Capítulo 6 - Símbolo de fé

NA NOITE EM QUE MEU PAI ME LARGOU sozinha no Bairro Burlesco, a minha inocência fora arrancada de mim naquele quarto de prostíbulo e uma mácula incurável se formou em minha alma, transformando profundamente a garota doce que eu era na pessoa fria que fui obrigada a me tornar.

Dois longos anos se passaram enquanto dia após dia eu era feita de escrava sexual para o deleite dos mais variados tipos de canalhas que frequentavam aquela zona da cidade. Às vezes, era um por noite. Às vezes, eram mais de dois. Nada mudava o fato de que eu era uma criança servindo aos anseios abusivos de monstros que viam em mim uma forma abjeta de satisfação. Eu tinha me tornado um objeto, uma coisa, e o meu valor serviu para que a dívida incalculável de Demétrio fosse sendo paga. Programa por programa. Visita por visita.

No último dia em que JJ Hernandes foi até a ala onde meninas da minha idade eram feitas de escravas num dos corredores mais imundos do Le Plaisir, eu estava decidida a atentar contra a minha própria vida. Depois que eu havia sido raptada e impedida de voltar para casa durante vários meses, nada mais fazia sentido, e eu até já havia reservado sob o colchão manchado do quarto um caco de vidro com a qual pretendia cortar a minha carótida.

O sorriso amarelo, o bigode ordinário e o chapéu branco eram visita quase constante naquela parte do prostíbulo, ora para dar ordens, ora para nos informar sobre o que ele chamava de "clientela".

Naquela tarde, no entanto, Hernandes estava ali para me libertar e para informar que a dívida de Demétrio estava paga.

— Junta tuas coisas e te manda, pequena. Tem um carro lá embaixo pra te levar até o lixão onde tu mora.

Àquela altura dos acontecimentos, eu já nem sabia se a notícia da minha libertação era boa ou ruim, mas decidi aproveitar a chance antes que o canalha à minha frente mudasse de ideia e simplesmente decidisse me usar de escrava por mais dois ou quatro anos.

Enquanto carregava a trouxa de roupas a que tinha direito embaixo do braço e caminhava trêmula pelos corredores mal iluminados do bordel, eu vi os capangas de Hernandes acompanhando em uma fila indiana um novo grupo de garotas que tinha acabado de chegar ao lugar e que ia substituir a mim e as minhas colegas atuais de turno. Havia pavor nos rostos jovens de traços ainda infantis passando ao meu lado. Eu sabia que ia acontecer com todas elas o que por tanto tempo havia acontecido comigo dentro daquelas paredes encardidas. E eu não podia fazer nada.

O meu retorno para o conjunto habitacional abandonado da prefeitura no cruzamento da avenida Princesa Isabel com a Senador Barbosa Bulhões fora melancólico, e eu me senti como deviam se sentir os soldados que retornavam das guerras para as suas casas. Todos os meus ferimentos externos de batalha já haviam cicatrizado depois de tanto tempo, mas aqueles que eram internos eu os carregaria para sempre.

Muita coisa havia mudado em todo aquele tempo. A fachada do prédio central estava ainda mais deteriorada. Havia marcas de sujeira acumuladas com pichações frescas nas paredes e o portão de entrada estava agora ornamentado por faixas rasgadas de interdição da prefeitura.

O depósito no canto leste ao conjunto continuava barulhento como antes com o som inconfundível dos motores dos caminhões de carga dando partida, do apito irritante da marcha a ré, da aceleração e dos trabalhadores carregando e descarregando engradados e caixas dos mais variados tipos. O logotipo no alto do depósito, no entanto, era outro. Um novo supermercado havia adquirido o ponto e ele parecia agora em expansão.

Quando comecei a subir as escadas em direção ao quarto andar, parei um instante ofegante e percebi que já não tinha mais o mesmo ímpeto juvenil que me fazia correr aqueles degraus sem que uma gota de suor sequer escorresse dos cabelos. Eu tinha dores pelo corpo que as noites insones sobre colchão duro haviam me causado, mas era a falta de alegria que mais me havia tirado as energias.

Quando estaquei diante do apartamento de porta oca de Jacira e a moça de quarenta e tantos anos correu até mim para me abraçar aos prantos, eu nem sequer tive forças para chorar. Fiquei lá parada dando palmadinhas em suas costas e repetindo como um mantra que "tudo estava bem".

Depois de todo aquele período sendo tratada como mercadoria, de ter o meu corpo explorado num comércio e de todas as coisas horríveis a que tinha sido obrigada a ver e a fazer, eu não sabia mais viver em comunidade e as minhas energias começaram a desaparecer dia a dia enquanto eu me mantinha enfurnada em meu antigo quarto sem vontade de comer, sem vontade de me lavar ou de dormir.

Após muitos anos sem acesso àquele tipo de luxo, Cleiton e Tatu, o pai de Larissa, tinham conseguido puxar um "gato" junto ao poste do depósito do supermercado ao lado há alguns meses, e os moradores agora tinham acesso a um chuveiro elétrico no terceiro andar. Todas as tardes, as mulheres e as crianças se amontoavam à porta do banheiro improvisado a fim de aproveitar o horário de pico do depósito para que eles não desconfiassem do gasto extra que estavam tendo com energia elétrica, e só à noite é que os homens do prédio podiam se banhar, quando dava.

Cleiton havia arranjado um rádio antigo com o seu trabalho no Ferro-Velho Oliveiras onde agora fazia "bico" como catador de lixo e, vez ou outra, dava para ouvir música tocando no quarto que ele dividia com a Jacira. Ela havia perdido o neném que esperava num aborto espontâneo poucas semanas depois do meu confinamento no Bairro Burlesco, e não era raro ver a coitada amuada pelos cantos ouvindo músicas tristes e choramingando a perda do filho que nem chegara a nascer. Eu entendia pouco de inglês, mas sabia traduzir o título da canção que ela mais gostava de ouvir naquelas horas. "Tears In Heaven" do Eric Clapton falava sobre luto e eu compartilhava aquele sentimento. Afinal, estávamos todos querendo curar as nossas feridas.

Durante as duas semanas inteiras do meu retorno para casa, o meu pai não deu as caras no prédio ou mesmo na vizinhança. Havia toneladas de culpa sobre aqueles ombros fortes de boxeador aposentado, mas a sua covardia não permitia que ele encarasse mais uma vez a filha que havia vendido em troca das dívidas que fizera ao longo de todos aqueles anos.

Demétrio tinha enfrentado inúmeros adversários nos ringues, muitos deles com quase a mesma altura e o peso que ele em sua categoria meio-pesado. Eu tinha apenas um metro e sessenta e três, pesava menos de cinquenta quilos, mas era o adversário que mais lhe botava medo naquele momento.

Eu tinha recomeçado a ler It de Stephen King porque já não me lembrava o que havia acontecido antes do ponto onde havia parado, há dois anos. Estava sentada numa poltrona antiga que ficava virada para a janela aproveitando a luz solar que invadia as frestas de madeira que a selavam. O berço entulhado dos livros que Cleiton havia me dado em todo aquele tempo estava bem ao lado, empoeirado.

Ouvi a porta velha ranger conforme o seu peso se arrastava pelo chão sem piso do apartamento e nem precisei me virar. Na minha leitura, King descrevia um personagem patético a procura do que se empanturrar na cozinha de casa. Era um sujeito bêbado, mal-humorado e sem qualquer paciência. Era incrível a ironia da coisa.

" (...) Seus olhos se desviaram para as garrafas de bebidas pesadas na prateleira com porta de vidro acima da bancada da cozinha, e por um momento ele se viu se servindo de uma dose de Jim Beam sobre um único cubo de gelo. Mas acabou voltando para a escada, sabendo que estaria pedindo mais confusão do que a cabeça já estava sentindo. Ele olhou para o mostrador do antigo relógio de pêndulo no pé da escada e viu que passava da meia-noite. Essa informação não melhorou em nada seu humor, que nunca era muito bom mesmo no melhor dos momentos...".

Interrompi a leitura. Enfiei um marca-páginas entre as páginas noventa e dois e noventa e três, depois, pousei lentamente o bloco de tijolo em formato de livro sobre alguns outros no berço. Estava na hora de enfrentar os meus próprios pesadelos. A última passagem que havia lido ainda era fresca na memória.

"Ele subiu a escada com lentidão deliberada, ciente, ciente demais, do quanto seu coração estava se esforçando. Ka-bum, ka-pam. Ka-bum, ka-pam. Ka-bum, ka-pam...".

— Resolveu voltar pra casa, afinal?

Os olhos de meu pai estavam avermelhados e inchados. Estávamos a alguns metros de distância, mas dava para sentir dali o seu hálito de cerveja barata. Como de costume, ele andava tentando afogar as mazelas da vida em álcool e estava se matando dia após dia, cada vez mais depressa.

— Meu... anjo...

Eu já o tinha visto em situações etílicas piores. Uma vez, tinha chegado em casa inteiro mijado. Fedia feito um sapo no brejo e mal conseguia formular uma frase que fizesse algum sentido. Apesar de tonto, aquela noite ele até que estava bem em vista do que já tinha me obrigado a presenciar em seu convívio. Meu coração costumava se apertar em vê-lo daquele jeito tão lamentável. Agora era diferente.

— Sem coragem de encarar a sua filha todos esses dias?

Demétrio abaixou os olhos ao me ouvir dizer aquelas palavras. Fez força para empurrar a porta emperrada às suas costas, cambaleou até o interior da sala, estacou ao centro sobre o tapete velho com marcas de bolor no chão e deu uma olhada em mim. Eu não era mais a menininha ingênua que ele havia abandonado à porta de um bordel. Dois anos tinham se passado. Meu corpo havia mudado. Minha mente havia mudado e toda o sofrimento pelo qual eu havia passado nas mãos pérfidas de Hernandes haviam me transformado tanto externa quanto internamente.

— Você... você está bem?

A culpa exalava pelos poros da sua pele suja. Demétrio sabia bem ao que ele havia exposto a sua única filha, a criança inocente a qual ele havia vendido. Não havia qualquer chance de que ele não soubesse tudo pelo qual eu havia passado ao longo daqueles anos. Não havia a menor possibilidade que eu o perdoasse.

— E isso importa? — Eu não tinha mais lágrimas para chorar e apenas o encarei com os braços caídos ao lado do corpo, coluna ereta e a cabeça erguida. — Você levou dois anos para me perguntar se eu estava bem... É um claro sinal de que você não liga a mínima!

Depois daquele primeiro contato após o nosso retorno, a minha relação com o meu pai passou a ser a mais formal possível e nós nunca mais voltamos a ser o que éramos. Desde a minha infância, eu o tinha como o meu herói, um ídolo a ser venerado, mas depois de tudo que ele havia permitido que eu passasse, eu não tinha mais como enxergá-lo como nada além do que o covarde que havia vendido a própria filha em nome de alguns trocados.

Durante a semana, nós quase não nos víamos devido a frequência com que ele continuava prestando os seus serviços como carregador de entorpecentes na via férrea desativada da Boca do Crime e, aos finais de semana, ele passava a maior parte do tempo trabalhando como leão-de-chácara na La Phoenix, a casa noturna que servia de ponto de drogas e onde boa parte do dinheiro da máfia costumava ser lavado.

Assim como antes, nós continuávamos vivendo no limite entre a subsistência e a miséria completa, por isso, logo que me senti forte outra vez para voltar a encarar os homens que haviam me usado todo aquele tempo longe de casa, eu retornei às ruas para traficar, desta vez, ainda mais maltrapilha e ainda mais parecida com um menino.

Depois da maneira asquerosa com que a minha feminilidade havia sido violada, eu passei a querer parecer cada dia menos com uma mulher e escondia as características que faziam de mim o que eu era por natureza. Com os cabelos cortados à tesoura até a nuca, roupas velhas e largas, seios comprimidos dentro da blusa e pelos pelo corpo sem aparar, eu não queria mais chamar a atenção de homens que me viam meramente como um objeto a ser conquistado, usado e abandonado.

Eu tinha criado aquela casca masculina como um meio de me defender e como uma forma de me equiparar a eles em busca da vingança que crescia feito um câncer dentro de mim, me corroendo as entranhas. Depois de anos de abatimento, eu não tinha mais a válvula de escape das minhas lágrimas. Tudo a que eu ainda podia me agarrar era ao meu ódio.

Um ano após o meu retorno do Bairro Burlesco, Jacira me procurou em meu apartamento em frente ao dela no quarto andar e trazia consigo um papel branco dobrado em três partes. Seu rosto irradiava felicidade e ela mal conseguiu conter a euforia até que eu lesse o que estava escrito em letras miúdas naquele impresso.

— Eu estou grávida, Sil. GRÁVIDA!

Eu não sabia mais como demonstrar afeto ou carinho, mas a mulher à minha frente tinha sido uma benção em minha vida em todo aquele tempo de vizinhança. Na falta do amor materno, Jacira tinha suprido com grande talento os anos que aquele tumor no intestino da minha verdadeira mãe havia arrancado de mim ainda na infância, e aquela morena de olhos castanhos escuros, cabelos encaracolados e quadril largo era uma das únicas pessoas que ainda representavam coisas boas na minha existência. A sementinha em seu ventre era pequena demais para saber disso, mas agora, ela também fazia parte de todo o amor que eu sentia por sua mãe.

— Eu não podia estar mais feliz por você, Jaci. Já deu a notícia para o Cleiton?

— Ainda não — respondeu ela com um sorriso largo na cara. —, vim pedir para que você esteja presente no momento em que eu disser a ele. É um momento muito importante e eu quero compartilhar dele com a minha filha adotiva.

Jacira tinha estado comigo em meus momentos mais felizes e também nos mais dramáticos. Ela era a única pessoa no mundo a quem eu havia me aberto sobre os dias terríveis que tinha vivido no interior do Le Plaisir e como eu me sentia desamparada depois que havia sido forçada a encarar a minha nova realidade de vítima de abuso. O mínimo que eu podia oferecer em retribuição a todo seu carinho era a minha presença, e o momento da revelação da sua gravidez para o marido acabou sendo bastante comovente.

Aquela criança ainda nem tinha nascido, mas eu já sentia pena por ela escolher vir ao mundo em um ambiente tão miserável e decadente. De repente, eu queria superar todas aquelas adversidades, e tirar Jacira com o seu bebê daquele cortiço passou a se tornar uma das minhas metas de vida.

A pequena Ana Clara veio ao mundo no final do inverno daquele ano no hospital público Nossa Senhora das Graças, na Zona Oeste da cidade, e eu esperei o parto do corredor da ala cirúrgica, em cólicas. Todos os moradores do conjunto habitacional estavam ansiosos por notícias do lado de fora e eu fiz questão de dar a notícia a eles pessoalmente quando soube.

— Nasceu! É uma menina muito saudável e as duas passam bem.

Apesar das inúmeras quedas de pressão, enjoos além da conta e os inchaços que Jacira havia enfrentado, a gestação de Ana Clara tinha sido bem-sucedida, e foi mesmo um alívio ver que a menina havia nascido perfeita e com saúde após todo o trauma que o casal havia sofrido por conta de seu filho anterior. Três dias após o parto, mãe e filha já haviam retornado para casa e todos no prédio fizeram questão de auxiliar com os cuidados necessários que ambas dispenderiam a partir de então.

Eu estava disposta a doar o meu berço onde entulhava os meus livros para o bebê, mas o próprio Cleiton havia confeccionado um novo com materiais de reciclagem com que trabalhava no ferro-velho. Tatu e Cida tinham se encarregado de doar vários pacotes de fraldas que haviam conseguido por intermédio de conhecidos que traziam o material mais barato do Paraguai e o casal Macedo havia conseguido comprar um carrinho de bebê de segunda mão em uma loja de artigos usados.

Durante todo o tempo em que estava no prédio e que não precisava ir para as ruas fazer o meu serviço de aviãozinho, eu me dispunha a ajudar Jacira com a neném e realmente não era nenhum sacrifício cuidar daquela coisinha gostosa e cheirosa dando-lhe banho, botando para dormir ou simplesmente mimando enquanto a sua mãe descansava.

Com o passar do tempo, o choro de Ana Clara passou a incomodar ainda mais os lojistas vizinhos aos prédios do conjunto e não demorou para que novas ameaças de interdição começassem a ser proferidas. Agora, além da desapropriação do imóvel invadido, corriam boatos de que a prefeitura estaria interessada em transformar a área do projeto de habitação popular em que morávamos num estacionamento e que uma contagem regressiva havia sido acionada até que máquinas de demolição e explosivos estivessem colocando o nosso teto abaixo.

A prefeita em exercício na cidade tinha tolerância zero para causas populares e, enquanto injetava mais de 80% da verba que recebia do Estado na modernização de prédios, museus e pontos comerciais do centro, empurrava os menos favorecidos cada vez mais à margem da sociedade elitista a quem ela gostava de bajular. Vivíamos num país capitalista, porém, eu nunca me acostumava à maneira como as pessoas em situação de rua eram jogadas para escanteio, vistas como excremento e nunca como seres humanos capazes de pensar e sentir por si próprios. Eu queria muito poder mudar aquela realidade, mas não tinha com o que lutar.

Eu não fazia ideia que o destino estava prestes a botar em meu caminho o agente da mudança ao qual eu tanto sonhava em meus anos de luta e, naquela noite, saí de casa sem grandes expectativas a caminho do barzinho onde o meu pai e eu tínhamos uma conta.

O senhor Timóteo era um coroa simpático que "pendurava" grande parte das compras que os moradores do conjunto faziam em seu estabelecimento e, a cada final de mês, costumávamos pagar a dívida que fazíamos com ele. Timóteo era do tipo sossegado bonachão e sempre que eu estava com fome, costumava pegar com ele no balcão um salgado empanado, um enroladinho de salsicha ou mesmo uma esfiha que devorava ali mesmo sem grande cerimônia.

Ele e a esposa estavam mais do que acostumados a atender a mim e a meus amigos sempre com seu bom-humor característico. Os dois nos conheciam por nossos nomes e, sem olhar na caderneta onde anotava as nossas contas, o homem sabia de cabeça o que cada um lhe devia ao fim dos últimos trinta dias corridos.

Naquela noite de temperatura amena, eu havia ido buscar duas cervejas para o meu pai e aproveitei para pegar um saco de amendoim japonês que estava com vontade de comer.

— E o seu Demétrio, menina? Continua exagerando na bebida?

O bar do senhor Timóteo era um dos pontos preferidos de Demétrio no retorno para casa. Era comum que ele pedisse uma ou duas doses junto ao balcão antes de cambalear de volta ao prédio e costumava dizer que era a "saideira" depois de "enxugar" outros bares que frequentava com os colegas de serviço, na Zona Oeste de São Francisco.

— Continua — respondi com uma careta. —, não sei até quando o fígado dele vai aguentar. Logo vai precisar de um novo no ritmo em que anda bebendo!

Timóteo me encarou um segundo com a sobrancelha grossa e grisalha levemente curvada, depois, me passou a sacola com as garrafas e a embalagem de amendoim dentro. O seu tom soou paternal:

— Cuide do seu pai, menina. Ele é o único que você tem. Quando ele se for, vai ser tarde para lamentar.

Aquelas palavras tinham me deixado reflexiva e, depois de me despedir do senhor bigodudo, enfiei o capuz da blusa de volta sobre a cabeça e comecei a caminhar rumo à minha casa.

Estava ficando tarde, mas os sons da metrópole agitada ainda eram bastantes marcantes. A avenida Senador Barbosa Bulhões era a principal via que conectava o centro aos bairros periféricos da cidade e muitos veículos se deslocavam frenéticos à minha frente enquanto eu esperava que o sinal sobre a minha cabeça ficasse verde.

Eu ainda estava absorta em pensamentos lembrando a frase que o velho Timóteo havia me dito à beira do balcão, e os meus olhos se perderam dentro da sacola que carregava em minha mão direita. O ruído do trânsito agora era só mais um plano de fundo para a minha mente intranquila. Havia muita agitação tanto na Barbosa Bulhões quanto na avenida Princesa Isabel que a cruzava e, mesmo com todo aquele barulho de motores em fúria, eu fui capaz de escutar algo que, a princípio, pareceu um farfalhar de asas a uns dez ou talvez vinte metros acima de mim.

A faixa de pedestre onde eu esperava parada para atravessar ficava a menos de cinco metros de um beco entre uma fábrica velha de cortiça e os fundos de um dos edifícios mais caros e altos de todo o centro comercial. A sede da empresa de construção civil e urbana Xeque-Mate era uma pilha imensa de tijolos, aço e vidro que se erguia sobre a cidade quase se embrenhando entre as estrelas do céu e, de vez em quando, eu ficava da minha janela, por entre as ripas de madeira, observando os helicópteros que decolavam e pousavam frequentemente do heliponto particular que o dono do prédio possuía em seu telhado.

Numa das inúmeras reuniões entre os mafiosos da organização para a qual Demétrio e eu trabalhávamos, eu havia visto de longe, certa vez, o homem que era conhecido como o "magnata do petróleo" e que, graças aos seus conchavos políticos, assinava a maior parte das obras recentes que embelezavam a nossa cidade. Edmundo Bispo era um coroa bem-apessoado de olhos frios que estava sempre metido na beca e que não usava nada que custasse menos do que quatro salários mínimos... talvez cinco.

Naquela noite, entretanto, não haviam helicópteros rondando o céu próximo ao heliponto da Xeque-Mate, mas quando a curiosidade me fez olhar sobre os ombros e encarar o véu escuro e poluído de São Francisco, eu vi uma silhueta se movendo rápido rente a parede de vidro do prédio, e ela estava se precipitando no sentido de beijar o chão pavimentado em que eu pisava.

— Não pode ser...

O corpo caía do alto a uma velocidade incrível e o meu coração começou a saltar no peito à medida que eu tinha cada vez mais certeza que se tratava de uma pessoa prestes a tingir o asfalto de vermelho-sangue.

Na esquina em frente ao cruzamento por onde eu havia passado, vinda do bar do Timóteo, havia uma transação comum para aquele horário sendo feita entre um aviãozinho magricela e um playboy dentro de um sedan escuro de placa coberta. Embora não soubesse de quem se tratava, eu sabia reconhecer muito bem aquele tipo de ação na calada da noite, mesmo porque eu mesma estava mais do que acostumada a fazer a mesma coisa desde que não tinha estatura nem para alcançar a janela de um carro.

— O maluco vai...

Era noite e a iluminação àquela altura não era das melhores para que eu pudesse ter certeza, mas acompanhei de longe quando pensei ter visto o suicida tentando se agarrar na beirada do prédio envidraçado lutando para não se esborrachar feito um brinquedo quebrado no chão.

Havia uma espécie de capa ou asa presa às suas costas e, por um momento, eu pensei que se tratava de algum tipo de esportista noturno e não necessariamente alguém tentando colocar um ponto final na própria vida. Praticantes de paraquedismo não eram muito comuns por aquelas bandas, mas eu já tinha visto muita coisa absurda na vida. Aquela seria apenas mais uma.

O som da queda tinha sido bastante nítido e, quando desisti de atravessar a faixa de pedestre para me aproximar do local aonde havia visto a sombra escura do que parecia ser um homem com asas, as minhas pernas ficaram trêmulas e todo tipo de maluquice começou a passar pela minha cabeça. De alienígenas a terroristas paraquedistas, eu estava inclinada a acreditar em qualquer coisa, até que visse com os meus próprios olhos o que, de fato, tinha acontecido.

O beco entre a fábrica e a Xeque-Mate não tinha mais do que dez metros de largura e se aprofundava em mais uns oito metros de escuridão, onde era difícil se enxergar qualquer coisa além de vultos e as sombras projetadas pelos prédios em torno. Assustada e temerosa do que podia encontrar, andei a passos curtos pouco além da parede do edifício e arregalei os olhos quando identifiquei uma figura débil a se mover devagar perto de uma caçamba de lixo.

— Quem está...?

A voz era grave e intercalada por gemidos de dor. Eu ainda estava receosa, mas podia ver com certa nitidez um rapaz bastante magro trajando um tipo de fantasia escura e toda feita de couro. Ele possuía uma espécie de blindagem metálica no peito e usava um capuz esquisito sobre a cabeça como uma máscara em formato de asa de pássaro.

— Por favor... Me ajude. Eu estou caído aqui!

O que quer ele estivesse tentando fazer em cima daquele prédio àquela hora da noite tinha dado incrivelmente errado e, ao me ver se aproximar, começou a suplicar por ajuda. Um dos seus braços estava pendendo para o lado e era bem possível que estivesse fraturado. Após uma tentativa falha de se levantar, o garoto tinha tornado a se sentar no chão imundo do beco e voltou a me pedir ajuda apontando para o pedaço de metal atado ao peito.

— Me ajude a tirar isso... O meu braço... Eu quebrei o meu braço.

Eu já tinha lidado com todo tipo de malandro que havia tentado me tirar vantagem em um número muito grande de situações, mas por alguma razão, eu senti mesmo que aquele garoto magrelo estava precisando da minha ajuda. Embora estivesse pouco à vontade e apenas parcialmente certa de que ele não tentaria nenhuma gracinha quando eu me aproximasse, decidi abaixar as minhas defesas. Assim que coloquei a sacola com as garrafas de cerveja e o amendoim no chão, me acocorei perto dele e tentei ajudá-lo.

— Eu vi você caindo. As suas asas...

Não havia nada de orgânico ou alienígena no material da capa que ele usava e, quando me certifiquei que ele não sairia dali batendo asas e esvoaçando penas sobre mim, eu o auxiliei no intuito de tirar o torso do traje justo que vestia. A peça era inteiriça sem costuras, dobras ou vincos, e era o pedaço de couro mais resistente que eu já tinha visto em minha vida.

— Tente não se mexer.

O braço direito do garoto estava bastante ferido e foi realmente difícil ajudá-lo a tirar aquela blusa de couro do seu tórax. Aliviado após o esforço, mas ainda tendo dificuldades para respirar, ele se livrou também da máscara de pássaro que cobria o seu rosto e vi surgir por baixo dela a imagem de um menino que não devia ser nem dois ou três anos mais novo do que eu.

— Muito... muito obrigado!

O coitado ainda estava em choque após a queda que teria sido fatal para qualquer ser-humano comum e todo o ar de mistério que o envolvia passou a me deixar incrivelmente curiosa a respeito da sua origem e o que diabo, afinal, ele estava tentando fazer.

— Você não está muito bem. Vou te ajudar a chegar a um táxi.

Solícita, eu sugeri que ele apoiasse o braço bom em meu ombro e, lentamente, começamos a caminhar até um ponto de táxi que havia a menos de uma quadra de onde eu tinha visto o aviãozinho fazendo negócio com o playboy no carro preto.

O garoto ao meu lado vestia uma camiseta meio larga por sobre o torso ossudo e a calça justa que fazia par com a blusa também era feita do mesmo material resistente, ornando com um conjunto de coturnos de cadarços soltos. O seu visual era bastante inusitado e me remeteu imediatamente aos personagens de histórias em quadrinhos dos gibis que Cleiton guardava em sua biblioteca particular.

— Acho que você não tem dinheiro aí com você, não é mesmo? — Tínhamos alcançado o ponto de táxi a certo custo. Além do braço, o garoto devia estar sentindo dores no quadril ou na coluna e mal conseguia caminhar sozinho. Um motorista tinha acabado de encostar e eu me propus a acertar a corrida com um trocado que tinha no bolso. — Eu pago o seu táxi. Fica me devendo, menino-pássaro.

Despenteado, com um corte evidente no lábio inferior e o braço troncho, o meu acompanhante parecia que tinha saído de uma guerra, e aquilo chamou a atenção do taxista que quis saber o que tinha acontecido antes de aceitar a corrida. O mal cheiro nas roupas por conta do lixo em que caíra no beco também era um agravante, mas logo o combalido conseguiu se sentar no banco traseiro do carro e eu lhe entreguei a nota de dinheiro que estava guardando para emergências.

— O pássaro noturno aqui despencou do céu, motorista. — Àquela altura dos fatos, eu já havia desarmado totalmente as defesas que atualmente me impediam de chegar a menos de um metro de qualquer ser humano que fosse dotado de um pênis e me senti confiante o bastante para tratar toda a situação com ironia. O motorista me olhou esquisito quando disse aquilo, mas continuei no clima jocoso quando bati na lataria do carro e disse: — Leva o menino de volta para o ninho, motorista. Ele ainda não sabe voar!

Eu o vi me encarar pela janela do banco de trás com olhar assustado. Conforme o carro arrancava, o garoto ainda teve tempo de me pedir que tomasse conta da parte do seu traje que havia ficado jogada no beco atrás da Xeque-Mate e voltei o caminho a pé a fim de honrar o pedido. Eu não sabia explicar o que estava fazendo com que eu ficasse tão eufórica por conta daquele acontecimento que havia me tirado da normalidade e me feito voltar a acreditar em minhas fantasias de infância.

Eu não conhecia aquele garoto, não sabia o seu nome, a sua procedência ou mesmo a razão de ele ter caído quase aos meus pés numa noite qualquer, mas eu sentia em cada um dos meus poros que ele voltaria a cruzar o meu caminho e seria de fundamental importância para a minha vida. Eu não tinha nada mais do que fé, mas por ora, aquilo me bastava[1].



Nota do autor: Toda a saga "Pássaro Noturno" de Rod Rodman é um trabalho de uma vida toda e houve muita dedicação na construção desse universo. Se você chegou até aqui, não esqueça de votar no capítulo e comentar o que está achando da história. A sua opinião é muito importante para o autor. NAMASTE!    

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