Capítulo 7 - O pássaro de asa quebrada

O BAIRRO DO CRUZ CREDO ficava localizado a quase um quilômetro da fronteira com Marechal LaRocca e era um dos pontos mais ermos pertencentes ao território conhecido como Boca do Crime. Grande parte do seu entorno era tomado por mato alto, enquanto o restante era usado como aterro sanitário pelos moradores das regiões próximas. Por conta desse detalhe, o cheiro que impregnava o ar mais próximo daquela quebrada era quase insuportável... Isso para quem não estava acostumado a visitar lugares muito piores.

Thales de Souza era um dos moleques mais safos que moravam na região do Cruz Credo. Desde pequeno, era conhecido como um acumulador voraz e juntava na parte de trás do quintal da casa velha onde morava com a avó um sem-número de bagulhos que ele dizia se tratar de "material para reciclagem". O fato era que ele tinha aprendido a consertar equipamentos diversos com uma revista antiga de engenharia eletrônica que achara no lixo e, depois disso, tudo que era sucata na região acabava no seu terreno e virava seu experimento de estudo. A velha Rosileide de Souza ficava possessa com o mau hábito do neto em empilhar porcarias.

Eu tinha conhecido o Thales em uma das minhas andanças pela Boca do Crime, enquanto servia de aviãozinho para os homens de Belo Falcão. Ele era três anos mais velho que eu e, tal qual a galera mais jovem do conjunto habitacional onde eu vivia, também tinha sido obrigado a trabalhar para o tráfico de drogas a fim de se estabelecer financeiramente.

A dona Rosileide sofria de diabetes há vários anos e não era fácil conseguir o tratamento adequado ou os medicamentos que ela precisava todos os meses. Como ele era a única família que a velha tinha, sobrava para o Thales dar duro diariamente com o intuito de conseguir os remédios da avó e o seu próprio sustento.

Naquela tarde, após o encontro com o "Pássaro Noturno" no beco atrás do prédio da Xeque-Mate, eu decidi ir ao encontro de Thales a fim de que ele estudasse de perto as partes do traje que o garoto magrelo havia deixado para trás. Eu nunca tinha visto nada sequer parecido com aquilo e achei que o meu colega de crime pudesse me auxiliar.

— O que tem pra mim hoje, gatinha?

Thales me atendeu em seu portão e não demorou a me encaminhar até a sua "oficina" na parte de trás do quintal. O rádio soava uma das canções do Roberto Carlos na parte interna do barraco onde ele morava com a avó, mas a música foi abafada quando eu desembrulhei o pacote que trazia sob o braço e entreguei a ele.

— Quero saber o que você acha desse negócio aqui. Eu nunca vi um traje feito sem qualquer costura e com uma resistência tão grande!

Thales era um garoto magricelo de cabelos desfiados e com as costas levemente curvadas. Tinha as mãos encardidas de graxa a maior parte do tempo e as unhas compridas pareciam nunca ter visto uma barra de sabão na vida. Apesar da aparência imunda, ele era um dos caras mais legais que eu conhecia, e sempre me tratava bem.

— Onde arranjou esse troço, Sil?

Thales encarava o capuz metade couro, metade metal com o formato de asa de pássaro. Botou o torso com a capa comprida sobre o balcão onde ele consertava as suas tralhas eletrônicas e afastou um aparelho de som antigo a fim de abrir espaço no tampo de metal.

— Um carinha deixou comigo. Do que acha que é feito?

Havia um ar de curiosidade na sua cara fina. Ele tateou o material da máscara por um tempo, depois, fez o mesmo com o torso e a capa longa.

— Parece algum tipo de borracha sintética ultrarresistente... mas o metal mais pra algum tipo de aço... não sei bem...

Thales começou a dar batidas com os nós dos dedos na placa peitoral pesada que eu havia tirado de cima do garoto no beco há uma noite. Pressionou com os polegares tentando criar ranhuras em sua superfície, mas não demorou a descobrir que a chapa era bastante espessa e quase impenetrável.

— Isso aqui deve aguentar um ou dois tiros de calibre trinta e oito fácil! Daria uma proteção à prova de balas bem massa! Você me vende por quanto, gatinha?

O brilho em seus olhos agora era intenso. Eu fiz que não com a cabeça, acabando com a sua esperança de obter o produto.

— Não está à venda, Thales. Eu trouxe aqui só pra você me dizer do que esse negócio é feito.

Ele então voltou a se dedicar a analisar o material da roupa. Olhou o forro, testou a elasticidade das mangas, tornou a manusear a máscara com as lentes brancas ovaladas e respondeu algum tempo depois:

— Isso aqui não pode ter sido feito em uma máquina de costura industrial padrão. A peça do torso foi fabricada de maneira inteiriça e fundida à chapa metálica do peitoral por algum equipamento de precisão capaz de manter temperatura elevada... tipo um maçarico! É uma das roupas mais incríveis que já vi na vida! Com certeza é capaz de absorver o impacto de algumas centenas de quilos.

Aquilo explicava, por exemplo, como aquele garoto havia sobrevivido a uma queda de mais de dez metros apenas com um braço quebrado e algumas dores na coluna. Nenhum ser humano normal sobreviveria a algo do gênero.

— Acha que vale uma grana então? — Eu me precipitei a juntar as três peças sobre o balcão e, depois, voltei a empacotar tudo.

— Eu conseguiria uns dez mil pra você.

Eu sorri em direção a ele, mas novamente recusei a oferta.

— Não está à venda, Thales. Eu só perguntei por curiosidade. Eu preciso devolver isso a uma pessoa.

Ele, enfim, se convenceu de que não poderia comprar aquilo que eu havia lhe mostrado e me acompanhou de volta até o portão. A dona Rosileide agora cantarolava uma canção do Caubi Peixoto em sua cozinha, e já do lado de fora, eu aproveitei para perguntar a ele sobre o seu estado de saúde.

— Na mesma. Eu dou um jeito de levar a velha até o hospital para que ela tome as doses de insulina semanais, mas está cada vez mais difícil comprar o restante dos remédios que ela precisa. O serviço na Rua 19 anda cada vez mais perigoso e já não tem rendido a mesma grana de antes. O Belo Falcão está trocando a sua equipe semanalmente e eu tenho ficado de fora do esquema quase sempre.

— E as bugigangas do ferro-velho? Não tem conseguido vender?

Ele fez que não em resposta, desanimado.

— Difícil achar quem queira comprar itens tão detonados, por melhor que seja o conserto. A aparência ferrada das coisas ainda espanta a freguesia.

Sem saber como consolá-lo, eu dei palmadinhas em seu ombro. Arrumei o pacote embaixo do braço e disse a ele que, mais cedo ou mais tarde, as coisas iam melhorar. Eu era péssima com meus discursos motivacionais e não fazia ideia que, apesar disso, em muito pouco tempo eu ia acabar dando a motivação necessária que uma pessoa muito especial precisava.

Eu não sabia quando ele ia aparecer para buscar as suas tralhas e, por conta disso, eu decidi ficar de bobeira próximo ao local onde o tinha encontrado antes ao longo de vários dias seguidos. Algum tempo havia se passado desde que eu tinha conhecido o Pássaro Noturno e, sem saber exatamente a razão, eu me peguei ansiosa para reencontrá-lo e tirar as dúvidas que pairavam na minha cabeça a respeito daquela roupa esquisita que ele vestia.

Eu estava vadiando à porta do bar do senhor Timóteo quando o vi surgir casualmente no beco onde o tinha visto a primeira vez. Usava roupas largas, o cabelo crespo estava penteado para trás e o braço estropiado jazia engessado e pendurado em uma tipoia. O reconheci de imediato.

Sem saber como me achar, ele estacou entre os dois prédios junto ao beco e ficou a encarar o conjunto habitacional carcomido onde eu morava a alguns metros, do outro lado da avenida Princesa Isabel.

— Lar doce lar.

Ele se voltou atraído pela minha voz e me lançou um olhar de cima a baixo, me reconhecendo também agora sem o capuz que cobria a minha cabeça dias atrás.

— Eu tinha certeza que você ia vir atrás de mim, magrelo.

Ele curvou levemente os lábios antes de perguntar:

— Como sabia?

— Sempre ouvi falar que as mulheres têm um troço chamado "intuição feminina". — Eu estava encostada à sombra da parede do Xeque-Mate e também curvei os lábios num meio-sorriso.

— Ficou me esperando voltar todo esse tempo?

Deixei escapar uma risada debochada. Andei para mais próximo dele e, então, apontei o prédio do meio no conjunto de três. Os carros passavam apressados entre nós na Princesa Isabel. O relógio digital fixado numa haste comprida sobre as nossas cabeças marcava mais de meio-dia.

— Os seus bagulhos estão lá em cima. Guardei para que ninguém visse.

Depois que nós dois atravessamos a faixa de pedestres, eu o conduzi até a entrada do meu prédio e sinalizei que subiríamos um lance de escadas. Eu não queria saber o que ele estava pensando naquela hora enquanto era levado para um cortiço sujo e fedorento daqueles, mas a sua cara era de apreensão.

— Desculpe por não irmos de elevador. Ele está quebrado.

A minha ironia o assustava ainda mais, mas eu não me importei muito. O levei até o quarto andar onde eu morava com o meu pai e voltei a parecer arrogante.

— Chegamos. Esse é o meu apartamento. Seja bem-vindo!

Eu forcei o ombro junto à porta de madeira rústica para abri-la e o rangido das dobradiças ecoou incômodo. O convidei a entrar e, depois, caminhei em direção ao meu berço de livros. Os berros e sons diversos produzidos pelos vizinhos de apartamento soaram de maneira inesperada a ele e, dali, era possível ouvir também os choros manhosos da Ana Clara no quarto em frente.

— Espero que o barulho dos vizinhos não atrapalhe vossa majestade. — Ele se voltou para mim dizendo que não estava incomodado, mas não o deixei concluir a frase. — Além de mim e do meu pai, moram mais umas cinco famílias aqui nesses prédios abandonados. A gente foi despejado de casa logo que o meu pai não conseguiu mais pagar o aluguel. Quando o Collor[1] confiscou a poupança de todo mundo, o meu pai ficou na pior. Ele foi mandado embora do trampo e, alguns anos depois, a minha mãe teve câncer... E a gente veio parar aqui. Lar. Doce Lar!

Eu empunhei o embrulho com as peças do traje que ele havia deixado para trás e o atirei sobre ele.

— Está aí o que você veio buscar.

Ele apanhou todo desajeitado, tentando equilibrar entre o braço bom e a tipoia. Olhou por entre o papel e o barbante para conferir se estava tudo ali e percebi os seus ombros relaxarem na sequência. Pouco depois, ele olhou em volta do apartamento cujas janelas jaziam cerradas por papelão e ripas de madeira.

— O seu pai...?

— Fica tranquilo. Ele não viu os teus trecos. O velho mal para dentro de casa. Quando está aqui, ele se enfia no sofá e afoga a autopiedade na cerveja que eu trago da rua pra ele. A minha pilha de livros é a última coisa em que ele pensa em pôr a mão. — Eu me virei de costas para ele com as mãos apoiadas na grade do berço, a encarar os livros. — Eu fiquei curiosa. — Me virei para encarar o pacote em seus braços. — Essa roupa foi feita sem costuras, sem emendas. É de couro legítimo com reforços metálicos. Parece ter sido fabricada sob medida. Peça inteiriça. Quem fez isso pra você?

Ele ficou levemente desconcertado e foi evasivo:

— Você não entenderia.

Soltei um muxoxo.

— Besteira! Sei muito bem que você não teria inteligência ou habilidade para fazer um troço assim. Quem fez pra você?

Ele hesitou. Andei em sua direção para pressioná-lo a me responder.

— Qual é! Eu ajudei você naquele beco. Eu vi você despencar de quase quinze metros. Era para ter quebrado o pescoço ou a coluna além do braço. Mas você está aqui na minha frente e inteiro. — E olhei o gesso. — Ou quase. Essa roupa te salvou. Quem fez isso para você? Acho que mereço saber.

— É complicado. Eu não fiz essa roupa. Eu tenho uma máquina que fabrica qualquer tipo de vestimenta que eu projetar. — Era a coisa mais absurda que eu já tinha ouvido na vida, mas ia de encontro às suspeitas do Thales. — Eu encontrei alguns projetos prontos em um banco de dados de computador e eu... Meio que mandei a máquina confeccionar...

Eu já estava a um metro dele. A sua expressão era de apreensão. Foi aí que eu comecei a rir.

— Besteira, magrelo! Que baita besteira!

Eu andei até o sofá para me sentar e continuei rindo.

— Quer me dizer que você tem uma máquina mágica que costura roupas pra você? É isso?

— Falando assim parece meio idiota, mas é basicamente isso.

— "Basicamente isso"?

Ele acenou que sim.

— Você fala feito um nerd imbecil! De onde você veio? Da "Nerdolândia"? — Eu me reclinei no sofá demonstrando desinteresse. Eu já tinha percebido que ele tinha um jeito meio covarde e tentei arrancar dele algo mais do que respostas evasivas me fingindo de durona. — Fique com os seus segredos, nerd. Não quero saber deles. Você já tem o que queria, agora pode descer pelo mesmo caminho que chegou aqui. Não seria legal se o meu pai te encontrasse sozinho aqui dentro comigo.

A estratégia de intimidação tinha dado certo. Ele parecia que estava prestes a se borrar todo nas calças enquanto me ouvia. Um pouco antes de seguir em direção à porta, ele puxou uma nota de cinquenta reais do bolso e a estendeu a mim.

— Tome. Eu estava te devendo.

Era o dinheiro que eu havia lhe emprestado na noite em que paguei o táxi que o levou para casa. Tirei a cédula da sua mão bruscamente.

— De nada, magrelo!

Eu me levantei do sofá e caminhei em direção ao berço com os livros. O ouvi mover o corpo magro com o intuito de deixar a minha casa. Foi então que fiz a minha voz soar:

— Não sei o que estava fazendo no alto daquele prédio aquela noite, mas eu sei bem o que estava acontecendo naquela esquina que você espionava. — Ele voltou a sua atenção a mim. — O carinha que você estava seguindo, o tal de Arthur, é um aviãozinho do tráfico e ele estava fazendo uma entrega de drogas para uns vagabundos a mando de Antônio Maranelli. Esse Maranelli comanda o tráfico pesado de drogas de São Francisco e emprega esses moleques para levarem algumas encomendas de lá pra cá na maciota. Em geral, essas encomendas acabam na mão de viciados de bairros e traficantes pés-de-chinelo, mas é rentável para quem faz as entregas e, principalmente, para quem vende. É rápido, silencioso e ninguém fica sabendo.

— Nem a polícia? — quis saber ele.

— Metade da polícia está nas mãos do Maranelli. A outra metade finge que não vê.

— Ouvi dizer que o Arthur trabalhava para a Corporação.

Naquele momento, eu saí do meu estado inerte e corri em direção a ele. O puxei pela gola da camiseta e bati a porta que ele havia deixado entreaberta com força.

— Cuidado com o que diz em voz alta, magrelo. Existem coisas que você não entende e a maioria delas te mataria facilmente antes que você colocasse essas suas perninhas finas para fora desse prédio.

— Foi só o que ouvi dizer. Você parece estar melhor informada. Como sabe tanto sobre esse assunto?

Os seus olhos iam e viam dentro dos meus. A minha respiração se acelerou, a dele também.

— Como acha que eu sei, idiota? Olha bem onde eu moro. Olha os trapos que eu visto. O que acha que o meu pai e eu fazemos pra sobreviver?

Ele não desviou os olhos dos meus. Estava me encarando com firmeza.

Quem diria? Ele não é tão covarde assim, pensei em silêncio.

— A gente trabalha para o Maranelli. — continuei falando em tom rude. — O Maranelli presta contas para a Corporação, e o cara de terno que chega na cidade de helicóptero e pousa o seu troço voador no alto do prédio de onde você despencou é quem manda em tudo. Entendeu agora?

— Você... Trabalha...?

Voltei a me afastar dele depois de largar a sua camiseta.

— Não ouse me julgar. Nós não tivemos opção. O meu pai perdeu tudo. A minha mãe morreu logo em seguida. Eu era uma criança. O Maranelli ofereceu um trampo e o meu pai não teve como recusar. Quando eu fiquei um pouco maior, passei a fazer entregas pelos bairros. Eu era uma menina, ninguém desconfiava de mim. Conseguia me enfiar em lugares que os meninos eram proibidos de entrar... Tinha vantagens. O meu pai soube me usar muito bem. Aí eu cresci mais, comecei a chamar a atenção de uma outra forma. Não queria que me vissem como uma menina, então, passei a andar assim, suja, rasgada...

Nunca era fácil relembrar a minha trajetória cruel de vida. Ainda mais quando cenas do que eu tinha passado no Bairro Burlesco me assaltavam de vez em quando. As lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos e eu as limpei imediatamente. Andei de volta até o garoto e dedilhei o pacote em seus braços antes de continuar falando.

— Eu sei o que está pretendendo fazer com isso. Você quer bancar o herói. Vai ser difícil. Provavelmente, você vai morrer tentando, mas eu peço que não desista. — Ainda haviam lágrimas nos meus olhos. — Não se renda! Enfrente o seu medo! Faz outra dessas à prova de balas, cobre o rosto. Faz algumas armas. Derruba a Corporação. Não deixa um tijolo em pé...

— Mas, e quanto a você? E quanto ao seu pai?

Eu agarrei o pacote e o forcei contra o seu peito.

— Seremos o preço a pagar para livrar essa cidade desses desgraçados que afundam gente pobre no excremento que eles jogam para trás dia após dia. Não hesite por nós e nem pelas famílias que estão nesses prédios condenados. De qualquer forma, dentro de alguns meses, a prefeitura vai nos enterrar sobre toneladas de escombros e transformar isso tudo num estacionamento de grã-fino. Ninguém liga. Mas você pode fazer o que é certo. Essa cidade precisa de alguém puro. Alguém que ainda não foi corrompido pelo caos. Seja essa pessoa.

As sobrancelhas dele estavam curvadas sobre os olhos e a testa se franziu antes de ele dizer:

— Então me ajuda. Você tem as informações e eu tenho os meios. Juntos nós podemos...

— Não! Eu não vou fazer parte disso. Eu não tenho o que é preciso. Você terá que se virar sozinho nessa!

Ele queria continuar me convencendo do contrário, mas eu não estava mais em condições de levar aquele papo. O empurrei para fora do apartamento e parei de prestar a atenção no que ele me dizia.

— Cai fora daqui, magrelo! Você vai ter tempo de bolar um plano enquanto essa sua asa estiver quebrada, mas eu não posso te ajudar mais.

Sem qualquer polidez, eu bati a porta emperrada do apartamento, mas ainda pude ouvi-lo do outro lado.

— Eu posso saber o seu nome pelo menos?

Abri uma fresta na porta e o encarei um instante.

— Por que? Vai me escrever uma carta?

E voltei a fechar a porta.

Depois daquele encontro carregado de emoção, eu me vi incapaz de parar de pensar em tudo que havia vomitado na cara daquele menino de aparência tão inocente. Ele exalava toda uma aura de "filhinho de papai" criado no conforto e na vida boa proporcionada pelo dinheiro da classe média, mas, ao mesmo tempo, parecia mesmo ávido para fazer o bem aos desafortunados. Eu não conhecia nada a seu respeito. Não sabia nem sequer o seu nome, mas compreendia que ele não era, nem de longe, como todos os babacas que eu havia conhecido ao longo dos anos. Homens perversos que só me viam como um pedaço de carne descartável e que me usavam como se eu não merecesse respeito. Não. Ele não era como os outros.

Assim que andei até o apartamento de Jacira para oferecer ajuda com a bebê, eu me prostrei em sua janela e o vi se aproximar da faixa de pedestres em frente ao prédio lá embaixo, prestes a atravessar de volta ao beco onde a gente tinha se conhecido. Chamei-lhe a atenção assoviando e, quando ele se virou para o alto e me encontrou na janela do quarto andar, eu disse em alto e bom som:

— Silmara. Eu me chamo Silmara.

O sinal abriu à sua frente e uns garotos skatistas que também esperavam para atravessar a rua começaram a cochichar e a repetir o meu nome de maneira zombeteira olhando para mim. Mostrei-lhes o dedo médio de maneira agressiva e me voltei para o interior do apartamento sem olhar para trás. Jacira estava preparando uma mamadeira no fogo a lenha e eu aproveitei para ninar Ana Clara enquanto a menina esperava o seu leite.

Conforme repassava mentalmente a minha conversa com o Pássaro Noturno de asa quebrada, uma esperança começava a se formar dentro do meu peito de que ele fosse mesmo fazer aquilo que eu o havia aconselhado. Eu não acreditava em conto de fadas e nem em milagres, mas por alguma razão, eu tinha fé que aquele garoto faria mesmo a diferença na cidade como nunca ninguém antes havia feito e eu me agarrei a essa expectativa por um longo tempo, mesmo sem saber porquê.


[1] O ex-presidente da república Fernando Collor de Melo, cujo plano de governo confiscou o dinheiro das cadernetas de poupanças bancárias em 1990.

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