28 - Passarinho
Eu sou um pássaro, me trancam na gaiola, mas um dia eu consigo existir.
Clarisse - Legião Urbana
A companhia de Diana naquela noite de sábado estava tão agradável que Gael não a deixou ir embora. Depois do banho longo e acompanhado, a convidou para dormir ali e até mesmo terminou de fazer o jantar que havia deixado de lado quando ela chegou. Ela não negou, muito pelo contrário, vestiu um agasalho de moletom do rapaz e se aconchegou debaixo das cobertas ao lado dele. Até então não haviam conversado sobre nada, apenas aproveitavam o silêncio agradável na presença um do outro após satisfazerem suas vontades.
– Eu senti falta de almoçar com você essa semana – Diana murmurou deitada em seu abraço.
– Eu também. A cada coisinha que acontecia eu pensava que não iria te ver pra poder te contar... coisas bobas, clientes engraçados, besteiras do dia-a-dia.
– Era pra você ter uma história de cliente engraçada hoje – riu – Aposto que eu seria uma cliente difícil.
– Você realmente pretendia fazer uma tatuagem hoje? – ele franziu o cenho.
– Claro que sim! Você achou que eu fui até lá só pra ver o tatuador bonitão?!
– Isso acontece mais do que você imagina – sorriu – O que aconteceu com "meus pais vão me deserdar"?
– Eu já não me importo mais com o que eles vão dizer... – deu um suspiro profundo – Eu cortei relações com a minha família.
– Eu sinto muito – a abraçou mais forte na cama – Quando foi isso?
– No último domingo. Eles receberam as flores, estavam passando pano pra minha irmã. Meu pai exigiu que eu voltasse com o Maurício, a minha mãe me deu um tapa na cara por defender o Fábio, a Fernanda surtou e me agrediu... Eu não quero mais essas pessoas na minha vida. Eu me desdobrei pra agradar essa família e é isso que eu recebo em troca. Eu sou muito ruim por abrir mão deles?
– Eu não acredito! – Gael ficou verdadeiramente surpreso – Vai me desculpar, mas que bando de desgraçados! Claro que você não é ruim, você é humana! Ninguém aceitaria tudo isso calada e você aceitou até demais.
– Mas agora eu sou livre – sorriu – E eu não tenho mais medo deles.
– Agora você é tão livre quanto um passarinho que fugiu da gaiola – ele abraçou sua cintura, a encaixando contra si.
– É isso! – ela vibrou ao se aninhar nele – Você acaba de me dar uma ideia!
A vontade de Diana era levantar da cama e ir na mesma hora até o estúdio para finalmente fazer sua primeira tatuagem, mas o tatuador agarrado a sua cintura não pretendia sair da cama tão cedo. Aproveitando o calor do corpo aninhado ao seu naquela noite gelada, ela adormeceu.
A cama de Gael não era tão confortável ou espaçosa quanto a sua, mas sem dúvidas Diana estava mais confortável ali do que jamais esteve em seu colchão constantemente frio. O domingo amanheceu preguiçoso para os dois que continuavam abraçados sem coragem para levantar. Em meio a cochilos eventuais enquanto rolavam de um lado para o outro com braços e pernas entrelaçados, ele a surpreendeu com um selinho demorado.
– Eu ainda não escovei os dentes – ela reclamou em um murmúrio ainda de olhos fechados.
– Eu não ligo – ele beijou o canto de sua boca.
– Eu estou horrível, não sei nem como você ainda quer me beijar, olha pra mim, toda descabelada – ela abriu lentamente os olhos e passou a mão pelos cabelos embaraçados.
– Pra mim você tá ainda mais bonita assim – beijou seu pescoço e deitou sobre seu corpo – Até porque não dá pra saber qual dos dois tá mais descabelado.
Gael apoiou-se nos cotovelos e deixou seus cabelos caírem sobre ela, que enganchou os dedos nos fios embaraçados e o aproximou para um beijo acompanhado de movimentos lentos sob os cobertores. Diana não entendia como podia se encaixar tão bem com aquele rapaz em tão pouco tempo, pois em sete anos com Maurício jamais foi capaz de sentir um terço do que o tatuador a provocou em um dia. Eles se atraíam feito imãs e já não eram mais capazes de lutar contra aquele magnetismo, então decidiram se entregar.
Antes que pudessem passar mais um dia inteiro sob as cobertas, Gael se levantou e propôs de irem até o estúdio após Diana correr os dedos pelas tatuagens de seus braços e tórax, contornando cada um dos desenhos espalhados por sua pele. Ela estava certa do que queria, então topou na mesma hora, dando tempo apenas para tomarem um banho rápido antes de seguirem até seu apartamento para deixar seu carro e seguirem o caminho de moto.
Por se tratar de um domingo o estúdio não estava aberto para os clientes, então apenas Gael e Diana riam e conversavam na pequena sala enquanto ele fazia o esboço do desenho pedido pela mulher sentada na maca que não escondia sua ansiedade, balançando as pernas sem parar. O tatuador concentrado finalizava alguns traços quando ela abraçou seu pescoço para ver a arte quase pronta.
– Vai ficar linda, você entendeu exatamente o que eu queria – ela beijou seu pescoço.
– Se você continuar me provocando assim, eu não vou conseguir fazer nenhuma tatuagem hoje – ele sentiu a nuca se arrepiar.
– Desculpa, vou me comportar.
Diana beijou o pescoço do rapaz mais uma vez apenas para provocá-lo, o fazendo largar seus materiais e puxá-la em seu colo para um beijo demorado e apaixonado. Por mais que os lábios de Gael fossem deliciosos e que conseguiria passar horas ali sem querer parar, naquele momento ela desejava ainda mais a tatuagem. Se levantou e pediu para ele se concentrar, pois não o atrapalharia mais.
Desenho aprovado, balcão preparado, batoques prontos, máquina montada e voltagem da fonte regulada. Diana observou Gael preparar todo o material enquanto aguardava inquieta na maca. Tirou a blusa para ele poder posicionar os decalques, um no ombro direito e o outro na clavícula esquerda. Um terceiro numa ideia de última hora, uma palavra abaixo do seio esquerdo, próximo à costela.
Gael pisou no pedal e o barulho característico de um estúdio de tatuagem tomou o ambiente. Diana estava tensa, mas sorriu ao receber um beijo rápido antes do rapaz colocar a máscara e se concentrar. O primeiro traço foi feito e ela percebeu que a sensação da agulha na pele não era tão ruim assim, apenas um arranhão que mantinha uma ardência totalmente suportável. O tatuador a questionou diversas vezes se estava sentindo dor e em todas ela negou, reclamando apenas quando ele precisava passar o papel sobre a pele irritada.
A sessão não foi tão longa, pouco mais de uma hora e meia se passou e Gael terminou de limpar o último resquício de tinta. Uma fina camada de pomada foi aplicada e ela se levantou para olhar no espelho. Algumas lágrimas se acumularam em seus olhos ao ver o desenho de uma gaiola redonda e vazia com as finas grades arrebentadas em seu ombro direito, carregando uma explosão de aquarelas delicadamente coloridas e espalhadas até a clavícula esquerda, onde a silhueta de um pássaro voava livre. Abaixo do seio esquerdo, a palavra "Liberdade" escrita com a caligrafia cursiva e fina de Diana.
Sem conseguir segurar as lágrimas que dessa vez eram de felicidade e alívio, ela chorou em frente ao espelho ao admirar sua liberdade que agora estampava a pele. Foram trinta anos presa em uma gaiola pequena demais que a impedia de abrir as asas até finalmente conseguir arrebentar as grades e se libertar. Gael a observava com um sorriso orgulhoso e a abraçou pelas costas assim que viu uma lágrima escorrer pelo reflexo. Ele já havia visto muitos clientes chorarem de dor, medo, tristeza e até mesmo felicidade, mas nunca presenciou lágrimas tão aliviadas e livres quanto aquelas.
– Eu espero que sejam lágrimas felizes – ele apoiou o queixo em seu ombro enquanto admirava o reflexo junto dela.
– Você deve estar me achando ridícula, chorando desse jeito – sorriu sem desviar os olhos das tatuagens.
– Nem um pouco. A cada segundo eu te acho mais incrível.
Gael a abraçou mais forte e beijou seu ombro. Diana virou de frente para ele e retribuiu o abraço o mais forte que pôde. Seu peito estava repleto de gratidão e muito do que sentia naquele momento era graças ao rapaz que a ajudou a abrir os olhos e a tirou daquele mundo monocromático em que vivia.
– Essa tatuagem não poderia ter sido feita por outra pessoa a não ser você. Você foi essencial nesse meu processo e eu fico imensamente feliz por ter te conhecido.
– Imensamente feliz por ter me atropelado naquela faixa de pedestre que você invadiu – Gael riu.
– Você não vai esquecer isso?! – ela sorriu e ele negou – Vamos mudar de assunto, quanto eu te devo por elas?
– Eu sei de um ótimo pagamento... – deu um selinho em seu sorriso.
– No seu trabalho não! – Diana arregalou os olhos.
– Nossa Diana, como você pensa mal de mim! – ele riu – Almoça comigo amanhã, já é o pagamento. Vamos voltar naquela churrascaria e terminar o nosso almoço dessa vez.
– Eu já estava contando que iria almoçar com você amanhã! – franziu o cenho – Pode pensar em outro pagamento.
– Eu já sei...
Gael cochichou algo indecente em seu ouvido que a fez corar e assentir. Depois de ter suas tatuagens cobertas pelo plástico, Diana vestiu sua blusa e eles foram para o apartamento dela. Passaram o restante da tarde juntos entre os cômodos, mas logo o rapaz precisou se despedir para trabalhar, já que o tombo da noite anterior não havia sido grande coisa. Eles se despediram na portaria e ela ficou ali até ver a moto virar a esquina. Subiu com um sorriso bobo no rosto, custando a acreditar como seu fim de semana havia sido tão bom.
O bar não estava tão cheio quanto uma sexta-feira, mas estava movimentado o suficiente para Gael mal chegar e já precisar vestir seu avental para atender o balcão e servir algumas cervejas. Assim que atendeu a todos os pedidos, sentou-se e começou a ver as fotos da tatuagem de Diana, escolhendo qual delas postaria em sua página profissional. Bento terminou de fazer os hambúrgueres que saíram para delivery e cumprimentou o amigo distraído.
– Que sorriso besta é esse, viu um passarinho verde? – o homem sentou ao lado de Gael.
– Tatuei o passarinho, só que preto – sorriu e virou a foto para ele.
– Bonito o trampo. Trabalhou no estúdio hoje mesmo depois do tombo?!
– Não, esse foi um trampo por fora – bloqueou a tela e se levantou para evitar mais perguntas, pois Diana era reservada demais e ele a respeitaria.
– Ontem a Diana veio aqui te procurar, me obrigou a passar seu endereço, tá tudo bem?
– Tudo ótimo – sorriu.
Bento estava estranhando aquele Gael monossilábico e de poucos detalhes, pois normalmente ele diria tudo o que conversaram e até mesmo falaria sobre como a advogada era elegante e todas as eteceteras que ele já estava cansado de ouvir. Novos clientes chegaram e o garçom voltou a atender o balcão, deixando aquela conversa de lado. O dono do bar foi chamado em uma mesa e também se afastou dali, ficando ocupado por um bom tempo.
– Ei Gael – Bento o chamou enquanto o rapaz fazia uma caipirinha – Aquela moça ali da mesa quatro pediu pra te entregar o número dela.
– Ah, beleza, coloca em qualquer lugar aí – Gael sequer olhou para a mulher que o amigo apontou.
– Qualquer lugar? Porra eu sei que você nunca leva ninguém pra casa, mas uns beijos não fazem mal a ninguém.
– Ah... – deu de ombros e torceu os lábios – Eu tô de boa.
– Não acredito! Você tá na seca há não sei quanto tempo e tá dispensando ela?!
– Tá, dá o número aqui...
Gael aceitou o guardanapo e pegou o celular para salvar o número, mas amassou o papel e o jogou no lixo assim que Bento virou as costas. Sabia que o amigo queria apenas ajudar, mas só havia uma mulher que o interessava naquele momento e eles já haviam passado o fim de semana juntos o suficiente para ele já estar sentindo sua falta.
***
Depois de um fim de semana maravilhoso, a primeira pessoa que Diana teve o desprazer de encontrar foi Maurício. Os dois chegaram juntos no escritório e ele fez questão de correr até o elevador quando as portas já estavam se fechando, o fazendo esperá-lo. Tentou puxar assunto durante os dez andares, mas a advogada evitou respondê-lo o quanto pôde. Ela cumprimentou Márcia e se trancou em sua sala, evitando o falatório do ex-noivo.
As horas naquela manhã pareciam não andar, Diana tentava focar sua atenção no trabalho e nos protocolos de petições, mas quando menos esperava estava encarando o relógio mais uma vez. Já estava no escritório há mais de duas horas, mas o horário de almoço ainda parecia distante. Queria ver Gael o quanto antes e se perguntava se em algum momento em seu relacionamento com o ex-noivo se sentiu daquela mesma maneira, mas sabia que não. Revendo todo o seu relacionamento com Maurício, finalmente se deu conta de que apenas o aceitou em sua vida para deixar os colegas de faculdade e o rapaz satisfeitos, mas nunca esteve plenamente contente.
Seus devaneios foram interrompidos pelo telefone, onde Márcia avisava que o cliente das onze e meia já havia chegado para o atendimento. Diana se obrigou a esvaziar sua mente atribulada com sua própria vida e atender o homem que processava seu antigo empregador por danos morais. A reunião durou pouco mais de meia hora, a fazendo se atrasar para o almoço – algo que ela não costumava se importar, até aquele dia.
O homem se despediu ainda na sala, agradecendo toda a atenção da advogada. Assim que Diana abriu a porta para acompanhá-lo até o elevador, viu Gael sentado em uma das cadeiras da recepção a aguardando com os capacetes em mãos enquanto Márcia o encarava admirada. Ele se levantou assim que ouviu sua voz, abrindo um sorriso que foi retribuído disfarçadamente enquanto ela acenava para o cliente.
– Não esperava te ver aqui em cima – ela sorriu para Gael assim que o cliente foi embora.
– Espero que não tenha problema – ele retribuiu o sorriso.
– Problema algum.
Márcia arregalou os olhos surpresos e entusiasmados quando viu sua chefe segurar o rosto do rapaz e depositar um selinho em seus lábios. Gael estava tão surpreso quanto a recepcionista, pois jamais pensou que Diana o beijaria em seu ambiente de trabalho. Maurício abriu a porta de sua sala no exato momento em que a ex-noiva tocou os lábios do motoqueiro tatuado que esteve naquela mesma recepção há pouco mais de uma semana e fechou os punhos com força, tamanha raiva que sentia naquele momento.
– Será que dá pra você explicar que merda é essa, Diana?! – Maurício aumentou o tom de voz, fazendo os três perceberem sua presença.
– Eu não te devo explicações – Diana falou com a maior serenidade que conseguiu – Se me dá licença, vou buscar a minha bolsa.
Diana manteve um sorriso frio enquanto caminhou elegantemente até sua sala para desligar o seu computador e buscar a bolsa. Maurício a seguiu em passos duros, reclamando palavras que ela sequer se deu ao trabalho de prestar atenção. Gael fez menção de segui-los, mas Márcia o impediu pois sabia que dentro daquele escritório todas as discussões eram vencidas pela advogada.
– Você falou de mim, mas não passa de uma traidora também! – Maurício já estava ficando vermelho de raiva.
– A forma como você acredita no que diz convenceria a qualquer um, menos a mim. Agora saia – ela apontou para a porta.
– Sério, Diana?! Me trocou por um bandidinho qualquer?! Eu não aceito! – ele deu um soco na parede onde apenas machucou sua mão.
– Bandidinho?! Deixa eu te explicar uma coisa, Maurício. Esse bandidinho tem dois empregos, teve que correr atrás da própria vida porque não teve pai e mãe pra dar tudo de mão beijada não, não ganhou apartamento, carro ou escritório dos pais, não foi um mimadinho egoísta que pensa só no próprio umbigo. Ele é muito, mas muito melhor do que você jamais será.
– Então você me trocou por ele para viver uma vida meia-boca na periferia? Você é patética.
– Eu não te troquei por ele, Maurício. Eu te troquei por mim. Eu sozinha já sou muito maior do que jamais fui com você. E se for pra ser feliz na periferia, eu tenho certeza que serei muito mais feliz do que fui com você na Zona Sul. Agora sai da minha sala porque eu quero ir almoçar.
– Você ainda vai se arrepender de tudo o que está dizendo.
– Isso é uma ameaça? – arqueou uma sobrancelha.
– Eu não seria idiota de te ameaçar. Mas nós veremos até onde você consegue ir sem mim.
– Sai daqui.
Diana apontou a porta e Maurício saiu contra a vontade. Ela respirou fundo e pegou a chave para trancar o cômodo antes de sair. Sabia que o ex-noivo não seria capaz de cometer nenhum crime ou algo ilegal, apesar de todos os defeitos já conhecidos do homem, o medo que ele tinha de acabar na cadeia era maior do que tudo. Gael a esperava ansioso e soltou o ar que vinha segurando ao vê-la sorrindo para ele.
Os dois seguiram até a churrascaria e puderam terminar o almoço que antes fora interrompido por Eliane, Armando e o medo de Diana. Dessa vez aquela mesa era recheada de carinhos sutis, sorrisos e conversas disfarçadamente apaixonadas e ela não deixaria qualquer pirraça do ex-noivo acabar com a felicidade que vinha tomando seu peito a cada segundo ao lado de Gael.
Olá meus amores, como estão?!
Estou surgindo aleatoriamente às 01:46 da manhã simplesmente porque eu consegui escrever um capítulo depois de MESES de bloqueio (e é por isso que eu sempre mantenho um estoque).
Diana e Gael sendo casalzinho é tudo pra mim, já esse ataquezinho do Maurício me dá verdadeiro nojo, como eu odeio esse homem, meu Deussssss
E quando escrevi a Diana emocionada com a tatuagem, se sentindo verdadeiramente livre, eu chorei.
Enfim, o que acharam do capítulo?
Deixem a estrelinha e comentários, eles deixam a autora que vos fala muuuuito feliz!
Até breve!
Beijinhos ♥
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