Capítulo 16 - Conflitos internos

APÓS CONHECER A GERAÇÃO SUPREMA dos super-adolescentes das trevas, eu fui encaminhada a uma área de dormitório que ficava no quinto andar de um dos prédios que compunham o complexo de pesquisas científicas, e conheci aquele que seria o meu novo cativeiro.

Diferente do cubículo escuro e fechado onde Toni Maranelli havia me jogado assim que me capturou, os empregados de Maximus Valente tinham me reservado um quarto bastante decente equipado com uma cama de colchão macio, lençóis brancos, travesseiro fofo, roupas limpas e até mesmo um banheiro com chuveiro quente.

Além do conforto no interior do aposento, havia também uma janela ao fundo do local e, apesar de ser hermeticamente fechada com um vidro blindado, era possível contemplar boa parte do terreno do centro de pesquisas, além da paisagem deslumbrante de floresta e montanha que circundava o lugar. Era a vista mais bonita que eu já tinha visto do alto de uma janela.

Sem o cinto gerador de energia, as manoplas e o capuz, o meu traje era inútil, por isso, o deixei de lado assim que tomei um banho e me vesti com as roupas que haviam reservado a mim sobre a cama. Acreditando que estivesse longe das câmeras de segurança dentro do box do banheiro e escondida pelo vapor da água quente, fiz uma rápida inspeção em meu corpo para me certificar de que eles não haviam inserido nenhum objeto estranho em mim como rastreadores, sondas ou microfones durante a minha inconsciência.

Sob o esparadrapo em meu braço, a marca da agulha que me perfurara era nítida, bem como a marca de sangue em minhas veias. Eu estava em um centro de pesquisas científicas e tinha medo de sequer suspeitar das esquisitices que eles podiam fazer comigo agora que me tinham como prisioneira.

Eu não queria terminar os meus dias andando de quatro, rosnando e babando feito um bicho por aí — Apesar do meu codinome "Ferina" remeter a um bicho feroz. —, e depois de toda a história que Guilherme e Talita haviam me contado sobre os seus amigos "geninhos" — como eu passei a me referir a todas as crianças —, eu estava apavorada de continuar ali com eles.

Se pelo menos eu pudesse me comunicar com o Rocco... Pensei mais uma vez, entristecida. Nunca antes tinha desejado tanto rever aquela cara feiosa e aqueles olhos pequenos em minha frente.

Eu recebi um par de calçados antes de ser convidada a conhecer uma das cientistas-chefes do centro de pesquisas e fui conduzida a outra parte do complexo por um sujeito de aparência gentil e calma a quem eu passei a chamar mentalmente de "Namastê".

Namastê era um homem mirrado e encurvado que usava um par de óculos fundo-de-garrafa no rosto mal barbeado. Possuía cabelos compridos até o pescoço, calçava um par de tênis, usava um jaleco branco, mas não havia qualquer identificação em seu peito como a maioria dos cientistas ali tinha. Em vez disso, em seu avental havia um logotipo na cor verde escrito Med-Clinical. Aquilo aguçou a minha curiosidade.

— Você trabalha para a Med-Clinical?

Ele encarou o próprio peito do lado direito aonde ficava posicionado o logotipo. Ajeitou os óculos de armação grossa, em seguida, falou:

— Sou o assistente de qualidade do grupo farmacêutico.

Aquele nome me remeteu imediatamente às histórias que meu pai contava da sua juventude quando ele prestava serviço de segurança para um dos laboratórios da Med-Clinical, antes do Collor e antes de toda a desgraça que se abateu sobre os Santoro...

A sala onde Namastê havia me largado antes de se retirar era espaçosa, arejada e a escrivaninha com uma poltrona presidencial ficava de costas para uma vista maravilhosa da montanha que guardava todo o complexo. O dia estava cinzento do lado de fora e raios de sol tímidos tentavam ganhar espaço no céu por entre as nuvens. Deviam ser umas dez horas da manhã.

Eu ouvi o tilintar de chaves e o mover da maçaneta atrás da cadeira onde estava sentada. Quando os passos da pessoa que adentrava o local ficaram mais audíveis, senti o meu rosto enrubescer de vergonha.

— A jornalista da Universidade Ouro Branco...

Eu estava agora sentada de frente para Rita Koguchi, a doutora a quem havia assistido a palestra sobre genoma humano há dois dias e, a quem havia blefado a fim de conseguir mais informações sobre a entrada subterrânea do centro de pesquisas. Eu dava tudo para ficar invisível e intangível naquele momento.

— Oi, doutora...

A mulher pequena se acomodou em sua poltrona e pousou uma caneca de café que recendeu todo o ambiente com o seu aroma agradável. Ela trazia consigo uma pasta com páginas soltas em seu interior e a largou sobre a mesa organizada antes de cruzar as pernas. Ajeitou os óculos sobre o nariz, abriu os arquivos e começou a ler em voz alta.

— Silmara Santoro, filha de Demétrio Santoro e Célia Nascimento. Nascida em mil novecentos e noventa no hospital público de São Francisco d'Oeste, São Paulo — Ela ergueu os olhos por cima das lentes —, aqui não diz nada sobre a sua graduação em Jornalismo. Os dados devem estar desatualizados, claro.

Havia um leve tom de sarcasmo na voz firme. Optei pelo silêncio.

— Fui informada que você invadiu uma área restrita do nosso centro de pesquisas usando um traje furtivo na calada da noite, senhorita Santoro. Posso saber o motivo?

Eu estava encolhida em minha cadeira, mas tentei usar das mesmas armas que ela para lidar com a minha situação embaraçosa.

— O que? A senhora não é capaz de ler a minha mente ou me fazer falar a verdade apenas encostando um dedo em mim?

Ela riu do meu comentário. Segurou a alça da caneca com o indicador e o médio da mão direita, bebericou o café quente e tornou a pousar o recipiente sobre a mesa de madeira.

— Infelizmente não — respondeu ela. —, o meu dom é só saber passar um cafezinho no ponto bem gostoso. Nada de ler mentes.

Eu tinha achado engraçado, mas não dei a ela o prazer de me ver satisfeita.

— Você entende bem a gravidade do que fez há duas noites, não entende? — O sorriso simpático tinha se desfeito e os olhos monólitos agora estavam cravados de maneira séria nos meus. — Invasão de propriedade é um crime severo. Você deveria estar algemada dentro de um camburão a caminho de uma delegacia, mocinha.

Me mexi na cadeira incomodada.

— De acordo com a sua ficha, o seu pai esteve em uma penitenciária durante um tempo, há alguns anos. Tráfico de drogas e posse ilegal de armas. Um fim bastante trágico para alguém que, na juventude, era um esportista amador bastante promissor...

Senti o meu sangue ferver dentro das veias e franzi o meu cenho antes de responder com todo o meu rancor exalando boca afora:

— Se quer tanto falar sobre o meu pai, eu posso conseguir um encontro entre vocês dois...

Os meus olhos fitaram um grampeador sobre a mesa e, depois, a caneta esferográfica que a mulher mantinha sobre a pasta com a minha ficha. Eu me considerava ágil o suficiente para agarrar um dos objetos antes que ela sequer levantasse a bunda gorda da cadeira. Estava possessa.

— Tudo bem, senhorita Santoro — disse ela, percebendo a minha irritação. —, não quero lhe reabrir velhas cicatrizes. Não a chamei aqui em meu gabinete para falar sobre o passado. Quero te oferecer um lugar cativo no futuro.

A minha pulsação começou a voltar ao normal. Ajeitei o quadril em minha cadeira e relaxei os músculos da face.

— Você mencionou a um de nossos alunos que veio até nós para sugerir uma parceria entre o seu empregador e o doutor Maximus Valente para a aquisição do que chamou de "armas", não é isso?

Assenti sem saber mais o que dizer.

— O nosso fundador é uma pessoa bastante abastada. Os centros de pesquisa e os grupos farmacêuticos que ele controla pelo mundo rendem milhões de dólares mensalmente entre royalties, licenças e patentes. O que o seu empregador teria a oferecer que o doutor já não tivesse em espécie?

Maranelli tinha me mantido praticamente no escuro até que eu chegasse àquele lugar. Tudo que o velho italiano havia me instruído era que ele pretendia ceder parte dos dividendos conquistados pelo narcotráfico para financiar as pesquisas de Valente sobre mutações cromossômicas e a cura para doenças degenerativas com o aperfeiçoamento de técnicas de uso de moléculas sintéticas de RNA.

Eu não conhecia o real interesse do capo por aquele tipo de assunto, ou se ele sabia desde o início que o cientista espanhol estava desenvolvendo um grupo de crianças meta-humanas em sua casa. Aquilo era tudo que eu podia informar à doutora.

Assim que expliquei o que eu sabia, ela ponderou por alguns instantes a informação e, então, disse:

— Não temos interesse em nos associar a um cartel criminoso dirigido por um homem que é procurado pela Interpol. A simples menção a essa aliança é um insulto a tudo que o Grupo Valente de Pesquisas Avançadas representa para o mundo da ciência.

— E o que o mundo teria a dizer de um experimento fracassado que transformou uma criança num animal violento e assassino?

Eu estava percorrendo um território perigoso mencionando Ed e a história contada em detalhes a mim por Talita no dia anterior. Eu não sabia do que as pessoas dentro daquele complexo eram capazes de fazer e nem o tamanho da encrenca em que estava metida, mas era petulante o suficiente para arriscar uma argumentação. Não dava para se vencer uma partida de xadrez apenas usando de cautela. Isso eu havia aprendido com Cleiton em nossas aulas junto ao tabuleiro velho que ele guardava na biblioteca.

— Não sei de que criança você está falando, mocinha. Ao que me consta, você bateu a cabeça quando tentou escapar pelos corredores do subsolo do MUGE. Nossos enfermeiros a socorreram com uma luxação no osso occipital. Ficou quase um dia inteiro desacordada. Pode ter sofrido algum tipo de trauma durante a queda.

De repente, eu estava confusa demais para continuar falando sobre tudo que havia visto e vivido há dois dias. Eu tinha sido atacada por alguém que havia me farejado mesmo em meu modo furtivo e que havia me atingido sem que eu nem percebesse como. A luxação em minha nuca não era uma invenção. Eu conseguia sentir um inchaço por baixo dos meus cabelos e ainda ficava tonta todas as vezes que me erguia rápido demais de um assento.

E se eu tivesse sido vítima de um ataque mental? E se o tal "Ed" não passasse de uma projeção física manifestada por um dos geninhos do doutor Valente? E se eu estivesse ficando completamente maluca?

— Eu... Eu vi o menino-monstro... o Guilherme e a Talita me falaram dele...

Koguchi deu um riso de canto de boca e, em seguida, disse, fechando com rispidez a minha pasta de arquivos à sua frente.

— O doutor Valente deve chegar de sua viagem à Europa nas próximas horas, minha querida. Ele já foi informado da sua presença aqui conosco e está ansioso para ter uma audiência particular com você. Até lá, vou deixá-la socializar um pouco mais com os nossos alunos para entender melhor como funciona o nosso programa de estágio. Quem sabe você também não se anime em fazer parte do nosso colégio? Tenho certeza que você se adaptaria muito bem à equipe.

Koguchi me acompanhou até a saída do seu gabinete e, quando alcancei o corredor, avistei Talita a nos esperar, como se tivesse estado ali o tempo inteiro da nossa reunião. A mulher pediu para que a garota me conduzisse até o refeitório dos estudantes num dos vários andares daquele edifício e eu a segui com a cabeça cheia de caraminholas.

Eu não sabia mais em quem confiar ou para quem pedir ajuda. Estava ainda mais aflita com a minha situação e quase chegava a sentir pavor em ter que encarar sozinha, dali a poucas horas, o próprio Maximus Valente, o cara que tinha transformado crianças comuns em bombas atômicas prestes a explodir.

Por que eu fui aceitar essa missão? pensei por um instante, muito arrependida.

O refeitório era uma área destacada do setor recreativo que eu havia conhecido no dia anterior. Talita fez com que eu a seguisse até lá e a moça me apresentou aos demais colegas pela primeira vez.

— Pessoal, essa é a Silmara. Ela está visitando o nosso centro de ciências e é a representante de um dos futuros patrocinadores do Grupo Valente de Pesquisas Avançadas.

Eu tinha perdido a minha capacidade de socializar com pessoas com idade próxima a minha e me senti acanhada quando Talita me ofereceu um assento em torno da mesa comprida onde um lauto café da manhã estava sendo servido ao grupo. Num dos lados da mesa, Guilherme devorava um pedaço de pão de forma lambuzado de geleia enquanto tomava um suco de maracujá num copo transparente. Depois da nossa pequena indisposição do dia anterior, ele não tinha mais me encarado nos olhos e me tratava com frieza.

Arrogante escroto! O xinguei mentalmente enquanto me sentava perto da menina loira de cabelos curtos.

— Oi, eu sou a Angélica. Prazer em conhecer.

A menina estendeu a sua mão gentilmente e eu a cumprimentei, desconcertada. Diante de nós, o garoto chamado Ângelo me olhava fixamente com as suas pupilas azuladas e disse, sem parar de mastigar um pedaço de broa que tinha enfiado na boca:

— Eu soube que você tem um traje tático irado que fica invisível. É verdade?

Assenti, um pouco tímida em falar sobre aquilo. Todos estavam com os olhos voltados para mim e aquilo me deixava insegura.

— Esse é o seu poder? Ficar invisível?

A pergunta tinha sido direcionada a mim por Douglas, o garoto que saltava no tempo. Ele estava sentado a duas posições de Ângelo e se fartava de um pedaço de bolo de chocolate.

— Eu também crio campos elétricos de energia e posso nocautear enxeridos que ficam me enchendo de perguntas...

A rispidez da minha resposta criou um clima tenso em torno da mesa. Até mesmo o Guilherme parou de mastigar um instante para me olhar feio e, então, decidi dar o braço a torcer. O que quer que estivesse acontecendo ali dentro daquele lugar, não era culpa das crianças. Relaxei:

— É brincadeira, pessoal! Podem me perguntar o que quiser...

Deu para perceber as respirações voltando ao normal ao meu redor e uma gargalhada gostosa ecoou da cabeceira da mesa, emitida pelo Bruno.

A maioria dos geninhos estava bastante curiosa com a minha presença ali entre eles e, apesar de eu estar invadindo um lugar particular a qual todos estavam acostumados desde a mais tenra idade, exceto o Guilherme, nenhum deles parecia incomodado comigo.

Ângelo, Angélica, Bruno e Douglas eram muito comunicativos e, por serem os mais novos do grupo, se mostravam à vontade para trocar ideias comigo, morrendo de curiosidade para conhecer a Ferina de quem só tinham ouvido falar.

— Quer dizer que você é tipo uma superespiã da pesada que cumpre missões secretas para o governo?

Bruno parecia excitado em falar comigo sobre aquele assunto e eu aproveitei para deixar a sua imaginação continuar voando longe.

— Sim, já cumpri várias missões de espionagem, mas não posso revelar muitos detalhes a vocês. Sabem como é... sigilo da profissão!

Guilherme pareceu desdenhar da minha fala e bufou antes de dizer entredentes:

— Grande espiã... derrubei você sem nem me esforçar!

A minha nuca ainda doía por conta da pancada que havia levado ao ser jogada para trás pelo campo de força invisível que o moleque mal-humorado controlava, mas não quis ficar por baixo na discussão.

— Só porque me pegou desprevenida. Quero ver quantos rounds você aguenta comigo sem o seu cãozinho de guarda por perto.

Os meninos começaram a sacudir a mesa incitando uma briga entre nós dois. Eu nunca havia frequentado uma escola e não estava acostumada a manifestações inconsequentes de adolescentes com os hormônios em fúria, mas devia ser algo parecido com aquilo que aconteceu no refeitório. Eu podia jurar que até mesmo a Talita tinha curvado os lábios grossos num sorriso quando eu desafiei o Guilherme.

— Quando quiser, "superespiã"!

Ele me encarou com frieza e eu devolvi um olhar de desafio como resposta. Estava cada vez mais a fim de encher aquela cara amarrada de tapas e o clima de briga em torno da mesa do café da manhã só aumentava quando, de repente, todos pararam com as manifestações de rebeldia com a chegada de um rapaz pela porta do refeitório.

Eu não tinha sido apresentada a ele e nem o havia visto em nenhum canto do centro de pesquisas até então, mas conseguia deduzir de quem se tratava.

— Que merda de bagunça é essa, seus desordeiros?

Érico Goldenstein era um garoto alto de cabelos rebeldes compridos cuja postura se assemelhava em tudo a um astro do Rock N'Roll. Usava uma camiseta preta rasgada nas mangas, calça justa e um par de coturnos nos pés. Tinha olhos dourados por trás dos fios longos a cair no rosto e sobrancelhas grossas. Aparentava ter uns dezoito anos e a sombra de barba em torno da face contava a mesma história.

— Foi mal, Érico — desculpou-se imediatamente Douglas, como quem respondia a um superior do exército.

— A gente só estava animado com a novata desafiando o Psyboy para uma porradaria no ginásio...

Bruno apontou em minha direção e aquela foi a primeira vez que os olhos dourados do recém-chegado se viraram para mim. Érico era incrivelmente bonito e todo aquele ar de mistério que ele exalava mexeu imediatamente comigo.

Por que ninguém me falou que o tal do Supernova era tão gato? pensei comigo mesma, mais eufórica do que devia.

Goldenstein se inclinou num dos assentos vagos perto da cabeceira e ficou de frente para Gabriela que tinha sido a única ao redor da mesa a não pronunciar uma palavra que fosse durante o café. A garota ficou sentada o tempo todo em seu lugar feito uma yuurei japonesa vestida de branco com os cabelos negros a cair à frente do rosto. Era estranhamente calada, mas fez questão de passar a jarra de suco gentilmente para o lado do colega de preto, como uma serviçal obediente.

— E o que faz da novata tão especial para que vocês estejam tão animados com ela?

O rapaz de fala grossa despejou o suco de fruta num copo e bebeu metade dele de um gole só. Não se virou mais para me encarar, mas me senti no direito de respondê-lo:

— Por que não para de fingir que eu não estou aqui e fala olhando diretamente para mim, "Supernova"?

Outra vez senti o clima gelar ao redor da mesa. Eu tinha aprendido a ficar confortável usando a minha arrogância como escudo e não gostava de abaixar a cabeça por mais desfavorável que fosse a situação. Eu tinha desafiado o próprio Toni Maranelli com uma arma engatilhada na cabeça, não ia afinar para um moleque convencido qualquer fantasiado de vocalista de banda de Heavy Metal.

Ao me ouvir dizer aquilo, Goldenstein empurrou os cabelos para trás com uma das mãos e me fitou de uma maneira como se quisesse sugar a minha alma para fora do meu corpo.

— Agora entendi porque te chamam de "Ferina". O seu poder é ter a língua bem afiada para soltar bravatas...

Mantive uma expressão de desafio no rosto e disse:

— Pois estendo o desafio que fiz ao Psyboy a você também, estrelinha. De repente, eu dou conta dos dois ao mesmo tempo!

Os murmúrios se intensificaram e o grupo em torno da mesa começou a deixar risinhos escaparem pela boca. Estavam se sentindo receosos de caçoar do garoto de atitude bad-boy ao mesmo tempo que não conseguiam segurar a vontade de incitar ainda mais o clima de confusão que eu havia criado com a minha boca grande. Eu mal tinha chegado ao local e já estava causando discórdia entre eles.

Érico enfiou um pedaço inteiro de torrada na boca e mastigou com força após me dar uma secada assustadora. Em pé atrás da sua cadeira, o Guilherme também me olhava feio, e foi Angélica quem resolveu interromper o clima de guerra, se levantando e me puxando pelo braço.

— Acho que já tivemos desafios demais para um dia só. Vem. Vamos sair daqui antes que alguém acabe destruindo o refeitório por acidente.

Apesar de toda a confusão armada durante o café da manhã, eu tinha me sentindo bem extravasando aquele meu lado mais agressivo, mas admitia que a atitude de Angélica de apaziguar as coisas entre mim, Pysboy e o Supernova era a mais acertada.

A garota que era descendente de alemães radicados no Brasil e que havia nascido em Hamburgo, era irmã gêmea de Ângelo. Os dois tinham sido trazidos ainda bebês para o país e tinham ficado órfãos após um terrível acidente que ceifou a vida dos seus pais, dois importantes geneticistas que faziam pesquisas sobre células-tronco.

Enquanto me contava aquela história andando comigo por entre os corredores de uma estufa para plantas silvestres, lágrimas se juntaram em seus olhos claros e eu comecei a entender a razão para que todos aqueles garotos se dessem tão bem entre si. A tragédia era um ponto de conexão entre as suas vidas e, por se conhecerem desde a infância, era compreensível que tivessem formado laços profundos de amizade.

Eles reconheciam bem a dor da perda familiar e enxergavam uns nos outros um traço de parentesco que não encontravam em mais ninguém no mundo. Eu, mais do que ninguém, respeitava essa ligação não-sanguínea e era incapaz de criticar a maneira como eles se defendiam.

Se eu estivesse no lugar certo, na hora certa e cruzado o caminho de Maximus Valente, eu poderia muito bem ter feito parte da Geração Suprema. Eu poderia ser um deles...

Angélica me mostrou uma espécie de planta silvestre que tinha germinado em solo infértil graças a um fertilizante orgânico especial desenvolvido em um dos laboratórios de Valente. Eu não fazia ideia que, além de genética, o cientista também lidava com agricultura, mas a menina me explicou que tudo fazia parte do mesmo ramo de análise.

— Todas as pesquisas com que o professor trabalha são em pró do bem-estar das pessoas. Ele é um homem muito bom que usa o seu intelecto para encontrar soluções para os mais diversos problemas que a raça humana tem em coexistir com outras espécies, sejam de animais ou de plantas. Você vai adorar conhecê-lo.

A estufa ocupava quase cem metros de um dos andares mais altos do prédio em que estávamos e, pelo menos vinte cientistas trabalhavam naquela parte do complexo enquanto passeávamos por seus corredores.

— Todos vocês parecem admirar muito o doutor, não é mesmo?

Ela fez que sim, animada. Angélica não devia ter mais do que treze anos e o rosto demonstrava um ar de inocência incorruptível, traços que também podiam ser vistos em seu irmão.

— Ele tem sido um pai para a maioria de nós. Tirando o Guilherme, a Talita e a Gabriela, todos os demais sofreram perdas bruscas de seus parentes mais próximos. O professor nos acolheu em sua casa e somos muito gratos ao que ele tem feito por nós todo esse tempo.

Eu continuava curiosa a respeito do garoto bonito e raivoso que tinha me sido apresentado há pouco tempo e perguntei:

— Qual é a história do Goldenstein? Por que ele é todo revoltado daquele jeito?

Angélica mexeu nos cabelos finos quase brancos antes de olhar para o chão. Parecia levemente incomodada em falar sobre o assunto, mas respondeu com firmeza:

— O Érico ficou órfão logo ao nascimento. Uma complicação na hora do parto fez com que a sua mãe não resistisse ao procedimento, e aquela tragédia mudou para sempre a família Goldenstein. O seu pai era um importante executivo do mercado financeiro na época e pôs toda a culpa da morte da esposa no bebê recém-nascido. O homem enlouqueceu com a perda que sofreu e botou o próprio filho num programa de adoção. Até que o professor aparecesse para resgatá-lo de uma vida desgastante de lar adotivo em lar adotivo, o coitado sofreu um bocado nas mãos de famílias agressivas e violentas. Ele foi um dos primeiros a passar pelo processo de aceleração genética que o professor desenvolveu e, desde então, várias outras crianças têm sido modificadas estruturalmente em seu laboratório. Tudo no sentido de corrigir pequenas falhas em seu DNA.

Eu entendia o quão gratas aquelas crianças eram pelo que Maximus Valente havia feito para retirá-las de uma vida de abandono e maus tratos, mas estava ficando cada vez mais difícil de aceitar aquela história de aceleração genética e correção de falhas no DNA.

Há algum tempo, tinha um certo médico alemão eugenista que também queria tratar certas falhas genéticas em pessoas que não atendiam ao seu gosto estético peculiar. Seu nome era Josef Mengele e ele fazia parte do partido nazista de Adolf Hitler, pensei sem verbalizar o meu incômodo.

Tinha aprendido durante as aulas de História que recebia no quinto andar do meu antigo conjunto habitacional, em minha adolescência, o quanto aquelas práticas de "correções genéticas" podiam ser perigosamente preconceituosas se praticadas sem qualquer supervisão ética.

— Mas por que ele é chamado de "Supernova". Quais são as suas habilidades especiais?

Angélica pediu para que eu a acompanhasse até um outro andar do prédio e não quis me responder até que eu visse com os meus próprios olhos um hangar específico que ficava mais ao norte do território que o centro de pesquisas ocupava.

Quando chegamos diante de uma janela ampla de vidro transparente, ela me apontou uma instalação que parecia em ruínas cheia de buracos nas paredes, telhado distorcido e marcas escuras no chão ao redor do local. Era como se a estrutura tivesse contido uma pequena explosão em seu interior e foi da seguinte forma que ela me explicou:

— Aquela estrutura tinha exatos oito metros quadrados. Era revestida de chumbo e aço e diziam que servia para testes de armas radiológicas antes que o professor adquirisse esse terreno para montar o seu centro de pesquisas. Há alguns anos, o professor e o Othon, o seu guarda-costas pessoal, levaram o Érico para o que chamaram de "teste" e o deixaram sozinho dentro do abrigo antinuclear. Ele foi induzido a liberar toda a extensão dos seus poderes e aquele foi o resultado...

O dedo indicador da garota voltou a apontar para a estrutura arrebentada a uns duzentos metros de onde estávamos, e era algo inacreditável de se ver.

— Quer dizer que ele... ele tem o poder de uma bomba atômica dentro dele?

— Mais especificamente, o poder de uma estrela ao morrer... daí o seu codinome!

Eu estava perplexa e os meus joelhos tremeram só em lembrar que eu tinha desafiado para uma briga um garoto que literalmente podia explodir um abrigo antinuclear.

— Entendeu agora porque ninguém desafia o Érico e porque eu não deixei que você o enfrentasse?

Eu engoli em seco e prometi a mim mesma que nunca mais faria nada que minimamente pudesse provocar o Supernova. Tinha aprendido a minha lição e não queria mais encrenca para o meu lado.

Muito menos uma encrenca que é capaz de me reduzir a cinzas com uma tosse, pensei, assustada e louca para mudar de assunto.

— Mas, e você e o Ângelo? Não ouvi nada a respeito dos seus dons? O que os dois são capazes de fazer?

Estávamos agora indo a caminho dos dormitórios. Tinham prometido que me devolveriam o meu traje completo após as análises que a equipe de mecânica havia feito nele e eu já estava ansiosa para tê-lo de volta. Eu queria arranjar um meio de me comunicar com Rocco do lado de fora, avisá-lo de que eu estava bem e que estava a poucas horas de ter o meu derradeiro encontro com o fundador daquele lugar.

Enquanto pensava nisso, a loira respondeu:

— O meu irmão e eu temos uma conexão profunda que interfere no uso das nossas habilidades. Individualmente, cada um de nós possui apenas 50% das nossas capacidades mutagênicas e só com o contato físico é que alcançamos a totalidade dos nossos poderes sobre-humanos.

— O que pode ser mais fantástico do que mexer coisas com o pensamento ou explodir abrigos antinucleares? — Brinquei, causando um riso na menina de rosto bonito.

— O nosso poder é mais defensivo. Eu e ele podemos criar campos de energia ao nosso redor e ainda estamos aprendendo a manipular esse campo para outras funcionalidades como projeção e expansão... As nossas mentes precisam trabalhar unidas quando utilizamos essas habilidades, e nem sempre é fácil me conectar à cabeça inquieta do meu irmão...

Angélica parecia levemente acanhada ao dizer aquilo e o assunto estava prestes a se aprofundar mais quando alcançamos o andar dos quartos e fui interceptada pela figura paciente do Namastê mais uma vez.

— Estou à sua espera já tem um tempo, senhorita Santoro. O doutor desembarcou no heliporto do centro há uma hora e ele a está aguardando em seu escritório.

O meu estômago gelou como se uma nevasca súbita tivesse invadido o meu corpo. A minha pulsação acelerou e a minha boca secou ao realizar que, finalmente, estaria cara a cara com o homem de quem tanto ouvira falar por dois dias.

Angélica deu um risinho ao meu lado e me deu tapinhas de incentivo nos ombros. Em seguida, disse, exibindo os dentes perfeitos por entre os lábios rosados:

— Você vai adorar conhecer o professor, Silmara. Ele é a melhor pessoa do mundo!

Eu queria acreditar que sim. 

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