Capítulo 3 - A chama da vingança
APÓS O MEU RAPTO naquela noite de sexta-feira, os homens de Toni Maranelli me mantiveram em cárcere por dois dias. Eu estava em um quarto pequeno, sem iluminação e à prova de som. Tudo que tinha ao meu dispor era uma cama de solteiro de colchão duro, além de um balde para que fizesse as minhas necessidades fisiológicas.
Um capuz cobria o meu rosto ao longo de todo o trajeto entre o escritório e a minha cela, por isso, tinha sido impossível deduzir aonde eu estava de fato. Nos tempos em que havia servido de "mula" para as entregas da organização e que participava de enxerida das reuniões do conselho de Maranelli, tinha ouvido falar de vários imóveis operacionais que o velho gordo possuía espalhados por São Paulo, e aquele em que eu estava poderia ser qualquer um deles.
Eu não fazia ideia como faria para escapar dali.
No terceiro dia de cárcere, alguém apareceu à porta e a luz natural que invadiu o quarto quase me cegou. Eu estava faminta, com sede e ainda cheia de dores por conta da surra que havia levado dos guardas de Maranelli. Quase nem tinha forças para me levantar da cama.
— Vem, anda. Tem alguém querendo falar contigo.
O homem parado sob o batente não era ninguém que eu já tivesse visto antes, mas não levava jeito de segurança ou guarda-costas. Era magro, tinha rosto fino, cabelos penteados com gel, usava um jaleco branco sobre roupas amarfanhadas e cheirava a loção pós-barba de menta.
— Eu... eu estou morrendo de fome...
Pouco comovido, o sujeito apenas se virou de lado esperando que eu me levantasse e saísse pelo caminho que ele abria. Eu fiz o que ele queria, mas instantaneamente a minha mente passou a trabalhar num modo de dominar o magrelo com o pouco que sabia de técnicas de combate.
Em meus melhores dias, eu chutaria essa bunda ossuda sem nem me despentear, pensei cheia de arrogância.
A partir daquilo, eu não demorei a perceber que estava sonhando alto. As minhas pretensões de escapar se esvaíram completamente quando percebi que, do lado de fora do corredor, haviam outros três homens à minha espera, todos com mais de dois metros de altura, fortes e armados.
Por que eu achei que seria tão fácil? Eu estava frustrada.
— Eu sou o um dos engenheiros técnicos da Die Maschine. Os meus superiores têm algumas perguntas a lhe fazer a respeito do seu traje de combate.
Com um olhar, o tal engenheiro pediu que eu o seguisse pelo corredor amplo e largo que se abria à nossa frente. Eu não estava algemada, mas certamente não representava perigo algum para nenhum dos homens que silenciosamente me conduziam para outra parte do que me pareceu, à primeira vista, um complexo tecnológico avançado.
Eu estava privada de sapatos, sem o agasalho que trajava no momento do rapto e sem qualquer objeto que pudesse usar como arma nos bolsos da calça de moletom que vestia. Eles tinham a noção exata que eu não representava nenhum tipo de ameaça naquele momento e resolveram baixar a guarda.
— Você tem em mãos um modelo de vestuário tático praticamente perfeito — disse por cima do ombro o engenheiro, parecendo entusiasmado. —, onde foi que conseguiu algo do gênero?
Estávamos agora perto da entrada de um elevador onde mais dois guardas vestindo terno e gravata faziam a segurança. Fitei o sujeito à minha frente, torci os lábios o mais próximo de um sorriso que conseguia naquelas condições e fui sarcástica:
— Ganhei de presente do Papai Noel.
Ele bufou e continuou a passos ágeis em direção à cabina que se abriu quando nos aproximamos. O brutamontes atrás de mim me empurrou sem qualquer delicadeza para dentro do elevador e, logo em seguida, começamos a subir os cinco juntos rumo ao quinto andar.
Assim que as portas automáticas se abriram novamente, fui conduzida ao interior do que parecia um laboratório de ficção científica e os meus olhos se encheram com a presença de inúmeras pessoas que andavam de um canto a outro do ambiente de aproximadamente cem metros quadrados em que havíamos sido levados.
Sons difusos de maquinários em funcionamento, o rugido de motores acionados, o trovejar de braços hidráulicos se movimentando sobre as nossas cabeças e o estampido de martelos pneumáticos se confundiam com o barulho de maçaricos fundindo metal em temperatura elevadíssima. Eu estava em um tipo de oficina experimental, mas não fazia ideia do porquê.
— Venha por aqui. O doutor Heister quer lhe falar.
Enquanto o engenheiro magro mostrava o caminho até uma subdivisão que passava por uma porta larga além da oficina, um dos guardas apertou o meu braço e senti a circulação sanguínea ser interrompida por um instante. Tão logo deixamos o salão anterior e o barulho das máquinas em ação se tornaram menos incômodos, enxerguei um trio de homens a analisarem amostras de um tipo de tecido sobre uma mesa e uma moça mais ou menos com o mesmo tipo físico que o meu ao fundo do local trajada com o meu uniforme de Ferina.
— Ei! O que essa vaca está fazendo vestida com o meu traje?
Eu dei um salto para frente, mas, logo em seguida, fui empurrada por um dos guardas e atirada ao chão. Um dos homens parado em frente à mesa se virou em minha direção e, com um gesto, mandou que me levantassem novamente. O meu ombro quase foi deslocado com o movimento brusco. Um dos seguranças me ergueu como se eu não pesasse nada.
— Devo presumir que você seja a dona da roupa tática que a minha assistente Noele está vestindo?
O sujeito a me perguntar era do tipo esguio e não possuía um fio sequer de cabelo na cabeça ovalada. Tinha brilhantes olhos azuis, barba castanha espessa no rosto e uma cicatriz de uns cinco centímetros de comprimento que interrompia uma das suas sobrancelhas chegando até o supercílio esquerdo.
— Eu sou a dona sim, agora manda essa fulana devolver o meu uniforme!
O tal Heister curvou os lábios num sorriso cínico e me encarou em silêncio. A mulher de cabelos pretos mal se movia a uns oito metros de distância e ficou aguardando até que o homem no comando daquele laboratório a mandasse se retirar. Após um gesto do careca, Noele caminhou lentamente até uma porta que dava para um vestiário e sumiu de vista. O engenheiro que havia me acompanhado até aquele andar fez um sinal para que os guardas também se retirassem e, em seguida, ele segurou o meu ombro.
— Não queremos roubar o seu traje, Silmara. A nossa divisão de ciências avançadas está interessada apenas em estudar a vestimenta, entender melhor a sua origem e a sua composição.
Eles ficariam abismados em saber que nem mesmo eu entendia como aquele negócio era capaz de fazer as coisas que fazia, mas preferi manter o mistério.
— Um mágico nunca revela o segredo dos seus truques.
Eu estava em larga desvantagem em meio àquelas pessoas; desarmada e praticamente indefesa. Tudo que eu ainda tinha para usar era o meu sarcasmo. Era uma atitude ousada, mas eu não podia entregar os pontos tão facilmente. Queria pelo menos irritá-los.
— A minha equipe e eu analisamos o seu traje nos últimos dois dias — disse o doutor Heister com a sua voz anasalada e com um leve sotaque estrangeiro em seu português errático. —, mas não conseguimos determinar como exatamente ele funciona.
Eu estava em pé diante da mesa a menos de um metro dela e agora podia ver com mais clareza que o tecido que eles analisavam anteriormente era um pedaço de uns três centímetros quadrados cortado do torso do meu traje. Estendido em uma espécie de cabeça de manequim logo à frente, estava o meu capuz sem as lentes protetoras e com os circuitos expostos pela fenda dos olhos.
Ai, meu traje! Eles ferraram todo o meu traje!
— Ouvimos relatos interessantes de alguns soldados que estiveram em campo numa missão desmantelada por você e outros três jovens não-identificados, senhorita Santoro. — O engenheiro de cabelo penteado para trás agora me cercava. — Segundo o que eles disseram, o seu traje é capaz de realizar feitos fantásticos como gerar energia elétrica através de manoplas especiais e de se camuflar de maneira que nem os mais avançados projetos militares modernos são capazes de fazer em pleno século XXI. Ficamos bastante curiosos quanto à origem desse belíssimo uniforme tático, e gostaríamos que nos revelasse os segredos que nem mesmo os nossos estudos mais minuciosos conseguiram desvendar.
Eu não tinha como responder àquelas perguntas sem revelar a identidade da pessoa que havia me dado o traje de presente ou sem que eu acabasse entregando completamente os segredos que ela havia me confiado. Eu sabia que uma recusa em colaborar com aqueles homens poderia significar horas infindáveis de maus tratos, tortura e até mesmo a minha morte, mas precisava me manter leal a quem havia me ajudado no passado.
— Sei tanto quanto vocês sobre o uniforme — disse, com tom confiante. —, tudo que posso dizer é que ele foi projetado especificamente para mim e só eu posso usá-lo.
Heister trocou um olhar com o outro engenheiro e, em seguida, eles se comunicaram.
— Isso explica porque a Noele não conseguiu ativar nenhuma das ferramentas da roupa.
Nem mesmo eu tinha certeza que o traje da Ferina só funcionava comigo, mas aquele tinha sido um belo palpite que o doutor careca havia me confirmado. Nenhuma outra pessoa jamais havia estado dentro daquela veste de couro preto dotada de circuitos elétricos inteligentes, mas eu tinha uma leve impressão de que ninguém mais seria capaz de acionar as suas funções especiais além de mim.
No momento seguinte, a assistente de cabelos escuros surgiu da sala ao fundo e ela trazia em mãos a minha roupa. O meu coração saltou dentro do peito.
— Queremos entender melhor como funciona o seu uniforme, senhorita Santoro. Por que não nos faz uma demonstração controlada para que possamos estudá-lo e, quem sabe, propor algumas melhorias?
Noele se aproximou de nós três e estendeu o braço em minha direção. O meu traje estava agora a menos de um metro de distância, ao alcance das minhas mãos.
— Vocês querem que eu vista a roupa?
Os olhos de Heister brilharam e as rugas evidentes em torno dos olhos se tornaram ainda mais visíveis conforme a sua expressão, até então dócil, se tornou dura e carrancuda.
— Não pense que somos um bando de amadores idiotas, senhorita Santoro. — disse ele com um tom monocórdico. — Sabemos bem o que está se passando pela sua cabeça e devo salientar que, mesmo com o seu traje em modo furtivo, você não conseguiria dar mais do que dez passos além desse laboratório.
Com um gesto, o doutor mandou que dois dos seus cientistas selassem a entrada pela qual havíamos chegado ali e duas portas horizontais automáticas se fecharam instantaneamente depois disso, nos trancando.
— Como eu disse, queremos uma demonstração controlada. O senhor Maranelli está patrocinando os nossos serviços e o homem não quer que você acabe morta acidentalmente por um deslize da nossa parte.
Ao dizer aquilo, o engenheiro indicou a porta que acabara de se fechar a oito metros atrás de nós e me mostrou os três homens armados com fuzis que montavam guarda do lado de dentro. Parecendo se deliciar com a minha expressão assustada, ele abriu um sorriso e me repassou o traje através das mãos da assistente.
— A Noele vai acompanhá-la até o vestiário. — disse Heister de maneira incisiva. — Já mandei que os meus técnicos recomponham as peças sobressalentes do capuz para que complete o seu conjunto. Vista-se e retorne para nos fazer uma demonstração do que o seu traje é capaz.
Eu só podia obedecer.
Depois daquele ultimato e sabendo que eu não teria chances de escapar do prédio mesmo empregando as funções furtivas do traje da Ferina, eu passei mais de uma hora mostrando ao doutor e ao engenheiro tudo que tinha sido ensinada a fazer vestida com ele. As minhas digitais acionavam os circuitos elétricos internos das luvas e, até mesmo a minha assinatura única de calor corporal era identificada pelo tecido, o que facilitava o manejo dos sistemas de armas.
As manoplas metálicas em formato de socos-ingleses entre os meus dedos geravam uma carga relativa de energia elétrica quando acionadas, e era a intensidade dos meus golpes que estipulava o grau de dano que causava. De atordoamento a queimaduras de segundo grau, eu podia até mesmo derrubar um oponente com o dobro da minha massa física com apenas um soco e, como eles queriam, eu demonstrei a capacidade dos meus brass knuckles atingindo uma das paredes ao fundo do laboratório, causando uma pequena pane elétrica que fez as luzes do ambiente piscarem.
— Foi mal!
Ergui as mãos ao me desculpar e vi os canos dos fuzis dos soldados à porta apontados para a minha cabeça por um momento. Os meus joelhos tremeram.
Àquela altura dos acontecimentos, a bateria interna que alimentava o traje estava praticamente esgotada, mas consegui acionar por dois minutos a camuflagem total da vestimenta. Eu tinha me tornado invisível aos olhos de Heister, de Noele, dos dois cientistas que faziam anotações numa prancheta, dos três soldados à porta e do engenheiro engomadinho por cento e vinte segundos. Aquilo me deixou em êxtase.
Embora eu quisesse correr até a porta e acionar os controles que a mantinham fechada, eu sabia que não podia manter a invisibilidade por muito mais tempo, e mal tinha energia para usar os socos-ingleses elétricos.
— Impressionante!
Heister e o engenheiro estavam de olhos arregalados quando voltei a me tornar visível com faíscas elétricas fulgindo da superfície do meu traje. Os dois pareciam cobiçar ainda mais aquilo que consideravam uma maravilha da engenharia tática. Um turbilhão de perguntas se formou em minha mente e eu comecei a me desesperar ante o fato de que a roupa da Ferina pudesse cair em mãos erradas.
E se esses cretinos arranjarem um jeito de fazer a roupa funcionar mesmo sem mim no comando?
E se eles conseguirem replicar todo o projeto do traje para vestir um exército de pessoas invisíveis e iniciarem uma guerra?
O que vai acontecer comigo se eles decidirem que eu não sou mais útil?
O que eles vão fazer comigo?
Três horas após a minha chegada ao laboratório do quinto andar e os exaustivos testes de performance do meu traje, eu fui obrigada a me despir dele e fui levada de volta à minha cela escura. Desta vez, uma bandeja encimada com uma quentinha e uma garrafa de suco de uva me aguardavam e, nem sequer tive tempo de pensar que a comida da marmita podia estar envenenada. Eu estava faminta e comi feito uma desesperada relembrando os dias de fome que havia passado ao longo dos anos como moradora do conjunto habitacional abandonado no centro de São Francisco d'Oeste.
Eu ainda estava exausta por conta das horas passadas naquele laboratório e pelos maus tratos que havia recebido desde o meu rapto e, antes que pudesse planejar aquilo, tinha caído estafada sobre o colchão da cama de solteiro em meu quarto.
Acordei com a tranca da cela sendo aberta horas mais tarde e, novamente, fui arrancada do local em direção ao elevador, desta vez, para um nível inferior. Um dos brutamontes que havia me sequestrado estava no comando da minha escolta aquele dia e ele me empurrou para dentro de uma sala mais arejada com uma janela envidraçada ao fundo onde Maranelli, o engenheiro do dia anterior, a assistente Noele e mais um par de capangas me esperavam.
— Sente-se, ragazza. Precisamos conversar.
Maranelli estava espalhado numa poltrona atrás da mesa de tampo escuro e havia uma pilha de pastas de arquivos jogada em sua superfície. O engenheiro e Noele estavam em pé do seu lado direito e os dois capangas se mantiveram perfilados no canto esquerdo da sala. A porta se fechou às minhas costas logo que entrei e eu me sentei ressabiada numa cadeira diante da mesa.
— O senhor Tóth aqui — E o velho apontou para o sujeito de cabelo penteado com gel em pé ao seu lado — me apresentou relatórios muito satisfatórios sobre o desempenho da sua armatura e me apresentou algumas melhorias que a sua equipe científica está propondo para torná-la ainda mais eficiente nas missões que tenho para você, bambina.
Senti as axilas suarem só em ouvir aquelas palavras. Eu ainda tinha dificuldade em aceitar que estava mesmo nas mãos sujas de Maranelli e que o canalha teria, a partir de agora, controle total sobre as minhas ações.
Se eu pelo menos pudesse pedir ajuda, pensei, desanimada.
— Que tipo de melhorias?
Eu estava curiosa a respeito do que a tal Die Maschine que pagava os salários de Tóth, Noele e o doutor Heister tinha descoberto em posse da minha roupa e o que eles podiam fazer para melhorar o seu desempenho. Naquele momento, a assistente que não aparentava ter mais do que trinta anos se moveu à minha esquerda e apanhou uma das pastas empilhadas sobre a mesa para abri-la a uma distância que eu podia enxergar o seu conteúdo.
— Os circuitos internos de energia da roupa — começou a dizer Tóth enquanto eu encarava o desenho esquemático em 3D impresso numa página dentro da pasta plástica. — sofrem de um decréscimo muito repentino quando as funções de camuflagem são acionadas por um comando do seu cinturão, e o mesmo acontece quando as lentes de visão noturna e as manoplas de choque são acionadas.
Eu possuía uma autonomia energética para a camuflagem total da roupa de menos de dez minutos e as baterias se esgotavam totalmente caso eu excedesse o uso dos socos-ingleses ou mantivesse as lentes de visão noturna acionadas por mais tempo do que o necessário. Eu sabia que a roupa era totalmente autossustentável à base de energia solar e que a carga de energia retornava aos seus 100% após menos de uma hora de exposição contínua à luz do Sol, mas uma fonte de poder que me mantivesse "carregada" por mais tempo viria bem a calhar.
— A proposta dos cientistas da Die Maschine é justamente aumentar essa sua autonomia com uma espécie de gerador móvel que iremos acoplar aos circuitos da fivela do seu cinto. Desta forma, além de aumentar o seu poder de ataque, você vai manter a camuflagem e a visão noturna por um tempo quase indeterminado. Isso vai aumentar a vantagem em suas missões de espionagem.
Eu não sabia quais eram os planos de Maranelli ou para que tipo de tarefas ele me designaria agora que havia me botado cabresto, mas o meu estômago chegava a revirar só em imaginar as coisas horríveis que ele podia me obrigar a fazer.
Antes que eu pudesse verbalizar os meus temores quanto ao teor das tais missões, Noele deu outro passo à frente e abriu uma segunda pasta para que eu desse uma olhada em seu conteúdo.
— Sabemos que em campo um operativo de espionagem, às vezes, pode acabar tendo que lidar com situações inusitadas ou mesmo ter que se livrar rapidamente de agressores com eficácia, por isso, desenvolvemos alguns armamentos de ataque à distância que você pode achar útil em ação.
Eu estava vendo o design de uma espécie de faca de arremesso miniaturizada à minha frente e, ao lado, em uma espécie de tabela gráfica, uma dezena de opções de empunhaduras dos mais variados tipos. Eu ri.
— E o que eu vou fazer com essas facas? Passar manteiga em quem me atacar? — Eles ficaram olhando incrédulos para a minha cara. — Ninguém pensou que, talvez, uma pistola fosse mais eficaz do que essas coisinhas?
Noele e Tóth se entreolharam desconcertados, mas foi de Maranelli a resposta mais eloquente. Sem alterar o seu tom de voz calmo e com os dedos gorduchos entrelaçados sobre a mesa, ele disse:
— Não vamos botar uma arma de fogo nas mãos de uma amadora. Não queremos que acabe se ferindo acidentalmente no meio de uma tocaia, mia cara.
Senti um arrepio percorrer a minha espinha e, então, Tóth retomou a fala.
— Achamos que essas lâminas especiais seriam uma opção mais prática para adicionar ao seu arsenal, uma vez que, por conta do seu tamanho miniaturizado de dez centímetros de comprimento, podemos fabricar uma quantidade grande delas. Além disso, elas parecem mais de acordo com o seu modus operandi.
A Ferina tinha sido criada para missões de espionagem e nunca antes eu havia pensado em cair de cabeça em meio a tiroteios ou ações que exigissem mais do que eu poderia render em campo — embora eu já tivesse feito exatamente isso! Armas de fogo não faziam o meu estilo e as tais facas realmente podiam ser mais úteis em situações que exigissem maior discrição.
— E o que exatamente vocês querem que eu faça com todos esses "presentes"?
Foi a vez de Maranelli mexer a silhueta arredondada em sua cadeira e pegar uma das pastas sobre a mesa. Ele jogou alguns documentos em minha direção e mandou que eu os analisasse. Há mais de um ano, eu havia estado em contato direto com relatórios empresariais, contratos de negociações entre companhias e todo tipo de arquivo corporativo. Sabia identificar o que tinha em mãos e tinha uma ideia do que o filho da mãe obeso atrás daquela mesa queria ao me mostrar tudo aquilo.
— Os meus homens passaram os últimos meses escarafunchando contas secretas, documentos privativos e mais uma porção de segredos muito bem guardados por meus inimigos. Como você bem sabe, ragazza — E ele me lançou um olhar atemorizante. —, eu fui destituído da minha função de comandante do maior cartel brasileiro de entorpecentes e tive que sair foragido da minha própria cidade por conta das provas que incriminavam a mim e a minha família junto à justiça.
Maranelli tinha feito um levantamento dos principais nomes envolvidos no grande plano que havia tirado das suas mãos o título do rei do crime de São Francisco d'Oeste e colocado indiretamente o seu, até então, braço-direito na organização, Gerônimo "Belo" Falcão, como o atual mandante da indústria mafiosa que levantava milhões de reais todos os meses na cidade do interior de São Paulo.
Ele se sentia traído por seus antigos aliados e queria vingança contra aqueles que lhe haviam virado as costas tão logo a Corporação, a organização da qual ele fazia parte, ruiu ante as minhas ações e a dos meus amigos. Eu também tinha colaborado para a sua derrota, o velho tinha a noção exata disso, mas ele precisava da minha ajuda.
— Aqueles que comandam a cidade onde eu estabeleci o meu império, o mesmo que herdei do meu finado pai, hoje gozam de total segurança à margem da lei, enquanto eu sou obrigado a me esconder feito um topo puzzolente di fogna[1] caçado pela polícia. Eu quero de volta aquilo que me foi tomado. Quero reunir provas que mostrem à mesma justiça que me persegue quem são os reais responsáveis pela podridão que hoje inunda as ruas de São Francisco d'Oeste. Quero usar contra eles as mesmas armas que os mascalzoni[2] tão bem souberam se utilizar para me destronar e quero que você me ajude a conseguir isso.
Eu mal conseguia controlar a minha pulsação. Eu estava diante de um dos homens mais cruéis que tinha tido o desprazer de conhecer e não havia nada que eu pudesse fazer para impedir que fosse usada por ele.
— Mas... Eu não entendo... Por que eu? Por que não usar outra pessoa?
Todos na sala pareceram engolir em seco ao meu redor. Maranelli continuou me encarando. Os olhos cinzentos cravados nos meus. Os dedos de linguiça entrelaçados e a feição rude na cara enorme.
— Você e os seus amigos ajudaram a orquestrar a minha queda usando meios que, até pouco tempo, ninguém mais sabia dizer quais tinham sido. Você foi estúpida o bastante para se desmascarar diante de empregados meus, mostrou a tua vera identità[3] e se colocou na mira das pessoas que te entregaram de bom grado. Nada mais justo que seja você a me ajudar a restituir o meu lugar de prestígio frente a máfia da minha cidade, mia cara.
Uma raiva crescente agora tomava o meu peito e, por um momento, eu fui incapaz de avaliar o perigo que estava correndo em rivalizar com Toni Maranelli.
— Você mandou matar o meu pai... Mesmo depois de tantos anos se serviço, você o matou feito um cão sarnento. Não deu a ele qualquer chance!
As lágrimas brotaram em meus olhos. Os dois capangas à minha direita mexeram as mãos por dentro dos seus paletós e eu ouvi o engatilhar das suas pistolas automáticas. Por um instante, achei que seria executada ali mesmo e senti um alívio.
Pelo menos não terei o peso na consciência de ter ajudado esse animal a recuperar a sua posição no topo da bandidagem, pensei naquela hora.
Eu fechei os meus olhos e respirei fundo quando o cano de uma das pistolas encostou em minha cabeça empurrando os meus cabelos curtos para o lado.
— Eu não fui o responsável pela morte de Demétrio, pequena.
A voz de Maranelli rimbombou em meus ouvidos. Eu estava trêmula e pressionava os dedos da mão esquerda na palma da direita, nervosa.
— Nada tive a ver com a emboscada armada por Vitor Assis ao seu pai. Ele e o ex-delegado Romero agiram seguindo ordens do próprio Gerônimo Falcão e sem o meu conhecimento. Agiram pelas minhas costas e, por essa razão, também se colocaram em minha lista de desafetos, lista esta que terei prazer de riscar nome por nome.
Falcão era o número dois no comando da organização de tráfico de drogas que existia há décadas na cidade aonde a minha família havia sido constituída e onde também os meus pais haviam perecido. Quando as primeiras evidências de corrupção começaram a apontar Edmundo Bispo, o grande magnata do petróleo, como o cabeça do grupo que estava querendo colapsar as matrizes energéticas brasileiras, era quase óbvio que o segundo na cadeia alimentar quisesse passar para o topo. Fazia sentido que Falcão quisesse se rebelar contra Maranelli e fazia ainda mais sentido que a ordem para que o meu pai fosse executado não partisse do grande chefão e sim do seu braço-direito.
— Por que eu deveria acreditar no que diz?
O afrontei mais uma vez mesmo com o cano da Glock pressionando o meu crânio. As lágrimas já tinham chegado em meus lábios e, enquanto eu falava, conseguia sentir o gosto salgado beijar a minha boca.
— Porque é a verdade. — respondeu ele sem titubear. — O seu pai sempre foi extremamente leal a mim. Mesmo na prisão, jamais disse ou sequer deu a entender que me prestava serviços. Ao contrário de outros subordinados. Demétrio foi um dos homens mais leais que conheci em todos esses anos. Eu jamais o executaria sem que provas cabais da sua traição fossem expostas... coisa que não aconteceu.
— O meu pai sabia que eu estava aliada às pessoas que ajudaram a entregar você à justiça. Esse era um motivo mais do que justo para que quisesse eliminá-lo.
Tóth e Noele pareciam apreensivos ainda em pé ao lado da mesa de Maranelli como se os meus miolos fossem explodir em sua direção a qualquer momento. Eu não sabia de onde estava tirando forças para interpelar o porco gordo sentado curvado à minha frente, mas a arma do seu homem continuava encostada na minha cabeça, pronta para me fulminar a qualquer momento.
— Criança — disse Maranelli com tom de escárnio. —, no dia em que você e o seu colega de capa confrontaram Jack Hernandes em seu esconderijo para libertar as pobres bambinas que aquele verme mantinha em cativeiro, o seu pai ficou tão surpreso quanto qualquer outra pessoa no interior daquele antro com o fato de que a sua pequena filha, que antes prestava serviço para mim, fazia parte do esquema que estava buscando desbaratar a Corporação[4].
A arma aliviou a pressão em meu crânio e o capanga abaixou a pistola, ficando de guarda a dois passos de mim.
— Eu sabia que Demétrio nada tinha a ver com a sua cruzada contra a máfia da cidade. Os homens que você e o seu amigo nocautearam relataram na delegacia aos meus informantes que o seu pai tinha ficado arrasado em saber que a sua pequena filha tinha se voltado contra ele. Eu jamais ordenaria a sua execução por conta disso.
Maranelli podia ser a pessoa mais escrota do mundo, mas como eu havia dito antes, ele não costumava blefar. Agora, eu tinha certeza que a ordem para a execução do meu pai não havia partido dele e sim de Falcão, o mesmo homem que havia me violentado e arrancado de mim a minha inocência.
— Eu sei bem todas as coisas desprezíveis que passou nas mãos de Falcão, Jack Hernandes e todos os seus associados, piccola. Por isso, se me ajudar com a minha empreitada de volta ao trono que me cabe em São Francisco d'Oeste, prometo que não vou interferir em sua vingança contra todos os homens que desgraçaram a sua vida.
Aquela era a primeira vez em anos que eu tinha a chance de fazer justiça com as minhas próprias mãos executando Gerônimo Falcão e os seus homens por todos os crimes que eles haviam cometido contra mim e a minha família. Por um instante, eu tinha deixado de enxergar a minha aliança com Maranelli como algo abjeto ou desprezível. Agora eu conseguia visualizar toda a situação de uma maneira macro.
Enquanto eu o ajudava a destruir as pessoas que corroíam as estruturas morais de São Francisco, eu podia finalmente fazer com que os assassinos do meu pai pagassem por seus atos e ainda sairia de alma lavada por todo o terror que havia vivido nas mãos sujas de todos eles.
Naquele momento, eu tinha a certeza que os fins justificavam os meios, e eu estava disposta a vender a minha alma ao próprio demônio desde que recebesse como recompensa as cabeças daqueles que haviam me arrancado o que eu mais prezava. Eu não sabia o quanto, mas a chama da vingança ardia incandescente dentro do meu peito e eu precisava fazê-la queimar ainda mais.
[1] Rato fedorento de esgoto
[2] Canalhas
[3] Sua verdadeira identidade
[4] O que Maranelli está dizendo aqui foi mostrado em detalhes num dos capítulos de "Pássaro Noturno – A Corporação" publicado no Wattpad, e também na coletânea "Pássaro Noturno – A Corporação" com a primeira trilogia completa + extras publicado na plataforma Fizzo.
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