Capítulo 5 - Cartas na mesa

EU ERA AGORA UMA PRISIONEIRA cativa dentro do complexo industrial financiado por Toni Maranelli e passava boa parte do tempo sozinha em minha cela totalmente no escuro. Sem relógio, celular, computador ou qualquer outra coisa que me permitisse contar as horas, tudo que me guiava dentro daquele quarto à prova de som eram as batidas na porta para o café da manhã logo cedo e para o jantar ao que me parecia ser o cair da noite.

Todas as manhãs, na bandeja do café, me eram entregues novas fotos de Jacira e a sua filha de quatro anos para que eu não me esquecesse quem realmente estava no controle. Todos os dias, eu tentava planejar uma fuga desesperada daquele lugar que eu nem sabia onde ficava, mas sempre que eu via aquelas fotos e as datas impressas nos cantos inferiores, eu desistia. Aquelas duas representavam tudo que ainda me restava de humanidade e eu não as podia perder.

Duas semanas tinham se passado desde que eu havia sido raptada na casa alugada onde estava morando no bairro da Lapa, Zona Oeste de São Paulo, e a minha rotina dentro daquele complexo era bem cansativa. Depois do café, eu recebia aulas de defesa pessoal e Krav Magá com um instrutor israelense que mal falava português, mas que tinha uma pegada bastante violenta. De tarde, após o almoço, era hora de aprender inglês e espanhol com uma professora de línguas chamada Safira e, depois disso, eu era colocada em uma sala diante de vários monitores para aprender sobre sistemas de computador com um dos especialistas da Die Maschine.

Toni Maranelli estava investindo pesado para que eu me tornasse a sua principal agente operativa de campo e, enquanto os cientistas nerds do grupo alemão a qual ele financiava tentavam desvendar os segredos do meu traje de combate nos laboratórios, ele queria que eu treinasse a minha mente aprendendo todas aquelas coisas que fariam de mim a espiã perfeita, o que eu só tinha a agradecer.

Um dia, eu almejava me livrar das amarras que me prendiam a ele e, então, seria a minha vez de usar todos aqueles conhecimentos para acabar com a sua raça. Maranelli ainda não sabia, mas eu mesma lhe serviria a taça com o seu próprio veneno.

Um mês de treinamento depois, eu fui levada para uma sala de reunião num dos andares mais altos do prédio principal onde ficava alojada e, quando cheguei, toda a corja já estava à minha espera. Sentados ao redor de uma mesa arredondada, além do próprio Maranelli, estavam também Peter Tóth, a sua assistente Noele Petraglia, o cientista Wagner Heister e mais uma meia dúzia de pessoas que eu não fazia ideia quem eram.

Ao fundo da sala, às costas de Maranelli, estava fixado um telão conectado a um computador, e um dos capangas engravatados do capo estava no comando dele. Fui convidada a assumir um dos assentos da "távola redonda do mal" e aquilo fez com que eu me lembrasse das reuniões de fundo de quintal da organização criminosa de São Francisco d'Oeste que eu participava há alguns anos com o meu pai. As coisas tinham evoluído um bocado.

— Como todos bem sabem, o milionário e lucrativo comércio de narcóticos a que eu tinha acesso pleno na cidade de São Francisco d'Oeste foi tirado de mim há pouco mais de um ano. Atualmente, a Interpol tem em mãos informações precisas que ligam a mim e a minha família ao narcotráfico, o que deixa as minhas mãos atadas quanto ao futuro dos negócios que eu tão bem comandava daquele território.

Maranelli fez um gesto mantendo os punhos em paralelo frente ao torso avantajado. Os seus olhos percorreram os presentes em torno da mesa e se fixaram nos meus. Se eu estivesse com vontade, teria me mijado toda de medo naquele momento.

— Para manter essa operação a que todos vocês fazem parte, tenho dispendido parte do meu patrimônio pessoal e pretendo gastar cada centavo desse dinheiro se isso garantir que eu retome os negócios de família iniciados por meu pai no final da década de sessenta.

Pouco se sabia sobre a vida íntima de Maranelli. Além da esposa Lúcia, que era filha do antigo juiz da comarca de São Francisco d'Oeste, quase nada se tinha de informação a respeito dos seus filhos, irmãos ou parentes mais próximos. Tudo isso era mantido em sigilo. A única coisa que eu sabia era que quando ele se referia a "família", ele não estava falando de entes queridos e sim dos seus parceiros mafiosos, aqueles que o ajudavam a se manter no topo da cadeia alimentar do crime.

— Para retomar a minha posição à frente dos negócios já citados em São Francisco d'Oeste, atualmente, nós teremos dois inimigos a derrotar — E ele se voltou para o capanga de cabeça raspada no comando do computador. —, o Francesco vai nos mostrar.

Eu me posicionei melhor no assento confortável à esquerda da mesa e vi surgir no telão às costas de Maranelli duas imagens paralelas em alta definição. A primeira mostrava o rosto ovalado e carrancudo de Gerônimo "Belo" Falcão, o homem que havia tomado para si o trono de capo da máfia local. A segunda, mostrava um prédio envidraçado alto e muito bem localizado bem ao centro da minha cidade natal. A antiga sede da Xeque-Mate. Todos se empertigaram a encarar as duas fotos na tela.

— O sujeito à esquerda do vídeo é Gerônimo Mattia Falcão, também conhecido como "Belo" e o número dois da minha antiga organização. — Havia um tom de amargura na voz rouca do capo e se percebia o quanto ele estava infeliz em dizer aquelas palavras. — Foi colocado nessa posição por mim mesmo há mais de vinte anos e, tão logo fui obrigado a me retirar da cidade acusado de crimes que, até então, tinham passado incólumes pela justiça, o stronzo[1] me apunhalou pelas costas e assumiu parte do território que eu tão bem dominava. Boa parte dos homens que prestavam serviço a mim acabaram se aliando a Falcão e a outra boa parte acabou caçada pelas ruas em uma guerra de gangues que se alastrou recentemente pelos bairros mais carentes de São Francisco.

Um dos homens que eu não conhecia em torno da mesa se voltou para a imagem do edifício da empresa de construção urbana Xeque-Mate e usou um tom de curiosidade para indagar ao homem sentado na maior cadeira da sala:

— A Xeque-Mate é uma notória empresa que presta serviços de tecnologia avançada na construção de pontes, viadutos e obras de engenharia em geral. O que exatamente ela tem a ver com os negócios que o senhor tocava em São Francisco d'Oeste?

Maranelli fez um sinal para que Francesco avançasse para uma segunda imagem no telão e, em seguida, todos nós vimos surgir o rosto sisudo e os olhos frios de Edmundo Bispo, o CEO do grupo Xeque-Mate e o principal articulador do grupo megalomaníaco conhecido como a Corporação.

— Até pouco tempo, o grupo Xeque-Mate era chefiado por este homem — E os dedos de linguiça apontaram para a tela atrás dele. —, o senhor Edmundo Bispo. Magnata do petróleo, engenheiro petroquímico e uma das mentes mais brilhantes a que tive o prazer de conhecer, o senhor Bispo tinha um plano muito bem arquitetado de colapsar as fontes energéticas do país para que ele próprio oferecesse os serviços da sua empresa como solução. Em comum acordo com a alta cúpula da cidade de São Francisco e pessoas muito poderosas espalhadas em todo o país, Bispo tinha planos de botar em funcionamento três grandes termelétricas a base do que ele chamava de "motor de combustão interna", o que iria colocar o governo aos seus pés e o enriquecer a níveis inimagináveis.

Graças ao meu trabalho e aos meus aliados em São Francisco d'Oeste, todas aquelas informações que Maranelli estava passando durante a reunião agora eram públicas e aquele foi um escândalo que parou o país por um bom tempo. Todos os principais meios de comunicação tinham dedicado vários meses de trabalho para escarafunchar o passado de Edmundo Bispo e das pessoas ligadas a ele... Mas depois disso, tudo tinha se dissipado feito um pum ao ar livre. Após o burburinho inicial, mais ninguém se lembrava do assunto e todas os envolvidos que não havíamos conseguido enquadrar já tinham voltado às suas velhas práticas criminosas de sempre. Era assim que a banda tocava no Brasil e não havia o que se fazer.

— Mas atualmente, a Xeque-Mate não tem mais qualquer relevância no mundo dos negócios — insistiu o homem que interpelara Maranelli, um tipo baixinho de cabelo cortado à máquina e nariz de porco. —, após a morte de Bispo e a explanação dos seus planos maquiavélicos, as ações da empresa despencaram e a grande maioria das negociações do grupo com outras companhias foram desfeitas.

Houve um novo aceno e, então, vimos surgir no telão um outro rosto. Era um rapaz atraente de cabelos castanhos claros, rosto jovem e belos olhos verdes por trás das lentes de um par de óculos de armação fina. Aguardei para saber quem era o tipão.

— O ragazzo que podem ver nessa imagem se chama Richard Bispo, o filho mais velho de Edmundo. Assim como o pai, é formado em engenharia petroquímica e possui um MBA em gestão empresarial. É o atual administrador da empresa de construção Constrular e um dos acionistas da Xeque-Mate. Como todos nessa sala podem imaginar, é a pessoa que atualmente puxa as cordas dos fantoccios e assumiu o lugar do pai à frente de todas as antigas negociações, incluindo as contraventoras.

Eu estava curiosa para saber até onde Maranelli pretendia escalar para desbaratar aquele castelo de cartas que havia sido montado desde a sua saída de São Francisco d'Oeste, e continuei ouvindo o seu discurso. Naquele momento, dava um dente de trás por um balde de pipoca.

— A interrupção das transações comerciais envolvendo o narcotráfico não afetaram só a mim, como vocês devem supor. Toda a antiga organização encabeçada por Edmundo Bispo também foi afetada após a sua morte, principalmente, quando Gerônimo Falcão resolveu abocanhar sozinho a fatia do bolo que antes eu dividia com os meus associados. A minha saída do jogo fez com que todos eles começassem a se digladiar para ver com quem ficaria o faturamento alto que o comércio de entorpecentes rendia e, atualmente, existem dois grandes grupos se esfaqueando em São Francisco d'Oeste; o de Falcão e os antigos aliados de Edmundo Bispo.

Havia um sujeito esquálido de cabelos loiros sentado entre Tóth e o baixinho com nariz de porco. Após pigarrear, ele ergueu o tom de voz quase nulo e fez uma pergunta a Maranelli:

— Além de Richard Bispo, quem mais está à frente do antigo grupo a que o senhor fazia parte?

Francesco ficou aguardando nova ordem e, então, botou na tela um conjunto de imagens muito bem alinhadas em quadrantes. Reconheci todos os rostos que surgiram ampliados de fotos públicas tiradas de jornal e cheguei a sentir náuseas ao me lembrar da participação de cada um deles no esquema que eu havia ajudado a quebrar há algum tempo.

— A antiga Corporação, como era denominada a cúpula ao qual eu fazia parte, era formada por pessoas de grande influência na cidade e, muitas dessas mentes brilhantes ainda agem livremente graças à incompetência de quem tentou derrubá-los da primeira vez.

Senti que aquela era uma alfinetada direcionada a mim e ela realmente me incomodou.

— A mulher no alto do vídeo, à esquerda, se chama Manoela Santinni. Junto do irmão Nicola, comanda mais de 80% dos meios de comunicação de São Francisco d'Oeste e regiões próximas. Ergue e derruba do pedestal quem bem entende ante a opinião pública e mantém os antolhos devidamente posicionados em seus telespectadores e leitores para que eles nada saibam além do que é necessário.

Tóth emitiu um risinho e comentou em voz baixa:

— Nada diferente do que grandes corporações ligadas à imprensa fazem mundo afora...

— A outra mulher no quadro superior, à direita, se chama Renata Leme. Foi a prefeita da cidade nos últimos oito anos e manteve todo o poder que o seu cargo lhe proporcionava à disposição da Corporação pelo tempo em que se sentou na cadeira principal da prefeitura. No último ano, em eleição direta, foi substituída pelo seu, então, vice-prefeito, Josleno Cavalcante, um boneco de ventríloquo que está no cargo apenas para continuar mantendo Leme à frente dos negócios escusos conduzidos pela prefeitura. O homem-forte da ex-prefeita é na verdade o presidente da câmara dos vereadores, o senhor Nazareno Fernandes. É ele que faz todas as articulações em nome da nova Corporação e em quem realmente devemos prestar a atenção.

Francesco inseriu na tela, além das fotos do prefeito Josleno e do presidente da câmara dos vereadores, mais duas imagens a quem Maranelli explicou quem eram.

— Os dois últimos homens nas imagens inferiores são Eliseu Franco Neto e Romero Assis, respectivamente o atual magistrado e o ex-delegado de polícia da cidade. Franco Neto substituiu Sérgio Alcântara, meu sogro e homem de confiança dentro do Fórum de Justiça da comarca, e o Assis, foi exonerado do seu cargo na mesma época em que eu fui expulso de São Francisco. Atualmente, ele é o representante da Corporação na comunidade conhecida como Boa Vista, num dos bairros mais poveros dalla città e chefia grupos paramilitares que exercem grande influência nos miserabili que residem nesse local.

Me doía saber que Jacira, Ana Clara e os outros antigos moradores do conjunto habitacional onde eu residia desde os meus quatro anos de idade estavam hoje sob o jugo de pessoas horríveis como Romero Assis, um dos homens que haviam ordenado a execução do meu pai. Eu tinha gana de esbofetear aquele crápula com minhas próprias mãos, mas todas as vezes que imaginava as barbaridades que ele ou seus homens podiam fazer com a minha família à sua mercê, eu me via paralisada de medo e me sentindo a mais impotente das criaturas.

— O último homem em nossa lista de alvos é esse — disse Maranelli, apontando mais uma vez para o telão. —, Carlos Eduardo Castellini, o CEO da Castle Industrial, empresa de tecnologia com sede em São Francisco e cuja expertise proporcionou a mão-de-obra necessária para que Edmundo Bispo modernizasse o centro empresarial da cidade e garantisse a visão futurista que tanto ele almejava exibir ao público em suas propagandas.

Uma manchete de jornal encimando a imagem de um presídio em chamas substituiu a foto de Castellini no telão. Todos se mexeram nas cadeiras, desconfortáveis.

— Há alguns meses, depois de encarcerado por sua participação direta nos planos de Edmundo Bispo em colapsar as matrizes energéticas do país, Castellini encontrou o seu destino final durante uma rebelião ocorrida dentro do presídio em que aguardava a redução de pena. Segundo informes, uma guerra de facções eclodiu nos corredores da prisão vitimando, além de Carlos, dezenas de homens, muitos deles leais a mim.

Outra imagem substituiu a da manchete sobre o massacre na penitenciária de Marechal LaRocca, a cidade a Oeste de São Francisco. Um sujeito quase completamente calvo e usando um cavanhaque fino no rosto olhava para o horizonte quase em close.

— O homem que veem nessa imagem é Marcos Eiras, antigo braço-direito de Carlos Castellini à frente da Castle Industrial e o atual CEO da empresa. É ele quem hoje coordena todos os projetos tecnológicos do grupo e quem responde pelas atividades praticadas até que o filho único do antigo presidente tenha idade suficiente para fazê-lo por conta própria.

Naquele momento, o doutor Heister se acomodou melhor em seu assento e botou os cotovelos sobre a mesa com os dedos entrelaçados. Parecia particularmente interessado no assunto que seria tratado a seguir e os seus olhos nem piscavam em direção ao telão.

— Durante as incursões de Edmundo Bispo com a sua usina termelétrica, a Castle Industrial prestou suporte técnico tanto de maquinário quanto de segurança ao magnata, e foram usados para tanto um traje experimental criado seguindo especificações de design de uma multinacional japonesa chamada Hamamatsu Corporation.

Surgiram então à nossa frente imagens um tanto quanto fora de foco do que pareciam ser homens utilizando um tipo de armadura metálica. As fotos haviam sido capturadas de câmeras de vigilância posicionadas no interior do complexo esportivo onde a Corporação mantinha a sua base de operações. Eu mesma havia visitado o subsolo onde os cabeças da organização costumavam se reunir e tinha visto com os meus próprios olhos vários daqueles trajes de combate rubros que Maranelli expunha no telão.

— Qual era a finalidade desses trajes experimentais? — Quis saber o sujeito loiro magrelo ao lado do engenheiro Tóth.

— A princípio, Bispo se utilizou de homens de confiança com os tais uniformes como a sua guarda armada pessoal. Ele denominou essa guarda de Brigada de Elite e vários desses soldados foram presos quando a usina termelétrica acabou destruída após uma explosão. Parte do equipamento criado nos laboratórios da Castle com a tecnologia japonesa ficou sob o domínio da polícia e o restante desapareceu.

— Mas, então, há uma grande possibilidade de botarmos as mãos nesse kriegerisches wunder[2]!

Heister, que até então se mantinha calado, parecia agora um esfomeado diante do seu prato preferido. O homem com o sotaque alemão estava de olhos arregalados encarando a imagem desfocada de dois soldados da Brigada de Elite na tela e chegava a salivar.

— Infelizmente, mio amico, a polícia de São Francisco já não é mais tão corrupta como antes. O novo delegado da cidade sofre de honestidade intrínseca e, até que os homens infiltrados em suas fileiras consigam corroer todo o sistema de dentro para fora, ainda leva um tempo. — Os olhos de Maranelli se voltaram para a minha direção e ele fez com que todos me olhassem também. — É para isso que estamos treinando a nossa bambina Silmara. É ela quem vai nos devolver o controle sobre São Francisco d'Oeste e é para ela que devemos direcionar todos os nossos esforços.

Eu fiquei estática por um tempo e o meu rosto se enrubesceu ao notar que todos estavam me encarando como que prontos a me devorar em um banquete. Eu tinha assistido a toda a apresentação de Maranelli sabendo que boa parte das ações para a derrocada da Corporação tinham sido praticadas por mim e me sentia como uma verdadeira estranha no ninho em meio a todos aqueles maníacos.

Eu não queria fazer parte daquilo, e ajudar o velho capo a recuperar o seu status junto à cidade onde eu havia crescido significava ir contra todos os princípios morais que eu tão cuidadosamente havia gerido dentro de mim nos últimos anos. Por outro lado, saber que Gerônimo Falcão era o novo dono do pedaço me fazia querer vomitar e eu precisava fazer alguma coisa para arrancá-lo de lá.

— Fale-nos um pouco sobre os cuccioli dall'inferno[3] a quem você serviu há alguns anos, mia cara. Fale-nos um pouco sobre o Pássaro Noturno.

Eu ainda estava sem palavras quando outra imagem desfocada surgiu no telão, desta vez, mostrando uma silhueta esguia saltando de um prédio a outro da cidade. Aquela era uma das únicas imagens que havia sido publicada na imprensa do vigilante heroico conhecido como Pássaro Noturno e, até então, quase ninguém podia sequer provar que ele era real... exceto eu mesma.

— Sem comentários.

Minha garganta secava todas as vezes que eu sequer pensava em trair a confiança do Pássaro Noturno contando cada um dos segredos que tão generosamente ele havia compartilhado comigo nos últimos anos. O meu traje, os meus equipamentos e até a minha vida eu devia ao garoto por trás da fantasia de pássaro. Eu não podia simplesmente trai-lo o entregando a um dos seus piores inimigos. No entanto, Maranelli sabia ser bastante persuasivo.

Imagens de Jacira e Ana Clara em sua vida cotidiana num dos barracos da Comunidade da Boa Vista começaram a ser executadas no telão. Tudo para me apavorar. Tudo para soltar a minha língua.

— Soubemos recentemente, por fonte segura, que a sua mãe postiça e a sua adorável filhinha foram resgatadas dos escombros do seu barraco por uma figura trajando negro que surgiu feito um anjo salvador enquanto o morro todo deslizava sob forte chuva.

Por um momento, achei que Maranelli estivesse blefando e, então, a imagem do barraco de Jacira em ruínas me tirou da minha inércia.

— Elas... elas estão bem?

Eu tinha me mantido afastada da cidade por motivos de segurança e havia alguns meses que não me comunicava com Jacira ou os outros amigos que mantinha na favela. Eu estava aterrorizada.

— Ao que constam as informações das nossas fontes, o seu amigo snello as conseguiu salvar por pouco do desabamento. Por que não nos conta mais sobre o grande articulador por trás da derrocada da Corporação, pequena?

Antes que eu pudesse impedir, os meus olhos estavam cheios de lágrimas e eu fui obrigada a escondê-los conforme comecei a dizer as primeiras palavras. Mesmo sabendo que Maranelli tinha a minha família em suas mãos, tive o cuidado de não revelar nada que fosse prejudicial ao Pássaro Noturno ou aos seus dois grandes amigos, o Thunderwing e o Espião Negro. Me sentia andando sobre o fio de uma navalha e qualquer passo em falso poderia ser fatal naquela situação.

— ...depois que eu fui expulsa do conjunto habitacional onde morava pela polícia, foi o Pássaro Noturno quem me estendeu a mão e me ajudou. Ele me deu o traje, me deu os armamentos e me devolveu o sentido de viver. Eu estava quebrada depois que perdi o meu lar e os meus familiares. Foi ele quem me colocou de volta no prumo.

Havia desconfiança nos rostos das pessoas ao meu redor. Tóth encarou Noele e Heister franziu o cenho antes de me indagar:

— E esse bondoso samariter lhe estendeu a mão por qual motivo? O que ele devia a você?

Fui enfática:

— A vida.

Todos eles pareceram espantados. Eu continuei:

— Dois anos antes, eu o havia encontrado caído quase todo quebrado num beco perto da minha casa e eu o ajudei a chegar a um hospital. Depois disso, ele se viu em dívida comigo e quis retribuir quando me viu em maus lençóis.

— Então você o viu sem capuz?

Noele me encarava agora com os seus olhos pregados em meu rosto. Eu era uma boa mentirosa e consegui dizer aquilo sem nem pestanejar:

— Não. Ele não me mostrou o rosto em nenhum momento.

Heister tinha um interesse obsessivo pelos trajes que usávamos e perguntou:

— E vocês mantém contato? Você conseguiria trazer até nós uma amostra da sua fantasia de pássaro?

Encurtei o interrogatório e cruzei os braços antes de dizer, direta:

— Eu não o vejo desde que roubei a grana da Corporação e fugi da cidade.

Eu não tinha dito nada além do que podia para a corja ao meu redor, mas Maranelli pareceu satisfeito por ora. Algum tempo depois, ele pediu para que o homem de cabelos loiros na roda explanasse na frente de todos a primeira missão a qual eu seria responsável em executar e eu fui obrigada a tomar nota dos detalhes, uma vez que teria menos de dois dias para me preparar.

Embora quisesse me concentrar no que era dito naquela sala, eu só conseguia pensar em Jacira e em Ana Clara, bem como em todo o sofrimento pelo qual as coitadas deviam estar passando longe de mim.

Eu devia tê-las tirado daquele lugar enquanto podia.

Os meus pensamentos me torturavam e, quando finalmente comecei a ser levada de volta à minha cela, implorei para que os guardas que me acompanhavam me informassem de como elas estavam.

— Amanhã cedo você vai saber. Agora cala a boca e entra no quarto!

Aquela noite eu chorei baixinho encolhida em minha cama e, conforme os meus olhos tentavam se acostumar à falta completa de iluminação em meu cativeiro, eu só conseguia enxergar aquele barraco destruído na encosta do morro e os rostos suplicantes de Jacira e sua filha em minha mente.

Em minhas fantasias de menina, ainda na época de inocência, eu às vezes me imaginava com superpoderes como os personagens em quadrinhos dos gibis velhos que Cleiton mantinha em sua biblioteca do sexto andar do nosso prédio. Por mais que eu soubesse que aquelas coisas não eram de verdade e que pessoas comuns não podiam soltar raios pelas mãos ou pelos olhos, eu continuava me imaginando vestindo uma roupa colorida, voando e usando os meus dons especiais para fazer com que os homens maus pagassem por seus erros.

Naquela noite dentro da minha cela, eu desejei ter superpoderes e o meu peito ardeu com o anseio vingativo que crescia cada vez mais dentro de mim.


[1] Stronzo, do italiano quer dizer "idiota"

[2] Milagre bélico

[3] Cães do inferno

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top