Capítulo 15 - A Geração Suprema
A MINHA CABEÇA ESTAVA PESADA quando recobrei os sentidos e me sentia zonza como se tivesse acordado de uma ressaca de três dias. Os meus músculos estavam moles, um gosto azedo impregnava a minha boca e os meus olhos estavam sensíveis à luz.
Me desesperei quando percebi que os meus pulsos estavam algemados às barras laterais do que parecia uma maca hospitalar e esperneei tentando me livrar das minhas amarras. Todo o meu corpo doía como se tivesse sido surrada a noite toda e, só então percebi que estava sem o meu capuz, sem o cinturão, sem as botas e sem as luvas do traje da Ferina. Estava indefesa feito uma criança de cinco anos.
— Tente não se esforçar muito. Você ainda está sofrendo os efeitos do sedativo que os enfermeiros lhe aplicaram.
Uma voz feminina ecoou em meu ouvido direito e virei o pescoço em direção à porta. Através da nuvem esbranquiçada em meus olhos, enxerguei uma moça de pele preta, cabelos presos para trás em várias tranças finas e de rosto sisudo parada junto ao batente.
— Quem... quem é você?
Ela não aparentava mais do que vinte anos. Tinha aproximadamente a mesma altura que eu, era dona de um corpo sinuoso e de um olhar frio que me causou um certo mal-estar. Deu dois passos dentro do quarto de enfermaria, me observou um instante, depois, olhou para o outro canto do quarto. Eu nem tinha percebido, mas estávamos acompanhadas.
— Primeiro, queremos saber o que estava fazendo andando escondida pelos corredores do centro de pesquisas, Silmara Santoro.
Me virei para a esquerda ainda sentindo o metal gelado das algemas ferindo os meus pulsos. Um rapaz de estatura média, cabelos raspados nas laterais da cabeça e de pele escura estava de braços cruzados recostado num painel de aferição cardíaca. Eu o tinha visto só de relance na ocasião, mas o reconheci na mesma hora.
— Foi... Foi você quem me jogou contra a parede... Aquele bicho... Ele ia me comer... Você...
— O Ed não é um bicho e, com certeza, ele não ia te comer...
Os olhos do garoto de atitude arrogante percorreram o meu corpo largado sobre a maca de cima a baixo, depois, completou:
— Muito magra... Ele gosta de mais sustância!
A garota pareceu repreendê-lo com os olhos sem vida e se aproximou mais de mim. Aproximou o dedo indicador da pele marcada do meu pulso e senti um arrepio percorrer todo o meu corpo, como se uma descarga de energia negativa tivesse sido disparada contra mim toda de uma vez. Senti uma tristeza profunda apertar o meu coração e, sem poder controlar o que saía da minha boca, confessei tudo de uma vez, às lágrimas:
— Eu fui enviada por Antônio Maranelli para espionar o centro de pesquisas do Maximus Valente e conseguir um acordo de parceria para que o cientista fabrique armas para o meu empregador.
Por um momento, pensei que tivesse sido drogada por algum tipo de soro da verdade e que estava sendo induzida a contar tudo àqueles dois estranhos que me observavam feito ave de rapina dentro do quarto. O meu antebraço direito latejava como se tivessem espetado uma agulha em mim e o gosto em minha língua comprovava que haviam me dado algo para tomar à força enquanto estava sedada. Quando a garota se afastou de mim, no entanto, aquele calafrio que havia me tomado por um instante passou e eu me vi trazida ao normal.
— O que você... fez comigo, sua bruxa?
Sem esboçar qualquer reação no rosto inflexível como uma máscara, ela então se apresentou e revelou também o nome do seu parceiro.
— Eu me chamo Talita Monteiro. Ele se chama Guilherme Veríssimo. Nós somos alunos do professor Valente e queremos convidá-la para conhecer melhor o nosso centro de estudos.
Talita fez um gesto em direção ao colega do outro lado do quarto e, em seguida, deu as costas para sair lentamente da enfermaria. Movi o pescoço em direção a Guilherme a fim de descobrir o que tinha sido aquela comunicação entre eles e, antes que eu estivesse preparada, as algemas se soltaram sozinhas dos meus pulsos.
— C... Como você fez isso?
Guilherme ignorou a minha pergunta e também se dirigiu até à porta de saída. Eu estava livre sobre a maca e comecei a me alongar, sentindo como se os meus músculos estivessem inativos por dias.
Quanto tempo estive desmaiada? Um dia? Dois?
Desci da cama ainda arisca à espera que mais coisas esquisitas acontecessem comigo dentro daquele lugar e dei uma última olhada ao redor para me certificar que as partes que faltavam do meu traje não estavam mesmo ali jogadas em algum canto. Eu tinha sido abatida em missão e estava angustiada em saber que poderia ficar à mercê daquelas pessoas bizarras por tempo indeterminado.
É a segunda vez que sou capturada em menos de seis meses... Eu sou péssima em meu trabalho, pensei, desolada.
Logo que saí pela porta da enfermaria, me vi em meio a um corredor ladeado por vários laboratórios médicos onde pessoas trajando jalecos brancos pareciam trabalhar em pesquisas científicas — por falta de termo melhor. A dupla que havia me recepcionado após o meu apagão andava a poucos metros de mim e eu os alcancei apressada, ainda de olhos arregalados ao que via à minha volta.
— Onde eu estou? Que lugar é esse?
Guilherme diminuiu os passos para que eu me emparelhasse ombro a ombro com a sua amiga. Talita era alguns centímetros maior que eu e me disse, sem nem me olhar na cara:
— Você está no quarto andar do centro de pesquisas. Aqui são feitas as análises de DNA, exames de ancestralidade e codificação genética. Foi naquela sala que descobrimos pelo seu sangue quem você é e o nome com que foi registrada.
Ela apontou para uma porta à nossa esquerda e, lá dentro, vi uma equipe usando máscaras cirúrgicas e óculos de proteção trabalhando diante de microscópios e tubos de ensaio. Cocei o esparadrapo colado em meu antebraço direito por baixo da manga do traje de couro e me senti incomodada com aquela informação.
— Não sabia que com um exame de sangue simples dava para se identificar até o nome completo de alguém...
Talita desviou o olhar por um segundo em minha direção e foi o bastante para sentir de novo aquela sensação de depressão e tristeza me tomando inteira.
— Temos formas bastante eficazes de identificar qualquer pessoa pelo seu DNA, mas não vamos entrar em detalhes técnicos.
Eu acompanhei os dois até um elevador de acesso que nos conduziu a um andar abaixo do que estávamos. Luzes automáticas começaram a se acender sobre as nossas cabeças num corredor luminoso que se estendeu diante da porta. À esquerda da passagem, havia uma película transparente que nos permitia enxergar um outro laboratório na parte interna, ainda maior e mais engenhoso que os anteriores.
Como num déjà vu, vi as partes que faltavam do meu traje sendo analisadas por três cientistas que as manipulavam com instrumentos mecânicos que eu nunca tinha visto na vida. Aquilo me enraiveceu.
— Ei! Peçam para que esses caras tirem as mãos das minhas coisas!
Eu dei um murro contra o vidro e senti cada um dos ossos da mão estremecerem. Os sujeitos lá dentro nem sequer perceberam que estávamos ali e os dedos delicados de Talita tocaram o meu ombro.
— Acalme-se. Eles não vão avariar os seus equipamentos. É só uma análise de rotina.
Uma onda ainda mais poderosa invadiu o meu corpo com o toque daquela garota em minha clavícula e eu me afastei dela imediatamente, trêmula e com uma vontade incontrolável de chorar. Eu não compreendia como ela causava aquelas sensações de desespero em mim, mas não queria experimentar de novo.
— N... Não encosta em mim...
Talita ergueu as duas mãos espalmadas e assentiu. Parecendo culpada pelo que tinha me feito, a moça começou a se afastar até que eu me recuperasse e foi a vez de Guilherme se aproximar. Seus olhos negros estavam voltados para o interior do laboratório e o garoto assistiu com curiosidade aos cientistas do lado de dentro tentando ativar o gerador preso à fivela do meu cinto.
— A equipe de mecânica está há mais de dez horas tentando ativar a central de energia do seu traje, mas nada que eles testaram deu resultado. Você tem acesso a uma verdadeira maravilha da engenharia moderna. Onde a conseguiu?
Era como se eu tivesse voltado no tempo e estivesse outra vez vendo os cientistas da Die Maschine fuçando em meu traje sem ter a menor ideia de como ele funcionava. Logo que a sensação de tristeza se esvaiu de mim, dei um sorriso de canto de boca e respondi, ríspida:
— Vamos pular a parte que vocês me enchem de perguntas que eu não sei responder sobre o meu uniforme e vamos logo para a parte em que vocês me respondem, afinal, o que diabos são vocês!
Guilherme me encarou com certa curiosidade e, em seguida, indicou com o braço estendido para que eu o seguisse corredor adiante. Andamos os três até uma passagem de uns dois metros de largura que desembocou num saguão que se assemelhava a um ginásio poliesportivo.
O local era equipado com uma quadra de esportes, equipamentos de ginástica e academia. Duas saídas ao fundo davam para os vestiários, um feminino e outro masculino. Eram um cinquenta metros num nível inferior ao nosso e os sons reverberando ali eram alegres.
Em um certo espaço da área recreativa dava para se observar outros dos estudantes que faziam parte do colégio para estudos científicos do doutor Valente espalhados em suas práticas físicas. A maioria era formada por adolescentes muito jovens com idade inferior a quinze anos e Talita e Guilherme pareciam ser os "veteranos" ali.
— Esses são os nossos colegas de internato — explicou Guilherme, apontando para a quadra lá embaixo. —, assim como eu e o Ed, que você conheceu recentemente, eles também foram submetidos ao tratamento genético experimental do professor e, hoje, são dotados de capacidades extraordinárias.
Talita tinha se mantido afastada depois de me deprimir e ficou a observar os garotos a jogarem futebol na parte de baixo do ginásio. Um lance de dez degraus nos separavam deles e, além dos quatro que se divertiam correndo atrás da bola no meio da quadra, havia mais uma garota isolada sentada num canto próximo ao piso mais elevado da arquibancada, do lado inverso ao nosso.
— Como assim... "capacidades extraordinárias"?
O trio de meninos e a menina loira que se exercitavam tentando tomar um a bola do outro com os pés parecia naturalmente normal à primeira vista. O menor deles tinha cabelos lisos compridos a cair à frente dos olhos e era o mais elétrico de todos, gesticulando e articulando as palavras com a ajuda das mãos.
O outro garoto tinha cabelos pretos, era magro, alguns centímetros mais alto que o colega e se movia com graça e velocidade, quase como se não pisasse no chão.
A única menina em quadra tinha os cabelos loiros quase prateados cortados como os meus, estilo Chanel, e parecia idêntica ao quarto jogador, um garoto de cabelos cacheados dourados e olhos profundamente azuis. Até daquela distância dava para enxergar o brilho intenso da sua íris. Irradiava como a figura mística de um anjo.
— Nós a vimos na palestra da doutora Koguchi, Silmara. Sabemos que tem alguma base de conhecimento sobre sequenciamento genético e mutações.
Eles estavam me monitorando o tempo todo? pensei, levemente angustiada.
— O DNA humano é formado por cadeias muito bem sequenciadas a que os cientistas chamam de bases nitrogenadas. Já ouviu falar de adenina? Timina? Citosina? Guanina?
Eu havia lido sobre aquilo nos documentos que Maranelli havia me arranjado para estudar e fiz que sim, ainda de olho nos garotos brincando lá embaixo. A garota sentada na arquibancada parecia alheia ao barulho que os colegas faziam na quadra e segurava um livro grosso de capa escura entre as mãos.
— Os nossos genes carregam informações das nossas características mais básicas. Cor dos olhos, tom de pele, estatura... nós somos a combinação perfeita dos dados genéticos doados por nossos pais e, são essas informações que nos constituem como indivíduo.
O garoto de cachinhos dourados tocou a bola de futebol agilmente com a chapa do pé direito e a lançou em profundidade para que o menino de cabelos pretos a alcançasse rente à linha lateral no chão. Eu não tinha piscado os olhos, mas como numa fração de segundos, o garoto ligeiro pareceu se teletransportar adiante na quadra, recebendo a bola e a chutando em direção à trave do outro lado do campo. Eu tinha ficado arrepiada.
— Você viu? Ele... ele...
Eu apontei para a quadra achando que tivesse alucinando por um segundo. Guilherme olhou para a mesma direção que o meu dedo indicava e, sem esboçar qualquer reação enquanto o grupo se insultava aos gritos lá embaixo, ele simplesmente continuou o que estava dizendo antes da minha interrupção.
— O que aconteceria se alguns desses pares de genes que formam o nosso DNA contivessem proteínas desconhecidas que nos permitissem feitos extraordinários? O que iria acontecer se certas habilidades adormecidas pudessem ser despertadas e passassem a fazer parte de todo o resto que nos constitui como pessoa? De repente, além de ter olhos castanhos e a pele negra, eu poderia também ser capaz de mover objetos com a mente — Eu o encarei quando ele disse aquilo. —, ou a Talita fosse capaz de absorver o calor humano com um toque e causar sensações de incômodo em quem toca...
Um arrepio percorreu a minha coluna. Olhei em direção à garota de tranças que nos acompanhava a poucos metros de distância e ela estava me observando de um jeito sério. Guilherme apontou para o garoto de cabelos pretos ao centro da quadra comemorando o seu gol enquanto os colegas o xingavam. Logo depois, disse:
— Você não teve uma alucinação. Aquele é o Douglas Assunção. Ele foi tratado pelo professor Valente quando tinha seis anos de idade. Depois disso, foi despertado nele um gene especial adormecido que não sabia que estava lá e que lhe conferiu as habilidades de saltar no tempo alguns milésimos de segundo. O que acabou de ver foi o garoto se exibindo em quadra avançando o corpo inteiro no tempo-espaço só para chegar mais rápido à bola chutada pelo Ângelo.
Eu estava estupefata. Dei dois passos à frente para conferir se acontecia de novo, se eu era capaz de enxergar novamente enquanto aquele garoto saltava no tempo, mas a minha mente mal conseguia absorver aquela informação. Era algo fantástico demais para que eu pudesse conceber.
— Você só pode estar de sacanagem comigo!
Guilherme se aproximou outra vez e disse, em tom de sussurro:
— Está vendo a esquisita na arquibancada?
Ele apontou para a menina de cabelos longos e pretos encolhida a ler um livro. Parecia imersa em sua leitura e não tirava os olhos um minuto sequer das suas páginas.
— O que tem ela? — perguntei, curiosa.
— Ela se chama Gabriela Fontana. Foi a última de nós a chegar ao colégio. Tinha oito anos e vivia nas ruas após fugir de casa por conta dos maus tratos do pai alcoólatra. Acabou sendo atropelada pelo guarda-costas do professor Valente num dia de chuva e chegou ao centro de pesquisas praticamente morta. Diferente de todos nós, ela não possuía nenhum traço de potencialidade genética guardada dentro dela. Era comum feito um cachorro vira-latas cor-caramelo. O professor lhe fez uma transfusão de sangue com o seu próprio material genético, depois disso, empregando o tratamento que ele mesmo criou, a esquisita não só sobreviveu ao atropelamento como também passou a manifestar habilidades especiais.
A voz de Talita irrompeu:
— Para de chamar a Gaby de esquisita.
— Mas é o que ela é! — Retrucou Guilherme, ao que ficou intimidado pelo olhar incisivo da colega em sua direção.
— O que a Gabriela é capaz de fazer?
Guilherme não tinha esboçado um único sorriso desde que eu o conhecera, mas os seus lábios se curvaram daquela vez antes de ele responder:
— O professor diz que ela tem potencial para ser a segunda mais poderosa entre nós. Passa o dia inteiro lendo contos de fadas e livros de aventura para aguçar a sua mente criativa. A esquisita consegue materializar seres fantásticos com o poder da mente... É algo diferente do que apenas mover objetos com telecinese. Ela dá vida material ao que imagina. Não há limite ao que essa garota possa fazer, e é por isso que eu tenho um pouco de medo das suas habilidades.
Os gritos se tornaram mais intensos dentro da quadra e, foi num repente que a estrutura de acrílico da tabela de basquete se despedaçou do nada, como se uma vibração muito poderosa tivesse atingido em cheio o seu ponto mais vulnerável. Foi um barulho dos diabos.
— Não é porque você é o filho do professor que pode sair destruindo a estrutura da quadra, Bruno!
O garoto baixo de cabelos compridos cobriu a própria boca com as duas mãos e se mostrou envergonhado com a chamada de atenção de Talita, que parecia brava a observá-lo com as mãos na cintura. Todos pareciam respeitar a moça de tranças compridas e ela era como uma espécie de líder entre eles.
Lá embaixo, o tal Bruno se desculpou com um aceno e começou a caminhar em direção aos pedaços fragmentados da tabela agora caídos no chão. Guilherme me explicou:
— Caso não tenha percebido, as cordas vocais do Bruno são capazes de emitir uma vibração sônica bem poderosa. Os estragos que ele pode causar a objetos sólidos orgânicos e inorgânicos são enormes.
Eu tinha visto, mas ainda não tinha acreditado. A cada nova revelação, ficava ainda mais assustada com o que estava presenciando.
O Maranelli sabia sobre esses garotos? Essas crianças eram as armas que ele queria que eu pusesse as minhas mãos?
— A Talita disse que... o Bruno é filho do professor?
Guilherme assentiu à minha indagação.
— O menino foi abandonado na maternidade ainda bebê. O professor patrocinava uma clínica pediátrica há alguns anos, ficou sabendo da história do garoto por meio das enfermeiras do local e decidiu adotá-lo. O moleque é o único herdeiro de toda a sua fortuna, mas é um aluno do colégio como qualquer outro.
Eu estava cada vez mais curiosa quanto à história que Guilherme estava me contando. Do outro lado da quadra, acima dos degraus, Gabriela folheou mais uma página do seu livro e empurrou os cabelos lisos para trás da orelha, atenta em sua leitura.
— Você disse que o doutor Valente considera a Gabriela como a segunda mais poderosa entre todos do grupo, Guilherme... Quem seria o primeiro? Você?
O rapaz ao meu lado franziu o cenho e deu um passo além de mim. Se equilibrou na ponta do último degrau da arquibancada, colocou os braços para trás do quadril e respondeu, num tom pesaroso:
— Ele se chama Érico Goldenstein. O seu apelido aqui é "Supernova". Foi o segundo a ser tratado pela terapia genética do professor e o primeiro a apresentar bons resultados.
Olhei em volta como que procurando alguém que se encaixava nas descrições de Guilherme, mas percebi logo que o tal "Supernova" não estava presente.
— Se o Érico foi o primeiro experimento bem-sucedido, quem veio antes dele? E o que houve de errado?
Os gestos de Guilherme se tornaram hesitantes. O garoto continuou de costas para mim em silêncio e foi de Talita a resposta:
— Eu sou a única dos alunos do professor Valente a possuir dons especiais latentes desde o meu nascimento. Quando cheguei ao centro de pesquisas, ainda era uma criança e não entendia bem o que as minhas mãos eram capazes de fazer, o sofrimento que eu era capaz de gerar. Ainda em minha casa, na infância, eu tocava nos animais de estimação e eles morriam. Tocava em meus pais em busca de afeto e eles ficavam desesperados tentando se afastar de mim... Eu não controlava os meus dons. Causava aflição, medo, angústia nas pessoas ao meu redor... Era odiada por todos. Os meus pais praticamente imploraram para que o Maximus me levasse embora, e foi aí que ele me adotou como a sua primeira aluna no centro de pesquisas.
Aquelas pessoas tinham histórias de vida tão sofridas quanto a minha e eu estava me sentindo incrivelmente identificada com elas, apesar de ser agora uma prisioneira deles.
— O Maximus estudou os meus genes e percebeu que havia algo de anormal em meu sequenciamento genético — prosseguiu em sua explicação a Talita. —, tentou isolar o que me tornava capaz de causar medo nas pessoas e reproduziu o meu código único em laboratório. Foi com base no meu DNA singular que o professor desenvolveu o tratamento para identificar os genes latentes em outras pessoas. Depois disso, ele quis usar um processo de aceleração genética em seu sobrinho, o filho imperfeito e rejeitado da própria irmã na tentativa de curá-lo, mas falhou miseravelmente...
O garoto-monstro que me atacou... O tal "Ed". É dele que a Talita está falando... Ele é o sobrinho do Maximus Valente, só pode ser!
Os meus pensamentos estavam em polvorosa. Eu precisava desabafar:
— O doutor usou o próprio sobrinho como cobaia de um experimento que ele nem sabia que iria funcionar? Isso é terrível!
Guilherme se voltou em minha direção e me encarou com os seus olhos semicerrados. Ergueu uma das mãos a meia-altura, fez uma espécie de aceno e, imediatamente, a bola de couro parada no fundo da rede da trave a mais de vinte metros de nós voou até onde estávamos e passou a centímetros da minha cabeça como que disparada por um canhão. Eu me abaixei por puro reflexo. Talita advertiu o rapaz:
— O que está fazendo, Guilherme?
Eu estava trêmula e todos os garotos na quadra se encolheram assustados. Guilherme estava me olhando de cima com postura arrogante. Disse num tom sombrio:
— O Ed foi um dano colateral que precisou existir para que todos nós fossemos agraciados com os nossos dons especiais. Eu sou totalmente grato ao que o professor Valente me concedeu. Antes do tratamento, eu era uma criança doente que vivia com dores de cabeça lancinantes que me faziam gritar o tempo todo. Além de me curar das minhas enxaquecas, o professor destravou um dom que estava adormecido dentro de mim e que ansiava para ser libertado. Dobre a língua antes de falar mal do homem que salvou a minha e a vida de todas as pessoas que você enxerga aqui, garota.
Pisando firme no chão, Guilherme se retirou do ambiente e fez questão de passar bem rente a mim, me derrubando no chão no processo. A bola que ele havia jogado na minha direção quicava como se estivesse viva ao canto da parede que delimitava o corredor por onde ele desapareceu. O meu coração estava disparado no peito. Talita estendeu a sua mão para me ajudar a me erguer, mas eu recusei a sua ajuda temerosa de tocá-la mais uma vez.
— Eu me levanto sozinha.
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