e o atendeu. Um novo cliente que Diana vinha tentando prospectar há dias e que tinha agendado uma reunião para aquela manhã havia acabado de chegar e a advogada sequer teria um local para recebê-lo. Maurício sorriu ao ver o olhar aturdido da ex-noiva e antes que ela pudesse encontrar qualquer objeto para jogar em sua direção, ele voltou para sua sala devidamente mobiliada.

Diana conseguiu contornar a situação ao inventar que sua sala havia sido dedetizada ainda na sexta-feira, mas que o cheiro de produtos químicos ainda estava muito forte. O possível cliente acreditou e os dois seguiram até a cafeteria do próprio edifício para aquela primeira reunião. A firmeza das palavras da advogada e a forma que ela o deixou falar por todo o tempo em que o homem julgou necessário enquanto tomavam um expresso foi o que o convenceu a aceitar os valores apresentados e fechar o contrato.

O homem se despediu após ela o acompanhar até a saída do edifício e Diana respirou aliviada por conseguir aquele cliente que procurava por um advogado para fazer o inventário de seus pais já falecidos a fim de poder vender os imóveis da família. Assim que voltou ao décimo andar, passou pela recepção vazia sem se atentar a nada, pronta para surtar sozinha em sua sala desmobiliada. Ao abrir a porta, se deparou com Márcia organizando seus arquivos dentro de uma caixa de papelão e seu computador sobre a pequena mesa que até então ficava na copa do escritório.


– Márcia! O que está fazendo?! – Diana não escondeu sua surpresa.

– Ah, dona Diana, a senhora não merece o que o senhor Maurício fez não – largou os arquivos e foi até sua chefe com um sorriso tímido – E eu me lembro bem que foi a senhora que comprou a mesa lá pra copa pra gente ter onde tomar café. Ele não vai poder tirar daqui porque é sua.

– Não posso aceitar, você não vai ter onde almoçar durante a semana.

– Eu me viro – deu de ombros – Sei que a senhora não vai ficar com ela muito tempo, não é tão apresentável para os clientes, mas é só pra não ficar sem trabalhar. E também pra ele não tirar tudo o que a senhora tem aqui dentro.

– Falando em tudo o que eu tenho, você viu o meu vaso de flores que estava no chão quando eu cheguei?

– Está comigo na recepção. Eu vou colar pra senhora – sorriu – Afinal foi um presente do Gael da Silva Oliveira, não é mesmo?

– Você se lembra até do sobrenome dele – Diana retribuiu o sorriso.

– Bom, eu o anuncio para a senhora todos os dias – deu de ombros – Aliás, pelo horário, daqui a pouco ele está aí. Melhor eu me apressar.


Márcia terminou de organizar os arquivos na caixa de papelão e voltou para a recepção. Diana estava grata pelo gesto tão gentil da recepcionista que demonstrou se importar com a chefe mais do que ela imaginava, mas ainda assim estava frustrada e furiosa com a atitude do ex-noivo. Observando aquela sala antes tão organizada, mas que agora possuía apenas uma mesa de cozinha barata e algumas caixas de papelão, trancou a porta e se permitiu chorar lágrimas odiosas e decepcionadas.

O telefonema informando que Gael a aguardava na portaria chegou um pouco depois do meio-dia e Diana precisou lavar o rosto algumas vezes para disfarçar os olhos irritados e nariz vermelho pelo choro. Mesmo assim o rapaz percebeu que algo estava errado no momento em colocou os olhos sobre ela. A mulher jogou-se em seus braços para um abraço necessário assim que se aproximou, como se Gael pudesse ao menos diminuir todo o nervoso que sentia desde aquela manhã.


– Ele não pode fazer isso! – Gael estressou-se tanto quanto a mulher quando ela contou o que o ex-noivo havia feito enquanto almoçavam em uma lanchonete não tão próxima do edifício.

– Você nunca ouviu dizer que quem tem dinheiro pode tudo? – esboçou um sorriso cansado – Ele pode não ter, mas os pais dele sim, e eles fazem tudo pelo filhinho mimado.

– Você acha que eles ajudaram o Maurício a tirar as coisas da sua sala?

– Eu não duvido, eles nunca gostaram muito de mim – encolheu os ombros – Mas acho que isso não importa mais...

– E não tem nada que você possa fazer? – Gael segurou sua mão enquanto tentava pensar em uma solução.

– Sinceramente? Eu não sei. Eu estou exausta, Gael. Exausta do escritório, de ter que conviver com o Maurício diariamente, ter que engolir a hostilidade dele... Agora ainda tenho que lidar com a minha sala praticamente vazia e o sorriso triunfante naquela cara cínica. Acho que não tenho mais saúde mental pra isso...

– Então por que você se obriga dessa forma? Ele tá fazendo da sua vida um inferno quando ele é quem deveria estar na merda depois de tudo o que fez.

– E qual seria a solução? Matar o Maurício e fazer parecer um acidente? A Rita já me ofereceu ajuda caso eu quisesse isso. Ou então abrir um escritório só meu? – riu com aquela possibilidade absurda.

– Eu achei uma ótima ideia! – Gael sorriu – A ideia do escritório, no caso... apesar da primeira opção também ser ótima.

– Não é uma ótima ideia! Isso é entregar a vitória de bandeja pra ele! Mais uma vez ele vai conseguir o que quer e eu não vou ter como bancar um escritório só meu.

– A vitória do Maurício não é ter um escritório só dele, e sim te ver surtar. Isso sim você já tá dando de bandeja. Enquanto ele achava que te tinha nas mãos, estava até enchendo sua sala de flores e pedindo perdão. Aí ele finalmente se deu conta de que você nunca precisou dele e que tá muito melhor agora e começou a tentar te atingir por todos os lados, te encurralando. Lá é um escritório muito bem localizado, então eu entendo se você não quiser sair por conta disso, mas se for só pra não dar o gostinho de vitória pra ele, você já sabe o que eu penso...

– Seria loucura demais recomeçar com quase 31 anos – deu um suspiro cansado e apoiou os cotovelos na mesa, escorando o queixo sobre as mãos.

– Recomeçando ou não, você vai fazer 31 de qualquer forma – ele sorriu e apoiou-se também nos cotovelos para aproximar seu rosto do dela – Mas fique sabendo que não importa a sua escolha, eu estou do seu lado.


Diana sorriu ao ver o tatuador aproximar-se o suficiente para poder depositar um beijo casto em seus lábios. Gael foi capaz de transmitir toda a segurança que ela precisava naquele momento em que havia perdido seu norte. Toda a sua vida foi guiada pelos outros e no momento em que se viu em uma situação tão tensa quanto aquela, saber que alguém estaria ao seu lado independentemente de suas escolhas a faziam sentir ao menos um pouco de paz.


Por mais que parecesse uma loucura, Diana passou a restante daquela segunda-feira ponderando a ideia de vender sua parte do escritório para Maurício. Sentada à mesa improvisada em sua sala, criou uma planilha no computador com todos os prós e contras daquela decisão. Recomeçar era a única palavra que se repetia em ambas as colunas. Tudo vinha mudando em sua vida nos últimos meses e definitivamente um recomeço seria não só bem-vindo, mas também necessário. Mas talvez recomeçar naquela altura da vida, com sua carreira finalmente estabilizada e com uma clientela fixa fosse loucura demais.

Foi em meio a dúvidas que Diana levou as duas semanas seguintes naquele escritório praticamente desmobiliado, debruçada em sua mesa de cozinha improvisada como escrivaninha. O clima hostil entre os advogados estava a deixando cada vez mais cabisbaixa e desmotivada, não aguentava mais encontrar seus clientes na cafeteria do edifício e nem mesmo suportava todos os olhares e sorrisos debochados de Maurício a cada desculpa que dava para não levar ninguém até sua sala.

Seus dias só tinham um pouco de alívio quando encontrava com Gael durante os almoços diários e nos fins de semana que passavam juntos ou quando visitava Rita e dona Cida ao lado do rapaz ou até mesmo sozinha. E era isso que Diana fazia naquele domingo levemente ensolarado, sentada ao lado do tatuador no sofá da senhora que cochilava enquanto fingia assistir ao filme escolhido pela filha mais nova.


– O filme acabou? – a senhora acordou com o barulho do próprio ronco, fazendo Diana esboçar um sorriso.

– Faz uma meia-hora, a gente tá aqui conversando enquanto você ronca feito uma britadeira – Rita riu e foi atingida por uma almofada lançada pela mãe.

– Isso é jeito de falar com a sua mãe?! Nós temos visita! – dona Cida lançou o olhar de soslaio para Diana.

– Mãe, a Di não é mais visita aqui, ela namora o cabeção aí! – Rita abriu um sorriso largo.

– Ele não é meu namorado, Rita – Diana esboçou um sorriso, mas continuou de mãos dadas com o rapaz.

– Por que você não quer – Rita deu de ombros – Aposto que ele tá doidinho pra oficializar o negócio, já tá de quatro por você, só falta latir – abriu um riso frouxo ao ver o dedo do meio do irmão se levantar em sua direção.

Gael! – dona Cida bradou – Se não respeita sua irmã e sua mãe, respeita a sua namorada!


Foi naquele momento em que Diana não conseguiu conter o sorriso ao ver a senhora explodir em uma risada nada comedida ao lado da filha mais nova. Ela e Gael não falavam sobre namoro ou sobre oficializar nada, por mais que ambos não tivessem saído com outras pessoas desde que começaram a se envolver. A mulher já havia pensado naquele assunto, mas o que vinha sentindo pelo tatuador era algo totalmente novo e desconhecido e seu lado racional tentava a todo custo impedi-la de tornar tudo ainda mais intenso como em um relacionamento sério. Já Gael pensou por diversas vezes em pedi-la em namoro, mas tinha a certeza que a resposta seria negativa já que ela havia acabado de ficar solteira e provavelmente não queria se amarrar a ninguém pelos próximos meses ou anos.


– O que vocês tanto riem? – Isadora chegou na casa da mãe junto de seus filhos após um dia inteiro de passeio em um parque.

– Sua mãe e sua irmã que só falam merda – Gael sorriu e cumprimentou os sobrinhos que pularam em seu colo, disputando o espaço nos braços do tio.

– Aposto que de vocês dois – Isadora sorriu para Diana, que confirmou – Sabia. Já falei pra mãe que se dependesse da boa vontade dela, vocês estariam casados e com uma penca de filhos.

– Sonhar não custa nada – dona Cida deu de ombros – Agora se me dão licença, eu vou fazer um café da tarde pra gente tomar.


A senhora se levantou e foi em direção à cozinha enquanto Diana pensava no que Isadora havia acabado de falar. Se deu conta de que tudo aquilo que almejava alcançar – o casamento com Maurício, os filhos que o ex-noivo rejeitava com veemência, uma carreira de sucesso – era o desejo de seus pais. Talvez um pouco de si ambicionava tudo aquilo apenas para poder dizer que era tão boa quanto a irmã, mas o quanto aspirava qualquer uma daquelas coisas de fato? Seus devaneios foram interrompidos pela reclamação repentina de Rita acerca da programação da televisão.


– Outro comercial! Eu não aguento mais! A televisão de domingo é horrível, por isso eu não fico em casa! Cabeção, me ajuda a pegar aquela caixa de filmes em cima do guarda-roupas?


Gael assentiu e tirou os sobrinhos de seu colo, seguindo a irmã até o quarto. Apenas Diana e Isadora ficaram na sala junto com as crianças e a advogada aproveitou aqueles raros momentos em que ficava sozinha com a irmã mais velha do rapaz para ter uma conversa um tanto quanto mais séria do que estava acostumada naquela casa sempre tão bem-humorada.


– Isadora... – suspirou – Você se arrepende? – ao notar o olhar confuso da mulher, apontou o queixo em direção aos pequenos que corriam entre os cômodos.

– Se eu me arrependo dos meus filhos? – ela questionou e Diana assentiu – Jamais. Não foi como eu gostaria que fosse, mas aconteceu e eu não consigo imaginar a minha vida sem eles.

– Desculpe, eu não perguntei por mal, é que eu te vejo tão feliz e...

– Eu sei que não perguntou por mal – Isadora a interrompeu com um sorriso – Mas eu entendo a sua pergunta. A gente tem a mesma idade e uma vida tão diferente uma da outra, né? Eu criei uma família, você criou uma carreira.

– Será que eu estou errada por isso? Porque às vezes eu sinto que já deveria ter tudo, família, carreira, sucesso... Como se já esperassem isso de mim e eu esteja apenas frustrando as expectativas dos outros – Diana foi sincera e sentiu um peso sair de suas costas ao externar seus receios.

– Diana, é a vida! Não tem certo e errado! Eu tive uma família aos 23 e aos trinta estou correndo atrás da minha carreira como professora. Você tem trinta e pode escolher se quer continuar focando na carreira, ou se quer uma família... ou até mesmo se quer os dois ou então nenhum! Já o sucesso é relativo. Na minha visão e na minha realidade o sucesso é ter os meus filhos formados e pessoas de caráter. Sua visão de sucesso pode ser outra, e tudo bem.

– Bem que o Gael sempre me disse que você é ótima com conselhos – Diana sorriu.

– Eu tento dar o meu melhor – deu de ombros ao retribuir o sorriso – Eu só te peço pra não machucar o meu irmão, independentemente de qual for a sua escolha. Quando ele gosta de alguém, ele se entrega sem se importar com os riscos, mas eu me importo por ele.

– Eu não pretendo me afastar do Gael, caso esse seja o seu medo. Eu só... – suspirou – Eu tenho medo de recomeçar minha vida inteira a essa altura do campeonato e me arrepender lá na frente caso não consiga êxito em nada.

– Diana, para de falar como se você fosse uma velha à beira da morte, porque se você for, eu também sou! A gente tem trinta anos, os trinta são os novos vinte! Sua vida tá começando agora, então aproveita! Eu não sei o que você tanto teme, mas se você não der as caras e se jogar, você nunca vai saber como teria sido e vai se remoer todos os dias por isso.

– Eu... eu juro que não sei como pude demorar tanto tempo pra conhecer a sua família. Eu deveria ter atropelado o Gael anos atrás! – Diana abriu um sorriso largo e sincero – Muito obrigada, você não faz ideia do quanto eu precisava ouvir isso hoje.


Isadora abriu um sorriso cúmplice para a mulher que sentia o coração mais leve. Gael logo retornou junto de Rita e deixou a caixa de filmes de lado para poder roubar um selinho de Diana, que estava distraída com seus planos para aquela noite. A irmã mais velha do rapaz de fato não fazia ideia de como aquela conversa foi capaz de dar para a advogada o empurrão que ela precisava para decidir o rumo de sua vida, e ela não poderia estar mais grata por, pela primeira vez, não temer as consequências.

Postando dois capítulos num dia porque eu sou irresponsável e tenho amigas que apoiam a minha irresponsabilidade (cof cof Luelen)

Eu amo a Isadora, acho tão sensata! Mesmo aparecendo pouco, quando aparece, sempre tem algo bom a dizer.
Quanto ao Maurício, não preciso nem dizer né?! Escrever essa cena dele me deu uma raiva! Mas pelo menos a Diana tem a Márcia dentro daquele escritório ♥

Agora sim, nos vemos só semana que vem, pelo amor de Deus
Beijinhos ♥

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