Capítulo 20 - A última missão
A LUZ DO PISCA-ALERTA refletia em meu rosto quando despertei sobressaltada no chão empoeirado de um estacionamento escuro. A noite já havia caído por completo sobre a minha cabeça e as poucas estrelas que conseguiam escapar das nuvens espessas do inverno brilhavam tímidas no céu.
O meu peito doía como se garras metálicas tivessem aberto um rombo por minha pele rasgando os tecidos para chegar até os meus ossos. O meu abdômen parecia ainda mais ferido e eu quase podia sentir o sangue que vertia quente de dentro de mim atravessar o couro do meu traje, chegando aos meus dedos enluvados.
Eu não me lembrava como havia chegado ali, nem como tinha estacionado o sedan esburacado de balas naquelas condições. O carro estava enviesado entre as fileiras demarcadas para a entrada de veículos particulares e os seus faróis ainda jaziam acesos.
Quando ergui os meus olhos quase sem forças para me levantar, visualizei a placa luminosa do depósito de supermercado ao lado direito daquele espaço aberto e a reconheci. Percebi no mesmo instante que tinha voltado para o lugar onde, há alguns anos, tinham sido construídos os prédios do conjunto habitacional abandonado onde eu morava com a minha família. Eu tinha voltado para casa.
Levou duas horas entre o meu chamado de emergência pela linha prioritária de comunicação e a chegada dos homens de Toni Maranelli ao local. Apressados, os homens a serviço do capo pararam em frente ao estacionamento e recolheram o pouco que havia restado de mim do chão. Fui levada de carro até o heliporto situado na quadra da delegacia e, de lá, me embarcaram de helicóptero até um hospital do centro de São Paulo.
Para não levantar suspeitas, os capangas de Maranelli, com a ajuda da sua fiel assistente Jéssica Estrada, removeram o meu traje avariado e me vestiram com roupas civis antes de me encaminharem a uma ala de pronto-socorro. A moça, sob as ordens de seu chefe, ficou tomando conta de mim até que eu despertasse após os exames que haviam detectado pequenas luxações em braços e pernas, escoriações na região abdominal e uma concussão na cabeça.
Era incrível imaginar que eu havia escapado com vida daquela emboscada, mas quando retornei para casa, estava certa que não ia poder contar com a sorte por muito mais tempo. Eu precisava abandonar aquela vida de aventureira criminosa o mais rápido possível. Antes que fosse tarde demais.
Uma semana após a morte e os cortejos fúnebres em homenagem a Caesar Berganzza e aos oito homens que haviam sido abatidos durante o assalto ao comboio da Corporação, Toni Maranelli colocou Rocco e os seus capangas de confiança no rastro da pessoa que havia dedurado todo o plano de interceptação aos caminhões de drogas na estrada a caminho de Calheiras, e chegou a um nome: Giulio Vergara.
Giulio Vergara era considerado o número três da família mafiosa de Maranelli e auxiliava o velho capo na administração dos seus negócios há mais de quinze anos. Era casado com uma sobrinha de Toni que morava a poucas quadras do complexo operacional de onde ele comandava as suas ações na Mooca e, juntos, o homem e a mulher tinham três filhos pequenos.
Na noite que antecedia o assalto na estrada, uma quantia quase exorbitante de dinheiro havia sido transferida da conta de uma empresa estrangeira de logística chamada Stroy Kompanïyasi para uma conta em nome de Vergara e o serviço de inteligência do capo não tinha demorado nem duas horas para encontrar rastros digitais da transação bancária.
Cinco passagens de avião para o Caribe também haviam sido encontradas entre as coisas do homem no apartamento que ele usava quando estava prestando serviço para o patrão, e a viagem estava agendada para a mesma tarde em que toda a ação na estrada para Calheiras havia se desenrolado. Um atraso da companhia aérea no despacho das bagagens havia impedido que o passeio acontecesse no dia certo e, tanto ele quanto a sua família o tinham remarcado para a próxima semana.
Quando foi capturado por Rocco e os demais jagunços de Maranelli, Vergara estava tentando deixar a cidade. Sem outra saída, confessou a sua participação no esquema que permitiu que as pessoas por trás da Corporação descobrissem previamente a hora e o local em que eu e Berganzza íamos assaltar os caminhões carregados de madeira e cocaína. À base de tortura, o número três da organização de Maranelli entregou também mais dois nomes que já haviam vendido informações internas para grupos rivais, e não houve qualquer perdão a nenhum deles.
Quando aquela semana se encerrou, a mando do chefe, Rocco assassinou Vergara e todos os outros membros da família que também já haviam dado com a língua nos dentes sobre os negócios do capo. O velho italiano costumava ser implacável contra os seus inimigos, mas era ainda mais com quem o traía.
Eu sabia que não tinha qualquer chance de escapar da sua mira mortífera pelos meios tradicionais, e se queria mesmo me ver livre do seu domínio, ia precisar usar de toda a minha criatividade.
A traição de Giulio Vergara havia acendido um sinal de alerta na organização de Maranelli e, assim que a poeira sobre o que tinha acontecido naquela estrada se assentou, ele mandou que toda a sua equipe evacuasse o complexo de operações da Mooca. Uma mudança às pressas foi necessária da noite para o dia, e o coroa mandou parte da sua equipe operacional para uma área mais remota nos arredores de Marechal LaRocca.
A divisão de ciências aplicadas da Die Maschine tinha sido realocada num prédio de propriedade de Toni Maranelli no bairro da Barra Funda, e lá, em meio ao centro urbano e mesclado à normalidade de uma metrópole que não parava nunca, o trabalho dos cientistas à serviço do velho capo pode continuar sem qualquer distração.
Durante a minha reabilitação e, até que os meus ferimentos estivessem totalmente curados, eu fui alocada numa casa de campo no meio do nada a quase duzentos quilômetros do centro comercial de Marechal LaRocca, e recebia visitas semanais de Jéssica, que me inteirava sobre os assuntos da "família" além de me levar mantimentos, produtos de higiene, DVDs e revistas para que eu me distraísse enquanto esperava por novas ordens.
— Agora não deve demorar até que o senhor Maranelli a libere para uma nova missão, Silmara. — Me disse a moça bonita de sorriso largo no rosto, certa vez, em uma de suas visitas. — Como estão os seus ferimentos? Eles já cicatrizaram?
O talho que um dos tiros de metralhadora havia me aberto na barriga já havia cicatrizado, e mesmo as marcas roxas que ele havia deixado na região já tinham suavizado. Mostrei a ela o meu estado levantando a blusa, e a secretária conferiu com os próprios olhos.
— Apesar de isolado, aqui não é um lugar tão ruim — E Jéssica lançou um olhar através da janela gradeada, conferindo os metros infindáveis de vegetação em torno da casa. —, não tem sinal de televisão e nem de telefone, mas eu trouxe os filmes que você me pediu.
Em sua última visita, eu havia encomendado que Jéssica me trouxesse filmes sobre artes marciais e ela arranjou três títulos; "Operação Dragão" estrelado por Bruce Lee, "Difícil de Matar" de Steven Seagal e "Kickboxer – O Desafio do Dragão" de Jean Claude Van Damme.
Em minha infância, eu nunca tinha sido apegada a cinema por não ter acesso àquele tipo de luxo, mas tinha assistido a vários títulos durante as tardes solitárias na casa de Henrique, enquanto a sua família estava fora. Tinha ficado quase um ano naquela rotina, agindo como uma invasora furtiva nas horas em que as pessoas que moravam naquele lugar estavam ausentes, e os filmes de ação eram os que mais me mantinham entretida diante do sofá dos Harone.
— Achei que fosse querer desanuviar um pouco a cabeça de tanta violência durante o seu retiro — E ela empunhou uma das embalagens de DVD com uma feição curiosa no rosto. —, por que me pediu para trazer justamente esses filmes horríveis?
— Estou querendo testar uma teoria que desenvolvi no dia em que fui abatida por tiros, só isso.
Eu passava grande parte do dia sozinha naquela casa de campo, longe da civilização e sem qualquer meio de fugir pela mata. Maranelli sabia que se eu fosse me embrenhar na vegetação que cobria todo o entorno da propriedade, eu o faria vestida com o meu traje e, desta forma, ele sempre poderia me rastrear para onde quer que eu fosse. O velho sabia também que eu estava privada de qualquer forma de comunicação naquele lugar e que não tinha como pedir ajuda, mesmo se quisesse.
Daquela forma, tudo que me restava era o meu aprendizado, e eu comecei a me dedicar a simular em frente à TV de vinte e nove polegadas os movimentos de luta que Bruce Lee, Steven Seagal e Van Damme faziam em seus filmes.
Até o fatídico dia em que os soldados da Brigada de Elite haviam me cercado durante o assalto aos caminhões e tentado tirar a minha vida, eu não fazia ideia quais tinham sido as habilidades destravadas em meu DNA após o procedimento gênico de Maximus Valente, mas depois daquele dia, tinha uma leve impressão que as tinha identificado.
Eu não sabia nada sobre memória eidética ou aprendizado pela observação, mas para mim, tinha ficado claro que eu havia adquirido a capacidade de mimetizar qualquer movimento que assistisse por um tempo determinado.
Durante o assalto, eu tinha observado o motorista do caminhão dirigir o seu veículo pesado por apenas poucos segundos antes de ser atingida por ele no peito, e antes de eu me atracar com o sujeito atrás do volante, mas tinha sido o suficiente para que eu soubesse, logo em seguida, exatamente o que eu tinha que fazer. Sentada no assento do motorista, eu não estava dirigindo, de fato, o caminhão e sim imitando os movimentos que eu havia observado há pouco tempo, e aquilo tinha funcionado.
Algum tempo depois, a mesma coisa havia acontecido enquanto eu enfrentava o comandante da Brigada de Elite. Eu estava sem opções ao me ver desprovida de minhas lâminas de arremesso, e me vi obrigada a lutar contra o homem mesmo em desvantagem. Em nossas conversas noturnas no bunker sob a sua casa, Henrique Harone havia me falado várias vezes que o Fei Hok Phai, modalidade de Kung Fu que ele treinava desde os quatorze anos, era acima de tudo um método de defesa que utilizava a força do seu adversário contra ele mesmo.
Eu o tinha visto usar aquele mesmo método para encarar dez guardas ao mesmo tempo no coquetel de campanha do deputado Washington Castro, imagem que se repetiu inúmeras vezes ao longo da programação jornalística da TV. Quando vi aquele soldado blindado partir para cima de mim, muito maior que eu e muito mais forte, flashes da luta do Pássaro Noturno começaram a explodir em minha mente, e eu me vi imitando com destreza cada um dos golpes que ele havia usado para se safar dos seus agressores, igualmente, maiores e mais fortes que ele.
Eu não tinha certeza se tudo aquilo havia mesmo acontecido, se eu realmente havia desenvolvido uma super-habilidade ou se era o desespero me forçando a agir por reflexo em meio a uma situação extrema. Na calmaria daquela casa de campo, enquanto o estrilar dos insetos ecoava do lado de fora, eu botei para rodar "Operação Dragão" no aparelho reprodutor de DVD e, de repente, me vi imitando perfeitamente os movimentos de Jeet Kune Do de Bruce Lee. Abri um sorriso e, enquanto arfava devido ao esforço do balé coreográfico diante da TV, o meu corpo se encheu de adrenalina mais uma vez.
— Eu sei Kung Fu.
Muitas semanas se passaram até que eu, enfim, fosse levada da casa de campo ao novo centro de operações de Toni Maranelli em Marechal LaRocca e, no caminho até lá, os meus pensamentos estavam inteiros voltados para Jacira e Ana Clara no Morro da Boa Vista.
Estavam se completando quase dois meses desde a última informação que Jéssica havia me dado sobre as duas, e o meu coração chegava a apertar só em pensar nas maldades que elas podiam estar sofrendo nas mãos dos capangas impiedosos do meu empregador.
A maneira como ele mandou matar o marido da própria sobrinha... A forma como ele prometeu assassinar a minha mãe caso eu não colaborasse... Maranelli é um monstro. Eu não posso permitir que ele vença. Eu não posso deixar que ele tire a minha família de mim novamente, pensei, me sentindo impotente.
A nova instalação secreta era bem mais acanhada que a anterior da Mooca, mas não deixava nada a desejar em matéria de conforto. O lugar ficava situado numa área bastante protegida por cercas e portões altos, além de que a entrada só era permitida com cartões magnéticos de identificação que só os empregados possuíam.
Havia dois prédios de doze andares cada num raio de duzentos metros de extensão e um deles era usado como área de treinamento, armazenamento de equipamentos, estacionamento e heliponto. Um Helibras H145 brilhando de novo jazia pousado no telhado do segundo prédio e, dali, tanto o capo quanto os seus agentes mais chegados tinham acesso facilitado a qualquer parte da cidade.
Eu tinha sido alojada num quarto localizado no quarto andar do primeiro prédio, e ali, enquanto aguardava novas ordens, voltei a receber diariamente fotos atualizadas de Jacira e Ana Clara no barraco onde estavam morando desde o deslizamento de terra que as havia desabrigado no começo do ano.
As lágrimas abundaram incontroláveis em meu rosto quando reparei em como a neném estava crescida. Os seus cabelos cada vez mais cacheados agora alcançavam quase o meio das suas costas e ela parecia corada e saudável, como a mãe.
Oh, meu amorzinho. Que saudades de te abraçar e de te encher de beijos!
Próximo da época de Natal e Ano Novo, Toni Maranelli bancou uma festividade com toda a sua família reunida na cobertura de um dos prédios e eu fui autorizada a participar por conta das missões bem-sucedidas que havia cumprido ao longo daquele ano.
Enquanto comida farta era servida por garçons em todo o salão e as pessoas bebiam exageradamente em torno das mesas dispostas, os boatos que rolavam de boca a boca eram de que o velho capo estava muito próximo de retomar a sua posição de destaque como o grande chefão da máfia de São Francisco d'Oeste, e que nem mesmo o homem-forte da organização conhecida como Comando Central — que havia tomado os principais pontos de drogas da cidade — era agora capaz de desafiá-lo.
Enquanto ela bebia um copo de vinho atrás do outro, começando a ficar com o tom de voz levemente pastoso e os movimentos débeis, eu aproveitei para sondar Jéssica a respeito dessas novas informações, e a moça soltou o verbo.
— O serviço de inteligência conseguiu descobrir a identidade do homem por trás do Comando Central e desvendou também todas as suas conexões passadas com o falecido Edmundo Bispo da época em que ele era o cabeça da Corporação.
Eu tinha ficado extremamente curiosa com aquela informação e quis saber mais.
— E quem é esse cara?
Ela riu de maneira exagerada, alterada pelas inúmeras taças de vinho que havia tomado a noite toda.
— Eu não sei. Não faço parte do serviço de inteligência. Tudo que ouço falar é que ele é tratado por seus pares como "Jota" e que o cara lava todo o dinheiro sujo do tráfico que comanda através de uma casa noturna chamada La Phoenix.
— A La Phoenix não pertencia ao Paulo Menezes? — perguntei, certa que ela teria aquela resposta.
Jéssica deu de ombros.
— E quem mais tem essas informações, Jéssica?
A moça apontou em direção a um homem de pele escura e olho vazado que conversava discretamente com Toni Maranelli ao centro de uma mesa retangular farta de comida. Ele se chamava Benedito Lacerda e tinha assumido o lugar de Caesar Berganzza à frente da equipe de inteligência do capo. Agora era apenas uma questão de tempo até que eu também fosse apresentada a ele.
Após o período de festas e o começo do ano seguinte, as missões com o intuito de retomar o poder de Toni Maranelli em São Francisco d'Oeste voltaram com força total, e eu me vi envolvida diretamente numa ação cujo objetivo era invadir uma das sedes da Constrular, a empresa de construção chefiada por Richard Bispo.
— O prédio principal da Constrular ocupa todo um quarteirão de esquina de uma das avenidas mais movimentadas de Pinheiros — começou a dizer Benedito Lacerda que presidia a reunião à frente de um telão e de um projetor. —, um terço dos andares é ocupado por servidores com extrema capacidade de processamento e armazenamento na parte superior da torre, e é nessa área que devemos concentrar todos os nossos esforços.
Eu estava sentada do lado direito da mesa retangular diante do telão. Perfilados a mim estavam também Rocco, Tóth, Noele e um sujeito rechonchudo que eu já havia visto numa das reuniões, mas que eu não sabia quem era.
Do outro lado da mesa, estavam sentados cadeira sim, cadeira não, Jéssica Estrada, um consultor de operações táticas identificado apenas como Vésper, dois agentes de segurança da equipe de Rocco e mais um rapaz de aparência asseada que parecia observar tudo com bastante atenção. Aquela era a primeira vez que o próprio Toni Maranelli não estava presente para opinar pessoalmente sobre as decisões tomadas por seus agentes, e aquilo me parecia muito esquisito.
Ele está prestes a reassumir o seu trono de "o rei do crime" e não participa de uma reunião tão importante como essa? pensei, levemente ressabiada.
— Temos uma janela de ação muito curta para invadirmos o prédio pelo telhado, que é quando acontece a troca de guarda dos vigias — continuou Lacerda com a sua voz empostada e grave. —, um dos nossos homens estará devidamente infiltrado na equipe de segurança e vai fazer vista-grossa enquanto a nossa agente furtiva pousa no prédio e acessa os servidores por cima.
Todos se voltaram para a minha direção no momento em que o chefe de inteligência mencionou a tal "agente furtiva", e eu senti a saliva descer raspando a garganta.
Quando é que essas missões vão acabar? pensei, desolada.
Era uma noite agradável de verão quando o helicóptero com a equipe aérea da "Operação Constrular" alçou voo de um heliporto nos arredores do Butantã. Além de mim, do piloto e do copiloto, a geringonça voadora também estava levando o meu instrutor de rapel e o cara aproveitou para me dar as últimas dicas a respeito do equipamento que eu usaria para chegar até o telhado do prédio em Pinheiros.
Aquela noite, a equipe de solo que estava monitorando cada um dos meus passos e, ao mesmo tempo me auxiliando na invasão aos servidores da construtora, era formada por Benedito Lacerda no comando da operação, os dois assistentes científicos da Die Maschine, Durval e Valéria, controlando a telemetria do meu traje através dos seus computadores de dentro da van e o rapaz observador da última reunião que, mais tarde, eu viria a saber se tratar de Rodolfo Maranelli, o filho mais jovem do próprio capo.
— Batimentos cardíacos em oitenta e seis BPM — informou Valéria em meu ouvido, via rádio. —, pressão arterial normal em doze por oito.
— Nível energético do gerador da fivela em 92% — disse Durval logo em seguida. — Temperatura do traje abaixo dos vinte graus.
Estávamos voando a uma altura de cinco mil metros e, pela janela, já era possível enxergar lá embaixo as luzes da sede da Constrular, o maior prédio da região em torno do Rio Pinheiros.
O piloto sabia que era arriscado levantar voo aquele horário da noite, mas em nome da missão, ele estava disposto a arriscar o próprio pescoço. Trabalhava para Toni Maranelli há mais de dez anos, e aquela não era nem de longe a tarefa mais ousada que já havia feito a seu serviço.
— Salto em dois minutos.
A voz do comandante do helicóptero soou na cabine e eu respirei fundo já encarando o meu destino lá embaixo. O meu instrutor conferiu uma última vez os arnês, os mosquetões e os freios a que eu estava fixada, logo em seguida, puxou para o lado a porta corrediça da aeronave e eu fui empurrada para trás pela força do vento que soprou contra nós dois naquela altura.
— Lembre-se do treinamento e você vai chegar com segurança lá embaixo.
A voz confiante do instrutor chegou aos meus ouvidos no momento em que o piloto avistou um bastão sinalizador vermelho sendo agitado no telhado da Constrular. Aquele era o aviso de que a barra estava limpa para o meu salto e não demorou até que a máquina voadora estivesse descendo lentamente para se aproximar o máximo que pudesse do prédio.
Morra de inveja, Tom Cruise!
Eu tinha treinado em uma parede artificial dentro do complexo de Maranelli por vários dias seguidos a descida por rapel, mas aquela era a primeira vez que fazia toda a coisa para valer. O vento sacudindo a corda, as hélices do helicóptero tremulando sobre a minha cabeça e a iminência de eu despencar para a morte a mais de cem metros de altura agravavam muito mais a situação do que todo o ambiente controlado e seguro criado por meu instrutor em meus exercícios. Mesmo assim, eu arrisquei tudo em nome da missão e comecei a deslizar pela corda rumo ao telhado.
— Ela conseguiu — informou o instrutor do alto do helicóptero em canal aberto pelo rádio. —, a agente acabou de pousar no telhado.
Eu estava com as pernas trêmulas e o meu estômago estava mais frio que a geleira mais desgraçada da Antártida, mas eu não podia perder a chance de ironizar:
— Foi moleza, pô! Já quero de novo!
A fim de não levantar maiores suspeitas e de manter a minha missão secreta, o helicóptero se afastou do local do meu pouso e voltou para a área onde aguardaria o chamado para o meu resgate quando fosse a hora.
O guarda à serviço de Maranelli que havia facilitado a minha descida ficou tomando conta dos meus equipamentos de rapel no telhado e, sem querer perder mais tempo, eu comecei a descer as escadas que me levariam até os níveis inferiores, direto para os terminais dos servidores.
— Por conta de interferência magnética, nós vamos perder contato via rádio, Ferina — indicou Lacerda em meu ouvido esquerdo assim que atingi o piso de baixo, a poucos metros da porta que me daria acesso ao primeiro nível de servidores da empresa. —, espero que se lembre bem o que deve fazer, porque a partir de agora, você estará por conta própria!
E qual é a novidade? perguntei a mim mesma de maneira sarcástica.
A Constrular era uma empresa de construção civil e urbana que prestava serviços a um sem-número de órgão públicos e privados em São Paulo e em outros estados da região Sudeste. Era a terceira maior companhia do ramo em que atuava e empregava milhares de funcionários nas várias filiais espalhadas pelo país, movimentando um capital anual de alguns milhões de reais.
Era dirigida por Richard Bispo desde a morte de seu progenitor naquela que considerei a primeira derrocada do grupo criminosos conhecido como a Corporação, e estava intimamente ligada a partidos políticos, empreiteiras, CEOs de multinacionais e uma dezena de figuras em cargos públicos como deputados, senadores e até gente do alto escalão dentro do Planalto Central em Brasília.
De dentro dos escritórios da construtora, eram organizados os mais abomináveis crimes de responsabilidade fiscal, além de um número quase infinito de conchavos que facilitavam esquemas gigantescos de corrupção. Os servidores contidos dentro daquele prédio guardavam segredos inomináveis de toda a sujeira praticada pela corja protegida por Richard Bispo e, antes dele, por seu pai, Edmundo. A minha missão ali era roubar essas informações para expor o nervo e fazê-lo incomodar.
A porta do primeiro nível de servidores era trancada por uma fechadura dotada de um sensor e só podia ser aberta por um cartão magnético que todos os vigias possuíam. O homem no telhado havia me entregado em mãos o que ele detinha em seu poder, e o primeiro bloqueio foi transposto sem problemas.
Todo o sistema de vigilância daquele andar estava desativado para que eu tivesse a liberdade de entrar, inocular o programa-espião num dos terminais e fazer uma cópia do disco rígido principal em uma unidade vazia que eu carregava em meu cinturão. Toda a operação se assemelhava muito com a minha primeira missão como a Ferina dentro do prédio da Xeque-Mate, há vários anos. A única diferença era que a minha companhia era muito mais agradável na época.
As câmeras do corredor tinham voltado a se ativar no segundo seguinte em que eu invadi a sala de servidores e, para sair dali, eu teria que contar com a camuflagem do meu traje.
Depois das avarias sofridas durante o assalto na autoestrada e dos tiros que quase haviam destruído os circuitos elétricos do gerador atado em minha fivela, os cientistas da Die Maschine haviam reconstituído o equipamento a contento e, até então, ele não havia apresentado qualquer falha.
O processo de clonagem do HD estava sendo mais lento do que o esperado e eu me vi ansiosa dentro daquele quarto escuro rodeado de mainframes mais altos que eu e que piscavam luzes coloridas e intermitentes.
Um monitor ativado de cima de um console indicava que o dispositivo USB que eu havia espetado numa das entradas do servidor já tinha inoculado o vírus desenvolvido por Durval e Valéria no sistema, e eu tornei a guardar o objeto minúsculo em um de meus compartimentos do cinturão. Como havia alertado anteriormente Lacerda, eu estava incomunicável naquela parte do prédio, e estava nervosa por ignorar o que estava acontecendo na parte externa do lugar.
A clonagem total do HD demorou quase trinta minutos, mas assim que desconectei o equipamento copiado do servidor, eu empurrei o monitor retrátil de volta ao seu lugar e tratei de guardar as minhas ferramentas.
Um chiado anunciou a ativação da minha camuflagem superficial e, logo em seguida, eu saí da sala caminhando apressada em direção às escadas que tinham me conduzido até ali.
Assim que as sombras que ocultavam a passagem até o piso de baixo se dissolveram pelas luzes de um holofote que iluminava o telhado do prédio, eu me senti segura novamente para me tornar visível e desliguei o controle stealth do traje. Enquanto eu pensava que estava na hora de chamar o meu apoio aéreo de volta, eu fui tomada por uma sensação estranha de que havia algo errado e senti um arrepio percorrer o meu corpo.
— Ah, que merda!
O guarda que havia me auxiliado não estava em seu posto e, quando saí para procurá-lo pelo telhado, eu o encontrei caído nocauteado perto de uma parede. A comunicação via rádio retornou de repente e me senti sobressaltada pelo som da voz de Lacerda em meu ouvido.
— Ferina? Você está aí? Está tudo bem? Alô?
Meu rosto enrubesceu por baixo da máscara e, enquanto eu me abaixava para verificar o pulso do sujeito desfalecido, senti uma presença furtiva atrás de mim. Todos os sistemas de rastreamento, o microfone e a câmera na base do meu peito estavam ativados para que a equipe de solo pudesse me acompanhar em tempo real lá de baixo. Quando o vi se aproximar de mim, eu congelei.
— Ferina? É você? O que está fazendo aqui?
O rádio estava aberto e não tinha qualquer meio de avisá-lo do perigo que ele estava correndo em se aproximar de mim daquela maneira.
— Ferina? Quem é esse? O que está acontecendo?
Eu comecei a me reerguer lentamente enquanto a minha mente trabalhava incansavelmente numa solução para que eu conseguisse sair daquela situação em segurança e ele também.
Eu tinha ansiado tanto por aquele reencontro, queria tanto voltar a falar com ele, lhe contar sobre os momentos difíceis pela qual eu havia passado longe do seu acolhimento... Mas aquela era mesmo a pior hora para dar de cara com o Pássaro Noturno.
Por favor, me perdoa... Me perdoa!
Antes que Henrique sequer suspeitasse das minhas ações, eu o ataquei de maneira feroz e ele nem conseguiu se esquivar. O atingi com meus socos-ingleses na base mais protegida da sua couraça e o empurrei para trás na tentativa de tirá-lo rápido dali.
— É o Pássaro Noturno! — Eram os gritos de Lacerda. — Se livra logo dele, Ferina. Se livra agora!
Henrique começou a cambalear para trás totalmente surpreendido com a minha investida. Eu estava usando contra ele os seus próprios golpes de Fei Hok Phai e, embora ele estivesse de máscara, era como se eu pudesse enxergar a sua expressão de espanto por baixo dela.
— F-Ferina... O que você está fazendo...?
Com um salto perfeito, eu lhe apliquei um pontapé na altura do plexo que o desequilibrou completamente e o arremessou em direção à borda do edifício. Daquela altura, um vento furioso capaz de arrastar uma pessoa soprava contra nós dois e o coitado não teve qualquer chance de se segurar.
Oh, meu Deus, não! O que eu fiz?
Sem nem poder expressar o meu desespero na tentativa covarde de manter o meu disfarce e de também salvar a vida de Henrique de uma possível retaliação de Toni Maranelli, eu o vi despencar de uma altura de mais de cem metros, se aproximando velozmente do abraço da morte lá embaixo. Eu sentia vontade de gritar, queria me atirar atrás dele para salvá-lo, mas naquele momento, o helicóptero de resgate surgiu sobre a minha cabeça e começou a descer para me içar de volta.
— Você o pegou, Ferina — disse Lacerda pelo rádio. —, muito bem. Agora é hora de sair daí antes que toda essa confusão chame a atenção dos demais seguranças do prédio.
A corda do rapel estava ao alcance das minhas mãos agora. A hélice da aeronave sobre a minha cabeça varria tudo ao meu redor, mas eu quase não conseguia reagir ao que estava acontecendo. A minha missão estava completa, mas interiormente, eu estava devastada.
Eu tinha acabado de cometer o mais terrível dos atos. Eu havia tirado a vida de uma das pessoas mais importantes da minha trajetória. Eu tinha matado o Pássaro Noturno.
CONTINUA EM PÁSSARONOTURNO – REIKON, em breve no Wattpad.
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