02 | ELFA DESAPARECIDA

  Westwood não era tão selvagem quanto normalmente é contado aos não-elfos da floresta. Quero dizer, os elfos eram selvagens, sem sombra de dúvida, mas nossas cidades não. Nossa sociedade se parecia com a dos Altos-Elfos, com ruas de pedregulho, mercados organizados... Ainda assim, haviam àqueles que preferiam viver no modo clássico, construindo casebres em árvores ou dentro de bosques. Eu não era um deles, logicamente.

    Na noite anterior eu deixei a torre para uma "invasora ganhar espaço" e a verdade é que quanto mais eu penso nisso mais me sinto um completo idiota. Metade idiota na verdade. Eu não queria vê-la, mas ela estava ferida, e até ela se recompor — o mínimo possível — não posso levá-la ao delegado, por isso resolvi lhe dar apenas uma noite para descanso, também por que estava chovendo muito e eu duvidava que aqueles inúteis da delegacia fossem trabalhar com isso.

    O chão da floresta estava fofo, a terra toda do dia anterior tinha se transformado em um lamaçal por longos quilômetros. Eu andava com cuidado pelo caminho em direção ao estábulo, carregando um saco de comida para o cavalo que tinha deixado ali, mais uma vez por culpa da chuva.

    O saco de comida simplesmente cai dos meus ombros quando chego próximo à cerca.

    — Onde está meu cavalo?

    Olhei ao redor sem entender, até que as pegadas no chão me chamaram atenção, eram de cascos e de pés.

    Merda.

    Corro pra torre e encontro outro soldado, este estava abaixado segurando uma pena. A única que restava das que a elfa perdeu.

    Ele me saudou e devolvi o gesto. O elfo brincou com a pena em suas mãos.

    — Pelo visto tivemos uma águia intrusa por aqui.

    — Uma galinha.

    — O quê? — Ele pergunta com o rosto franzido.

    — Era uma galinha, não uma águia.

    — É uma pena muito grossa pra uma galinha, Ethan... O que aconteceu com ela, afinal?

    Intrometido fedorento.

    — Eu a comi.

    Desde cedo aprendi que, para receber o  mínimo de respeito possível nesse lugar, nunca devo demonstrar nervosismo. O medo alimenta o ego dos homens e eles usam suas fraquezas contra você.

    Tomei a pena de sua mão e a coloquei no cabelo, abri um sorriso em seguida.

    — Desde os ossos até as penas.

    [...]

    — O magistrado o aguarda.

    Mal tirei os pés da floresta e já fui recebido por alguns guardas.

    — Quanta honra... — Caçoei e os segui pelo centro até o fórum. Aguardei poucos minutos até que as portas-duplas se abriram.

    O lugar estava quase vazio, exceto de alguns guardas, do delegado e do Magistrado Kai — o braço direito do rei e juíz de Westwood.

    — Ethan. — Sua voz ecoou pelo local.

    — Magistrado Kai. Que surpresa seu convite...

    — Guarde sua língua afiada soldado, temos assuntos a resolver.

    — Bem... Estou ouvindo.

    — Notou algo de estranho recentemente? — Todos os olhares estavam em mim.

    — Há algo. — O velho juís inclinou-se para frente. — Meu alasão fugiu.

    — Não fugiu, soldado. Foi roubado.
   
Franzi as sobrancelhas.

    — Roubaram meu animal?

    — Fui alertado que um cavalo estava fazendo bagunça nas tendas de frutas mais cedo. Estava com suas inicias gravadas.

    — Já sabem quem é o ladrão, imagino.

    — Ladra, o senhor quis dizer. — Isso quer dizer... — Tragam-na.

    Um guarda fez um gesto com a cabeça e saiu, segundos depois voltou puxando alguém pelas correntes. Aquela elfa.

    Dos pés à cabeça estava completamente suja de lama, muito mais suja do que antes. Seus pés descalços iam deixando marcas pelo piso.

    Fingi uma tosse para evitar rir da situação.

    — Me soltem! — Gritou cheia de raiva. — Me soltem agora! — O magistrado fez um sinal e os homens a largaram. — Como ousam tocar em mim seus... — Seu olhar se encontrou com o meu e ela se calou.

    — Conhece? — Questiona o magistrado.

   — Não sei seu nome, muito menos de que buraco saiu... — Respondi. Algo capitou minha atenção, o espelho na parede. Refletia tudo... Menos as asas da elfa.

    — Pelos maus modos e a má aparência, provavelmente deve ter vindo da Terra Vermelha. — Os olhos da elfa aumentaram de tamanho e seu queixo quase caiu de indignação. Acho que nunca conheci alguém tão expressivo.

    — "Terra Vermelha"? Como ousa me comparar com os viventes da Terra Vermelha? É um absurdo querer me comparar com criaturas tão selvagens e sujas.

    — E você continua sendo a única suja aqui. —  O magistrado retruca.

    — Apenas externamente, diferente de você. De todos vocês. — Aponta um dedo na direção de cada um no local. — Suas almas fedem a estrume de porco!

    Céus... Essa elfa era maluca.

    O guarda que antes a segurava deu um passo em sua direção, ela recuou amedrontada e suas costas se chocaram contra meu corpo. Eu senti suas asas, mas elas continuavam sem reflexo.

    — Vamos terminar com isso antes que eu mesmo expulse ela daqui a pontapés. — O magistrado resmunga. — Tem algo a dizer, soldado?

    Os olhos da elfa encontraram os meus e uma ideia absurda passou por minha mente.

    — Acredito que fui o mais prejudicado, afinal além de ter meu animal furtado essa situação me rendeu dívidas aos vendedores de frutas.

    — Onde está querendo chegar com isso?

    — É de direito de todo homem pertencente às forças armadas do nosso reino possuir uma escrava pessoal, correto?

    — Correto.

    — E eu nunca adquiri uma nesses anos servindo, ou seja, ainda posso exercer meu direito, correto?

    — Correto, correto...

    Olhei para a elfa de cima a baixo.

    — Eu quero ela.

    Alguns presentes sorriram com meu pedido, mas a elfa estava tão indignada que sequer piscava na minha direção.

    — Ótimo. Sendo assim, caso encerrado. — E bateu o martelo.

    — Não serei escrava de ninguém. — Rosnou para mim, mas a ignorei e a puxei pelo braço para fora.

    A elfa continuava gritando enquanto a puxava pelo caminho. Ela até tentou pedir ajuda, mas ninguém sequer olhou para nós. Alguns cobriram os ouvidos de suas crianças, outros apenas se viravam de costas para nós, incapazes de demonstrar qualquer gota de reação que indicasse oposição à minhas atitudes.

    [...]

    Soltei a elfa quando finalmente chegamos em minha casa. A marca dos meus dedos em seu pulso era extremamente visível. Ela assoprou o local antes de olhar ao redor. O medo se fez presente em seu rosto.

    Fecho a porta da sala atrás de mim e me escoro nela de braços cruzados. Olhei a elfa de cima a baixo com reprovação.

    — Não estou gostando do seu olhar.

    — Sabe o que vai acontecer agora? — Questionei sério.

    — Duvido muito que irá me matar. Afinal... Você cuidou do meu ferimento... E me tirou da prisão.

    — Bom... Isso quer dizer que você sabe pensar.

    Ela fecha ainda mais a cara.

    — Temos um trato agora.

    — Temos?

    — Eu não trouxe você atoa. Você me causou problemas, dívidas. E quem trouxe um problema que traga a solução também, é o que eu sempre digo.

    — Quer que eu pague pela destruição da tenda.

    — Mas não com dinheiro.

    Seus olhos arregalaram e, instintivamente, ela coloca os punhos para frente de seu corpo.

    — Pare de pensar em bobagens, garota. Acha mesmo que eu me interessaria em uma mulher que parece mais um porco que acabou de rolar em suas próprias fezes?

    — Você...! — Ela apontou o dedo para mim. — Como ousa...

    — Enquanto eu estiver trabalhando, você ficará aqui cuidando da minha propriedade.

    — E se eu não quiser fazer isso?

    — Vai voltar à ser detida pelo não cumprimento da sua sentença. — Coloquei as mãos na cintura. — Você dará sorte se seu corpo apenas apodrecer numa cela comum, mas com base no seu comportamento, tenho 70% de certeza que eles à levarão para o Pesadelo.

    Ela pensou um pouco.

    — Tá...

    — Vá se lavar. Já aturei por tempo de mais essa sujeira toda.

    Apontei com o dedo a direção do banheiro e ela foi até lá em silêncio. Olhei para as pegadas pela casa e suspirei irritado por ter limpar o chão pela segunda vez no dia.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top