Enquanto a Neve Cai
Parte 1
⚠️(alusão a estrupo)
Anastasia encarava o teto, sentindo as lágrimas descerem por seu rosto e a palha do colchão pinicar sua pele. Ela voltou o rosto para Benjamin, encarando-o por alguns instantes, vendo sua respiração pesada e ouvindo os murmúrios do mesmo antes de girar seu corpo, sentindo-o doer e levantar-se.
Benjamin murmurou algo em seu sono, girando o corpo e fazendo-a ficar estática por um momento, o coração batendo forte em seu peito enquanto seu estômago dava voltas. Os olhos dele se mantiveram fechados e sua respiração lenta e pesada, fazendo assim Anastasia soltar o ar lentamente. Com cautela, ela se aproximou da veste improvisada, costurada de forma simples em tecido de lona grossa e de cor marrom, puxando-a para si.
Silenciosa, ela pegou as botas de solas gastas em um canto da carroça antes de olhar ao redor, puxando para si o casaco marrom de Benjamin, saindo com cuidado, sempre mantendo os olhos atentos sobre o marido. Seu corpo estava pesado e ela sentia aquele queimar doloroso entre as pernas à medida que caminhava pelas carroças do pequeno comboio, seguindo em direção à floresta.
Ela escorregou pela encosta, descendo em direção a estrada e parando por um momento, próxima à velha árvore de tronco oco, pegando ali a sacola com algumas moedas, um cantil e um pedaço de pão seco. Anastasia olhou ao redor, mantendo os ouvidos atentos a qualquer ruído antes de começar a se vestir. A veste lhe cobria os seios e ia até quase seus pés, deixando-a de braços e ombros descobertos. O vento gélido fez sua pele se arrepiar e rapidamente ela passou o casaco de Benjamin ao redor de seus ombros, sentindo seu estômago embrulhar ao sentir o cheiro dele impregnado à peça e também à sua pele.
— Não tenho tempo para isso... — ela passou os braços ao redor da barriga, os olhos queimando e a garganta se fechando com um nó. Anastasia mordeu o lábio inferior, levantando seus olhos para a estrada alguns metros à sua frente, calçando as botas e seguindo por entre as árvores, seus pés afundando na neve até que ela estivesse na estrada.
O caminho de terra batida e quase sem neve a levaria até um pequeno vilarejo onde ela poderia comprar comida e seguir até o porto mais próximo, rezando para que a aliança de ouro e a velha tesoura de prata lhe pagassem uma viagem até Boston.
— O que está acontecendo? — ela olhou alarmada ao redor, após caminhar por alguns minutos, ouvindo o rugir estrondoso e se encolhendo. A nuvem de neve que se formou ao seu redor a fez correr alguns passos, mantendo os olhos às suas costas e vendo a neve descer de onde ela estivera.
Anastasia parou ofegante, encarando a pequena montanha de neve que bloqueava seu caminho de volta. Ela se aproximou, voltando seus olhos na direção a qual o comboio deveria estar e vendo apenas a neve branca cobrindo tudo, chegando quase à altura das árvores. Ela mordeu o lábio, sentindo as lágrimas descerem por sua bochecha, queimando a pele antes que ela caísse sobre os joelhos e uma risada alta e recheada da mais genuína felicidade escapasse por seus lábios.
— Ele se foi... — Sua mão pousou sobre o monte de neve à sua frente enquanto outra risada se fazia ouvir. — Ele se foi e eu estou livre...
❄️
Ethan seguia pelas ruas de Boston, o rosto de expressão séria e o caminhar de porte orgulhoso, assim como as roupas caras, não deixavam dúvidas quanto à herança que o jovem carregava. Fosse a herança em sua pele vermelha, nas maçãs do rosto marcadas ou nos lábios cheios, ou no leve sotaque britânico em sua voz grave e no estilo das vestimentas.
— Senhor Klein. — Rebecca Cole sorriu ao receber seu mais estimado cliente em seu atelier de costura, guiando-o até o escritório. — Ao que devo o prazer de sua visita?
— Apenas vim buscar minhas encomendas, senhorita Cole. — Ela sorriu charmosa, acenando graciosamente com a mão para uma de suas costureiras. Logo a jovem estava ao seu lado, com vários embrulhos de papel pardo, sorrindo graciosa. — Agradeço sua agilidade. Eu tenho mais alguns assuntos a resolver na cidade e preciso partir ainda hoje.
— Sempre fica tão pouco conosco, senhor Klein. Sempre tão sério e silencioso. — Rebecca se levantou, acompanhando Ethan por entre as mesas dispostas como um corredor em direção à saída. — Deixe que pelo menos uma vez que eu o convide para um chá ou um café, se for de sua preferência.
Rebecca exibiu um sorriso charmoso, apontando despretensiosamente de volta para seu escritório. Ethan se limitou a balançar a cabeça, negando a oferta com um aceno antes de dar mais um passo em direção à saída.
— Agradeço sua generosa oferta, senhorita Cole. Mas como já lhe disse, infelizmente tenho outros assuntos a resolver e preciso retornar para casa ainda essa noite. — Ethan se virou, ajeitando os pacotes em seus braços e saindo pela porta entreaberta do atelier. — Obrigado mais uma vez. Will passará aqui em algumas semanas e pegará o restante das encomendas, deixando o pagamento.
Ethan saiu, não se permitindo ouvir o agradecimento e possivelmente mais alguma fala bajuladora de Rebecca. A ruiva ainda manteve seus olhos sobre ele, à medida que ele se afastava, deixando um suspiro escapar.
Ethan Klein era o pretendente dos sonhos de muitas mulheres. Um homem de posses, de boa educação e bonito, apesar de seus traços nativos que por muitas vezes deixavam as mulheres receosas. Por que, para elas, apesar de sua boa educação e seu porte orgulhoso, Ethan ainda era um mestiço selvagem, filho de uma nativa e um britânico. E isso sempre falaria mais alto, quase tão alto quanto seu dinheiro.
🌼
— Sempre tão mal-humorado, senhor Klein. — O sorridente capitão se aproximou de Ethan, ignorando seu olhar irritado. O velho homem sabia lidar com os homens da família Klein e seu terrível temperamento, sabia quando suas brincadeiras passavam dos limites. — Uma bela manhã de inverno não acha? Estou ansioso pelo calor do verão. Não aguento mais navegar por essas águas até a minha bunda congelar.
Ethan se permitiu sorrir pelo comentário do homem, mantendo os olhos fixos ao ancoradouro que se aproximava. O penhasco com vista para o local estava coberto pela neve branca, a paisagem permeada pelas pequenas ranhuras acinzentadas das rochas. Ele fechou os olhos por um momento, sorrindo. Estava finalmente em casa.
— Mestiço de merda. — Ethan olhou de soslaio para a mulher que praticamente sussurrara aquelas palavras, percebendo o desconforto do homem ao seu lado. — Se achando igual a mim... até mesmo superior.
A mulher cuspiu no chão ao passar por ele, fazendo-o suspirar. Ele apenas exerceu seu direito, ficando com a cabine reservada para si. Ele não tinha culpa dos achismos dela ao embarcar, pensando que ele fosse um marujo ali para servi-la e que tivesse esses pensamentos arrancados de si por um capitão de modos grosseiros.
— Sinto muito. — O velho capitão se afastou em direção a ponte, gritando ordens para que se começasse a descarregar o navio.
Por um momento ele pensou se Prudence não estaria certa, se ele não deveria começar a repensar suas atitudes. Mas foi deixando que a ideia se afastasse à medida que ele se aproximava dos baús, abrindo-os e conferindo se tudo estava em ordem.
— Leve-os para a mansão Klein. Estarei à espera. — Ele encarou os dois homens, que concordaram com um aceno, carregando os baús para uma carroça.
A mulher o encarou por um momento, como se o analisasse antes de sorrir envergonhada, se aproximando um passo a mais do moreno, que rapidamente se afastou. Não estava com humor para ouvir desculpas. Ethan suspirou, seguindo para o estábulo não muito distante.
— Ainda me pergunto como você domou essa monstruosidade. — O moreno sorriu ao ouvir a voz do velho conhecido. David se aproximou, mantendo distância de Tormenta, o belo mustangue de pelo escuro e lustroso como ônix, que relinchou ao notar a presença do dono. — Fui buscá-lo assim que o Sunday apareceu. Não é difícil vê-lo do penhasco, você estava certo.
— Obrigado, David. — Ethan pegou as rédeas do animal, passando a mão por sua crina longa e sorrindo quando ele a sacudiu. — Vou para a mansão, qualquer coisa sabe onde me encontrar.
— Claro, senhor Klein. — David o encarou surpreso quando Ethan jogou uma pequena bolsa de moedas em sua direção antes de se afastar, puxando Tormenta consigo em direção à trilha que o levaria para casa.
Começava a nevar. O vento balançava os galhos nus das árvores, assobiando e criando redemoinhos de flocos brancos. A respiração de Tormenta formava nuvens espessas de hálito à medida que o animal caminhava tranquilamente pelo caminho coberto por uma fina camada de neve. Ethan respirou profundamente, olhando ao redor e deixando sua mente vaguear, era um caminho longo e solitário o bastante para o fazer pensar, porém curto demais para que o cansaço o vencesse e o fizesse ficar na taverna no ancoradouro.
O moreno suspirou, passando a mão em um carinho pelas orelhas do animal, que relinchou inquieto. Ethan voltou seus olhos para o céu, sentindo-se cansado enquanto pegava a pequena caixa de madeira polida em seu bolso. Ele a encarou, sentindo-a pesar em sua mão, como se fosse feita de chumbo.
Estava exausto, cansado de mulheres que o tratavam como inferior ou como um selvagem devido a sua pele e seus traços. Não que esse comportamento fosse exclusivo delas, mas, aparentemente, o magoava mais receber esse tratamento delas, vê-las mudar de uma atitude hostil e ofensiva para gentil e prestativa quando descobriam sua fortuna.
E por mais que ele fosse se odiar por isso, estava a ponto de pedir Beatrice, sua mais antiga empregada, atrás apenas de Prudence, em casamento. A loira de corpo robusto e voluptuoso vinha há anos tentando chamar a atenção do jovem Klein e apenas nos últimos meses ele mostrara algum mínimo interesse, sempre repensando suas atitudes.
Beatrice não tinha essas atitudes para com ele, mas inúmeras vezes ele a viu ter com outros. E mais uma vez ele repensou sua decisão. Estaria mesmo disposto a engolir o orgulho, engolir as mágoas, apenas em nome de uma esposa e um herdeiro? Estaria disposto a renunciar a seus princípios por um casamento sem amor, apenas para ter uma 'família'?
Tormenta relinchou, recuando e se mostrando inquieto, tirando Ethan de seus pensamentos.
— O que foi? — ele passou a mão pelo pescoço do animal, tentando acalmá-lo antes de voltar seus olhos para a estrada à sua frente, vendo a figura que caminhava tropegamente. Ethan segurou as rédeas, se aproximando mais lentamente da figura, percebendo se tratar de uma mulher.
A jovem de longas mechas castanhas caminhava de forma lenta, tropeçando em seus próprios passos, caindo um par de vezes e se levantando de forma desajeitada. Ethan suspirou, descendo da sela e se aproximando com cuidado da figura, que a seus olhos, estava embriagada. Ele a viu cair no chão, apoiando suas mãos à neve, tentando se levantar e, novamente, quase caindo.
— Senhorita... — ele se aproximou, colocando a mão levemente em seu ombro na esperança de impedir que ela tentasse novamente levantar-se sozinha e acabasse se ferindo. Ela ergueu os olhos castanhos para si, encarando-o sob os cílios volumosos, o rosto pálido e os lábios arroxeados. — A senhorita está bem?
Ela o encarou, piscando os olhos pesadamente algumas vezes antes de olhar ao redor. Os lábios se abrindo e formando palavras desconexas.
— Escute, eu- — Ethan parou quando ela colocou a mão sobre sua. Gélida, com as unhas oscilando entre um tom de azul e roxo. Ele a encarou surpreso, notando o casaco fino e as roupas que mais pareciam um simples tecido enrolado a seu corpo. — Não está embriagada. Está morrendo pelo frio.
Ele tirou o casaco, jogando-o sobre os ombros dela e a envolvendo em seus braços por um momento, sentindo-a se aninhar contra seu peito, buscando calor.
— Vou tirá-la do frio. — Ethan a pegou em seus braços, ajeitando-a antes de puxar Tormenta pelas rédeas para perto de si, seguindo rapidamente em direção à fazenda.
À medida que seu corpo reclamava pelo cansaço da longa viagem, ele agradecia por estar a poucos metros de casa. Logo a grande mansão surgiu à sua frente, fazendo-o ajeitar a pequena mulher em seus braços e soltar as rédeas de Tormenta. O animal trotou em direção aos estábulos recheados de palha quente e comida enquanto seu dono entrava na casa, subindo as escadas em direção a seu quarto.
Ethan deixou a jovem sobre a cama, aproximando-se do baú, abrindo-o e tirando as pesadas cobertas, colocando-as sobre ela e as arrumando com cuidado. O moreno sorriu ao perceber a lenha ao lado da lareira, aproximando-se rapidamente e a acendendo.
O murmúrio baixo o fez ir em direção a cama, vendo a jovem se mexer sob as cobertas, girando seu corpo em direção ao calor antes que ele lhe cobrisse parcialmente o rosto, vendo-a aninhar-se.
Ethan encarou-a por um momento a mais antes de virar-se em direção à porta, seguindo para a cozinha. Ele olhou ao redor, pegando uma pequena cesta e começando a preenchê-la com pães, queijo, um pequeno pote de geleia e biscoitos antes de apanhar o jarro com leite deixado ali por David naquela manhã.
— Café... café... café... — o moreno procurou pelas pequenas sacas com seus preciosos grãos, encontrando-as escondidas e cuidadosamente armazenadas em uma caixa bem fechada. — Tenho que lembrar de te agradecer, Thomas.
Ele sorriu, tirando uma das sacas e abrindo-a, pegando um punhado dos grãos e os moendo antes de colocá-los em um pote de vidro, guardando-o na cesta. Ethan correu os olhos ao redor, deixando a cesta e o jarro sobre a mesa, pegando o pequeno caldeirão e enchendo-o com água.
— Pronto... acho que isso é suficiente. — Ele arrumou a cesta em seu braço, pegando o jarro em uma das mãos e o caldeirão em outra. Ele suspirou cansado ao subir as escadas, sentindo o corpo reclamar.
O crepitar da lareira o fez sorrir, olhando ao redor pelo quarto já devidamente aquecido antes de deixar tudo sobre a pequena mesa redonda próxima à lareira. Ele se aproximou de sua jovem hóspede, encarando-lhe o semblante calmo, vendo-lhe a cor voltar ao rosto de traços delicados.
— Vai precisar de roupas secas. — Ele encarou a porta por um instante, afastando-se da cama em direção a banheira próxima às portas da sacada, retirando o tecido que a escondia, quase transformando-a em um item excêntrico de decoração e arrumando-a.
Ele saiu de seu quarto, indo até o pequeno quarto de hóspedes do outro lado do corredor e revirando o baú com as roupas que trouxera de viagens anteriores, escolhendo com cuidado um vestido e um casaco, voltando e deixando-os sobre sua cômoda antes de começar a preparar um banho quente. À medida que a água morna tocava sua pele, ele se sentia cansado e ansioso por um momento relaxante assim. Talvez, após certificar-se de que a jovem estivesse bem, ele o tivesse.
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