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Ao abrir os olhos naquela manhã, tremia de frio, pois nem os panos surrados que eu usara para cobrir o chão antes de dormir se encontravam ali.
Olhei para todos os lados e nada mais vi que fizesse o menor sentido.
O mundo deixou de ter uma cor definida, algo perto de um cinza que não era cinza. E sobre esse todo, esse mar cinza, nada além de cinzas.
O mais estranho era o som, que se resumia a um forte zumbido, daqueles que parecem estar dentro da nossa cabeça, aquele zumbido final e contínuo de quando o mais possante motor inesperadamente para, mas o zumbido não parece querer parar.
Me agarrei ao zumbido, pois com exceção dele servindo de trilha sonora para este mundo cinza a minha frente, nada mais via, nada mais ouvia...
Era como se estivesse cara a cara com o meu pior pesadelo, aquele que todos temem quando se depararam com um cenário que indica claramente que nada mais pode ser feito, afinal, o que vem depois do fim?
Forcei meu corpo a levantar do chão e por uma questão de costume totalmente desnecessário naquele momento, bati com as mãos sobre a minha roupa para retirar o pó que nela se acumulou durante o sono.
Havia nuvens no céu, mas pude identificar o Sol querendo brilhar através delas e assim descobri o rumo que tinha que seguir, sempre ao norte, como Ende me segredara no dia anterior.
Estava faminta, cansada, praticamente me arrastava sem parar para o meu destino.
O meu pé direito ainda doía muito devido a queda, onde eu o torci, mas essa dor em vez de me incomodar, bem ao contrário, me provava que eu ainda estava viva.
O zumbido ainda permanecia em meus ouvidos, forte e pulsante como se tivesse vida própria.
Abri a boca com tudo, pensando que seria algo da minha cabeça, mas quando mais forçava minha mandíbula, mais o zumbido aumentava, depois diminuía e voltava a intensidade padrão conforme eu fechava minha boca.
Para passar o tempo, fiquei brincando com isso, abrindo e fechando a boca, aumentando e diminuindo o som do zumbido, até que a brincadeira perdeu a graça.
Era bem melhor ouvir o zumbido do que a interminável sessão de choros do dia anterior - pensei satisfeita.
Continuei caminhando por horas a fio, agora também com uma sede violentando meu ser. O cenário por todo o lado permanecia o mesmo, um vasto deserto sem cor.
Para completar meu desafio, as nuvens sumiram e o Sol do meio-dia começou a reinar sobre a minha cabeça e mesmo sendo outono, ele parecia fritar meu cabelo como o mais possante aparelho de chapinha do Universo.
Comecei a rir feito uma louca deste último pensamento insano, mas logo a secura da minha garganta me provocou um acesso de tosse e quase me engasguei.
Cheguei a cair de joelhos, mas sem perder um segundo sequer, me levantei e segui meu caminho.
Confiei em cada palavra que Ende me disse nos últimos dias, fiquei imaginando de verdade o quanto eu era especial por conseguir chegar até ali e fiquei desejando desesperadamente vê-lo lá longe, me aguardando com os braços abertos.
Não sei se foi o calor acumulado sobre minha cabeça, mais a fome e a sede que me martirizavam, mas imaginei de fato ver um pontinho meio avermelhado a uma longa distância no horizonte.
Aquela possível miragem trouxe uma leve carga de energia para meu corpo e se eu pudesse correr, era isso que agora eu faria.
Conforme segui o ponto vermelho foi gradativamente aumentando e um alívio imensurável tomou conta de mim.
Era o Ende que eu via, ele não estava de braços abertos, nem virado na minha direção estava, mas era ele ali, meu ponto de referência, meu destino, meu fim da linha, minha última estação.
Nos últimos metros que me separavam dele, tentei gritar seu nome, mas não consegui.
Mesmo assim creio que ele sentiu a minha presença, pois se virou na minha direção e quando me viu, começou a correr.
*Um! - ele gritava sem parar a plenos pulmões - Um! Um! Um!
Parei, fechei os olhos e abri os braços para recebê-lo. Ende vinha tão rápido que me abraçou ao mesmo tempo em que me derrubou, caindo sobre mim.
*Um! - ele falou finalmente sorrindo e para me ajudar a levantar estendeu sua mão direita sem mais nenhum dedo, onde me agarrei com força e ele me puxou.
Colocou os braços em volta da minha cintura e assim, como um casal enamorado, seguimos abraçados para o norte.
*O que acontece agora? - consegui lhe perguntar numa voz que era somente um chiado.
*Eu ainda não sei! - disse ele sorrindo e uma brisa arrancou seu insistente capuz vermelho.
Pela primeira vez pude ver o seu rosto por inteiro e Ende parecia um garoto, que como eu faria dezoito anos no dia seguinte, se esse dia viesse a existir.
*Mas estou otimista! - terminou ele ainda com o sorriso no rosto, que o deixava muito mais belo.
*Quem é você? Vai me dizer agora?
*Eu creio que você já sabe...
Sim, no fundo eu sabia, como fui estúpida, soubera o tempo todo, só não queria acreditar.
Sorri enquanto apertava o único objeto que consegui transportar no bolso do jeans, o meu último elo com o mundo que eu deixei para trás, um antigo presente de minha mãe.
Ainda abraçada a ele seguimos caminhando até que o deserto nos transformou num pequeno ponto no horizonte, que foi diminuindo até praticamente desaparecer.
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