Capítulo 12 - Perigo imediato

OS ATAQUES SUBSEQUENTES DA Brigada de Elite e do tanque ambulante que eles tinham apelidado de "Máquina Brutal" às forças de Gerônimo Falcão tinham se tornado mais incisivos nas semanas que antecederam o meu retorno à São Francisco e o resultado disso era medo e insegurança nas ruas.

Eu achava que as pistas que estava seguindo para descobrir um pouco mais sobre as ofensivas covardes do Comando Central aos bairros mais carentes da cidade eram boas e queria continuar em seu rastro, porém, no dia em que retornei ao Hotel Rios com as informações que havia conseguido recolher por conta própria, eu fui colocada de castigo por causa da minha incursão desautorizada ao bairro Constantino Vecchio, e tive que enfrentar a fúria de Caesar Berganzza.

O loiro magrelo deu o maior chilique quando me encontrou ao cair da noite em meu quarto e, como reprimenda, ele me obrigou a usar o traje da Ferina o tempo todo para que pudesse monitorar pelo computador cada passo que eu dava, tirando totalmente a minha privacidade.

Para completar o meu infortúnio, as minhas missões furtivas para descobrir os segredos por trás dos equipamentos usados pela Brigada de Elite e pelo tal Máquina Brutal não deram êxito nos dias subsequentes e, tanto Berganzza quanto Maranelli, que estava em seu complexo na Mooca, ficaram muito insatisfeitos comigo.

— Não estou investindo os milhões de dólares que essa operação tem me custado para vê-la desperdiçar tempo com passeios inúteis pela cidade, ragazza!

Berganzza tinha me colocado de frente para o notebook em seu quarto e Maranelli me dizia aquelas palavras através de uma videoconferência.

— Eu só achei que conseguiria encontrar pistas voltando aos locais que frequentava antigamente, quando era entregadora de drogas...

— Pois achou errado! — O velho estava possesso e uma veia saltava em sua garganta adiposa. — Você está nessa maldita cidade para me devolver o controle da minha organização. Isso não é um passeio de férias. A próxima vez que pensar em seguir a direção que o seu próprio nariz aponta, eu vou mandar que os homens infiltrados naquela favela queimem a casa da sua mamãe com ela e a criança dentro. Vou cuidar para que não a consigam reconhecer nem pela arcada dentária. Está me entendendo, ragazza?

A ligação foi interrompida logo em seguida e eu tinha ficado apavorada. Pensei na mesma hora que aquilo que havia acontecido com Magno e os seus funcionários dentro da pizzaria em que Henrique Harone trabalhava anos atrás poderia se repetir com Jacira e Ana Clara. O meu coração quase saltou pela boca.

Eu não vou deixar que as matem. Eu não posso deixar.

Os dias seguintes àquela chamada de atenção foram bastante tensos por conta da vigilância incansável de Berganzza, e eu comecei a dar tudo de mim para atender às suas expectativas. Apesar de novata na função de agente secreta, eu estava metida no crime desde criança e sabia me virar bem nas quebradas da cidade. Aqueles becos sujos e fedidos faziam parte do meu dia a dia enquanto eu me transformava de uma menina ingênua numa adolescente safa. Eu dominava o pensamento da bandidagem e conhecia bem o território. Aquilo tinha que valer para alguma coisa.

Uma semana tinha se passado desde a minha chegada à cidade e, usando o meu traje especial por baixo de roupas comuns, eu bati na porta de um sujeito conhecido como Reciclador que morava a alguns quilômetros da região leste, no Jardim Nova Esperança. Ele vendia informações a preços acessíveis e eu achei que valeria a pena visitá-lo.

— Qual é a senha?

O Reciclador era um velho que trabalhava disfarçado como catador de sucata pela cidade, mas que tinha informantes espalhados por cada um dos cantos do território, em especial, aqueles dominados pelo submundo do crime. O Thales de Souza havia me passado a dica da sua localização em troca de trezentos reais e eu tinha levado um pouco mais para obter do coroa as informações que eu queria. Me aproximei da porta de aço que fechava o sobrado onde ele morava e respondi:

— Tucunaré.

O Reciclador era um cara magro e encurvado com a pele morena de sol. Tinha uma cara simpática e a sua aparência não fazia jus ao que diziam dele nos becos. Eu esperava alguém mais casca-grossa e, certamente, muito mais encorpado que aquele velho caquético.

— Sinto muito, mas vou ter que revistá-la antes de começarmos, minha querida.

Antes que ele pusesse as mãos em mim, eu ergui a blusa de moletom que vestia até a altura do peito e lhe mostrei o meu traje especial por baixo. Ele fez um movimento brusco como quem quisesse escapulir do meu raio de ação, mas tentei deixá-lo tranquilo.

— Não vou te fazer mal, vovô. Vou deixar o que combinamos em cima dessa mesa, se isso te deixar mais sossegado.

Me mexi devagar e abri um dos compartimentos em meu cinto. Apanhei um maço enrolado de notas de cem e deixei sobre a mesa metálica de boteco que ele tinha aberta ao centro do que parecia uma garagem. O Reciclador não tinha a pinta de que andava armado, mas por via das dúvidas, me mantive atenta caso o homem quisesse sacar uma pistola para estourar a minha cara. A porta de aço estava fechada às minhas costas e estávamos sozinhos naquele espaço pequeno de cinco metros quadrados. Quem poderia testemunhar o meu assassinato?

— Vim atrás de informação e sei que o senhor a tem para vender.

Seus olhos estavam fixos nos meus e ele esperou que eu me sentasse em uma cadeira que fazia par com a mesa vermelha antes de dizer com a voz rouca:

— Não é sempre que recebo uma super-heroína na minha casa!

Ele tinha me reconhecido e, naquele momento, eu pensei que estava dando mais bandeira nas ruas do que imaginava.

— Você sabe...?

O lábio puído se curvou e ele disse, com expressão confiante:

— Você é Silmara Santoro, filha do falecido Demétrio Santoro, um dos homens de confiança do velho Toni Maranelli.

— E por que não disse assim que entrei pela porta?

Eu estava curiosa.

— Minha memória já foi melhor. Não a reconheci pela cara. Reconheci por causa da sua roupa.

E ele apontou para a minha barriga. Eu já tinha abaixado o moletom, mas ele havia reconhecido o traje preto e cobre por baixo da minha roupa. Tinha ficado extremamente desconfortável em constatar que eu era uma celebridade do mundo do crime.

Apesar de todo o mal-estar em saber que tanto a Ferina quanto Silmara Santoro eram rostos facilmente reconhecíveis nas ruas de São Francisco d'Oeste, a visita ao mocó do Reciclador tinha sido muito útil. Com o velho, eu descobri informações importantes que poriam Maranelli de novo em vantagem quanto aos seus inimigos e que me colocaria de volta ao seu círculo de confiança.

O sucateiro havia me dito que tanto a Brigada de Elite quanto o Máquina Brutal eram financiados pela Castle Industrial e que o novo CEO da empresa, o ambicioso Marcos Eiras, tinha reativado a divisão armamentista da companhia tão logo as investigações sobre a associação criminosa de seu antigo presidente haviam se encerrado por decorrência da morte de Carlos Eduardo Castellini Pai na prisão.

O filho do homem, Carlos Júnior, era conivente com as ações de Eiras que tinha voltado a vender ilegalmente as armas fabricadas pela Castle para milícias e esquadrões mercenários fora da cidade. Uma vez que Eiras agia como uma espécie de tutor para o moleque até que ele fosse maior de idade, era bem claro que os dois estavam envolvidos até o pescoço com a expansão bélica do Comando Central, porém, nem a polícia e nem as autoridades tinham quaisquer provas que incriminassem ambos.

Na esteira daquelas ações delituosas sem punição, homens da Brigada de Elite haviam apagado o jornalista Alex Batista e um policial de nome Pablo Pedroso por suposta associação com o Pássaro Noturno. Batista havia sido figura importantíssima na nossa luta contra a Corporação há alguns anos, e tinha sido graças ao seu artigo expositivo para A Gazeta que as autoridades, finalmente, haviam enxergado o verdadeiro crápula que Edmundo Bispo era.

No caso de Pedroso, ele tinha se mantido como um dos únicos policiais honestos que ainda restavam na delegacia da cidade durante a gestão corrupta de Romero Assis, e o coitado tinha sido apagado sem pena alguma pelo cara dentro da armadura do Máquina Brutal.

O rastro de sangue atrás do herói da cidade aumentava cada vez mais e, se bem eu conhecia o Henrique, o coitado devia estar arrasado.

Assim que voltei ao hotel aquele dia, eu reportei tudo que havia conseguido com o Reciclador sem revelar quem era a minha fonte. Eu sabia que Berganzza podia me rastrear com o dispositivo atado internamente em meu traje e que, muito provavelmente, ele agora conhecia o endereço do coroa. Para a sorte do velhote catador de sucata, no entanto, eu tinha ciência também que não interessava ao Maranelli eliminar o mensageiro.

— ...tanto os trajes blindados quanto a armadura do Máquina Brutal são projetos da Castle Industrial e estão chegando às mãos do Comando Central com o aval do próprio Marcos Eiras, o cara sentado na cadeira de presidente do grupo.

Maranelli me assistia pacientemente com as duas mãos entrelaçadas e os cotovelos sobre a mesa em sua sala luxuosa. Eu estava sentada de frente para o notebook sobre a escrivaninha do quarto de Berganzza e o seboso me observava da cama, sentado na beirada do colchão de casal.

— Não era segredo que a Brigada de Elite era obra da Castle. O próprio Castellini havia projetado os trajes quando vivo. Era de se imaginar que a pessoa que assumisse o seu lugar enxergasse a mina de ouro que uma vestimenta tática poderia render aos cofres da empresa, especialmente, para uso paramilitar.

Assenti sem nada ter a acrescentar. Ele então perguntou pela tela:

— O que mais descobriu sobre essa tal Macchina Brutale de que falou a ragazza?

— Pelo que o meu informante sabe, o projeto é único e tem sido mantido em total sigilo dentro das dependências da sede da Castle. Há alguns meses, a pessoa que comanda a armadura de combate entrou em conflito com a polícia na Boca do Crime e um agente acabou sendo assassinado no local. Uma pane elétrica pegou o sujeito de surpresa e o traje foi deixado para trás, ficando sob custódia das autoridades.

Os boatos eram que o Máquina Brutal havia batido de frente com o próprio Pássaro Noturno nas redondezas da antiga estação ferroviária onde Maranelli despachava os seus carregamentos de drogas para outras cidades, mas eu não queria que o velho capo soubesse. Se Henrique havia mesmo arranjado uma forma de deter um aparato militar bélico tão poderoso, era melhor que Maranelli não soubesse.

— O traje gigante foi levado para o depósito da polícia e dois homens usando as armaduras da Brigada de Elite acabaram sendo presos. Infelizmente, alguns meses depois, pessoas não identificadas explodiram esse mesmo depósito e roubaram a roupa blindada à luz do dia, debaixo das barbas da polícia.

Berganzza deu um risinho de deboche. Estava se divertindo com a incompetência da força policial da nossa cidade. Eu só sentia pena deles.

— Quero que fique na cidade até conseguir um fragmento, peça ou componente dos tais trajes blindados da Brigada de Elite para que os cientistas da Die Maschine possam analisar de perto, bambina. Temos que reproduzir a sua tecnologia. O nosso embate final está próximo e não podemos mais nos permitir ficar em desvantagem a esses figli di un cane.

Eu não sabia o que devia fazer para atender ao pedido que Maranelli tinha me feito durante aquela última videoconferência, mas como entendia que tanto as vidas de Jacira e Ana Clara quanto a minha própria estavam em jogo, decidi me apegar ao que havia obtido de informações nos últimos dias. Eu abri meu plano a Berganzza.

— Existe apenas um local atualmente onde podemos conseguir peças e componentes das armaduras da Brigada de Elite sem que tenhamos que invadir a sede da própria Castle Industrial ou as fábricas no interior do estado onde essas coisas são desenvolvidas...

Estávamos os dois sentados diante da escrivaninha no quarto de hotel e eu apontei na tela do seu notebook para a imagem aérea de satélite que havia pesquisado na internet. Caesar me olhou de maneira desdenhosa e, antes de responder, deu um risinho de escárnio.

— E como vai fazer para invadir um depósito de segurança máxima da polícia para conquistar o seu objetivo?

Após a ação de Pássaro Noturno com a sua ASA no bairro Constantino Vecchio, cerca de vinte soldados da Brigada de Elite haviam sido presos ainda trajando as suas vestimentas metálicas, e todo o material apreendido com eles aquele dia acabou transferido para um depósito nos arredores de Marechal LaRocca. Os soldados, a sua grande maioria ex-militares, estavam trancafiados no presídio do município vizinho a São Francisco d'Oeste aguardando julgamento, enquanto os seus trajes acumulavam poeira em armários dentro de um prédio que a autoridade local usava para guardar evidências de crimes, armas apreendidas em ação policial e coisas do tipo.

Eu não conhecia bem o depósito e não fazia ideia do tipo de segurança que iria encontrar nele, mas eu já havia invadido um cofre praticamente impenetrável há poucos meses e sabia que podia entrar no prédio, obter uma amostra das tais armaduras e sair sem que ninguém soubesse que eu havia estado lá.

— Se você arquitetar o plano de ação, eu posso invadir esse depósito para pegar amostras do traje da Brigada de Elite.

Assim como eu, Berganzza sabia que também estava com "o dele na reta" e que aquela missão em São Francisco d'Oeste era tanto minha quanto dele. Dois dias após eu dar a ideia da invasão ao depósito da polícia, com a ajuda de outros comparsas da sua rede de inteligência, o loiro carrancudo me chamou de volta ao quarto que estava usando no Hotel Rios e me explanou em detalhes todas as dificuldades que eu iria encontrar em minha tarefa. Desta vez, havia um risco grande que eu acabasse capturada ou apanhada em fogo cruzado contra agentes da polícia e, na noite que antecedeu a minha empreitada, eu mal consegui pregar os olhos de tão nervosa.

Marechal LaRocca era um município de cento e trinta e três quilômetros quadrados que fazia divisa com São Francisco. Tinha uma população média de cento e cinquenta e seis mil habitantes segundo o IBGE e mantinha em seu território um dos principais presídios do Estado de São Paulo. Na Penitenciária Municipal — a PML, como era conhecida — mantinha uma população carcerária de pouco mais de dez mil detentos e, muitos deles, eram importados de outras cidades, em especial, Calheiras, Santomé dos Prazeres e a própria São Francisco d'Oeste.

O depósito de armazenamento da Polícia Civil não fazia parte do complexo penitenciário da PML ou do departamento da polícia e ficava localizado a oito quilômetros de lá. Era cercado por muros altos de nove metros de altura, cerca eletrificada sobre suas paredes, terreno em aclive às suas costas e muitas, muitas câmeras de vigilância.

O prédio possuía cinco andares, e o térreo era a única entrada possível, já que no telhado, soldados munidos de fuzis montavam guarda dia e noite. Não havia acesso para helicópteros, jatos e nem nada que voasse. O nível mais alto do imóvel era praticamente inalcançável pelo lado externo e, se alguém quisesse mesmo chegar ao topo para dar uma olhada no tremendo deserto que se estendia por quilômetros ao redor do depósito, precisava possuir asas.

Eu sabia que o único jeito de entrar naquele depósito era passando pelo portão da frente dos veículos aproveitando uma ou outra abertura que raramente acontecia ao longo do dia inteiro. A passagem lateral dos funcionários era estreita e, assim que davam dois passos além dela, as pessoas eram escaneadas por um detector de metal estrategicamente posicionado e capaz de acusar facilmente a possível entrada de aparelho de telefone, facas ou mesmo uma moeda em seus bolsos.

O fluxo de trabalhadores que passava pelo portão estreito no começo do dia ou no final dele era a única forma de perceber que aquele não era um complexo abandonado no meio do nada e, se eu queria mesmo invadir o lugar, precisava evitar aquela passagem. Apesar da minha capacidade stealth de me manter invisível aos olhos e a sistemas de vigilância térmicos, todo o metal da qual o meu traje era constituído seria facilmente detectado por aquele equipamento na entrada. Daquela vez, eu precisava ser paciente.

Entregas veiculares de objetos recolhidos em ação policial eram mais raras do que eu imaginava naquele depósito e, no primeiro dia da minha empreitada, fui obrigada a esperar por mais de dez horas amoitada a duzentos metros do complexo até que, finalmente, um veículo se aproximasse daqueles portões altos. Eu estava ciente que se perdesse aquela carona, não teria outra chance de entrar no prédio pela entrada principal tão cedo, e corri para alcançar a carroceria da caminhonete que se aproximou lentamente.

A tarde já havia caído sobre a cidade, mas o sol que ardia intenso por quase o dia inteiro ainda brilhava no céu. Para economizar espaço para os painéis fotoelétricos internos que alimentavam as suas funções, o traje da Ferina não contava com um sistema de refrigeração como o do Pássaro Noturno, e eu estava cozinhando dentro daquela roupa justa.

Quando segurei na traseira da caçamba do veículo e impulsionei o meu corpo para dentro dela, podia sentir o suor escorrendo frio em minhas costas, pernas e braços. Eu estava inteira empapada e tudo que conseguia pensar era num bom banho de chuveiro.

Uma inspeção prévia nos objetos trazidos para o depósito precisava ser feita tão logo os veículos que vinham de fora estacionavam no pátio principal diante do prédio, mas assim que os agentes da polícia responsáveis por esse trabalho chato começaram a botar as suas mãos nas tais traquitanas de cima da carroceria, eu já tinha saltado da caminhonete e seguido complexo à dentro.

As evidências e provas recolhidas nas ações policiais precisavam ser embaladas e catalogadas antes de seguir para o depósito. Eu previa uma média de vinte minutos até que os três homens que haviam recepcionado a Pick-Up na entrada tivessem concluído o seu trabalho de inspeção. Se aquele carro deixasse o complexo antes que eu tivesse roubado o que tinha me proposto a roubar, eu ficaria presa lá dentro por um bom tempo.

Um informante da rede de inteligência de Caesar havia confirmado que os armamentos mais valiosos e de grosso calibre conseguidos pela polícia de Marechal LaRocca ficavam armazenados num salão do quarto andar do prédio. As geringonças da Brigada de Elite deviam valer milhões de reais em unidade. Vinte delas haviam sido apreendidas em uma única operação e, a menos que eles guardassem ali a própria arma que havia matado o presidente Kennedy, não devia haver nada mais valioso do que aquelas armaduras dentro do complexo.

Como previsto, o elevador estava vazio naquele horário, mas eu não podia levantar suspeitas com uma cabina aparentemente desocupada subindo sozinha no meio do expediente. As câmeras de vigilância estariam de olho em portas se abrindo ou em botões sendo pressionados por um fantasma e eu precisava passar o mais incólume possível.

O jeito foi subir as escadas e, quando atingi o quarto nível, estava exausta. Sentia que toda a minha resistência havia sido colocada à prova do lado de fora enquanto aguardava sob sol escaldante a aproximação de um veículo daquele maldito portão. A minha visão estava turva de tão desgastada que estava me sentindo e precisei recuperar o fôlego antes de prosseguir.

Aguenta mais um pouco, Silmara! Você consegue!

Torcendo para não cair desmaiada a poucos metros do meu objetivo, eu caminhei ainda totalmente invisível até a porta do salão e prendi a respiração para não ser captada pelo homem que tomava conta do lado esquerdo da entrada, sentado atrás de uma mesa de monitoramento. Ele tinha presa à cintura uma pistola e, logo às suas costas na parede, havia também uma escopeta fixada sobre um suporte. Aparentava ser a única pessoa viva em todo o andar, mas eu não tinha tempo de conferir a teoria. Passei por ele em apneia total e só voltei a respirar quando pisei na parte interna do salão.

Uma imensidão de mais de trinta metros quadrados se abriu diante dos meus olhos. Três das quatro paredes maciças do depósito estavam totalmente tomadas por estantes de subdivisões metálicas quase até o teto. Duas empilhadeiras jaziam estacionadas do lado esquerdo da entrada para alcançar os itens mais altos e, uma infinidade de objetos se sobrepunham muito bem armazenados verticalmente e horizontalmente. Por um momento, me senti perdida.

Como vou achar aquelas armaduras aqui dentro? pensei por um momento.

Ansiosa, sentindo o coração palpitar rápido dentro do peito e com a boca seca de tanta sede, cambaleei pelo salão tentando enxergar sobre a minha cabeça etiquetas nas estantes que pudessem me indicar onde estavam guardadas as armaduras. O local estava parcialmente escuro por não haver quase ninguém ali tomando conta dos objetos e eu fui obrigada a acionar as minhas lentes de visão noturna.

Com o uso excessivo dos recursos de camuflagem do traje ao longo de dez horas e a ativação das lentes infravermelhas do capuz, um aviso de exaustão do gerador em meu cinto começou a apitar e eu me desesperei com a possibilidade de que seria exposta para as câmeras de vigilância a qualquer momento. Eu sabia que o depósito era equipado com sensores térmicos e câmeras de movimento no teto. Assim que eu me tornasse visível, alarmes soariam por todo o prédio e eu estaria completamente exposta às dezenas de soldados que tomavam conta daquele lugar espalhados em outros setores.

Eu tô muito ferrada! Me desesperei em pensamento.

Ainda tentando vencer a fadiga física, corri em torno do salão de olho em todos os itens que se aglomeravam nas estantes. Fuzis, metralhadoras, pistolas e até mesmo partes de veículos apreendidos se espalhavam em montanhas de itens ensacados, envelopadas e etiquetados. Parecia não haver ali dentro nenhum sinal dos trajes de batalha pretos usados pelos aliados da Corporação, nem tampouco os elmos de visor envidraçado que ocultavam as duas identidades.

O informante do Berganzza deve ter se enganado... As armaduras não estão aqui... Aquela ideia me soava de maneira recorrente.

Enquanto os meus pensamentos conflitantes ecoavam dentro da cabeça, os meus olhos se voltaram para uma câmara de porta transparente localizada num dos cantos do depósito. Eu não sabia quanto tempo já havia se passado desde que eu tinha pisado os meus pés naquele andar, mas corri esbaforida em direção ao local e deixei o meu corpo colidir contra a camada envidraçada. Os meus lábios se torceram num sorriso desesperado quando enxerguei através do vidro inúmeros módulos do torso, braços e pernas do equipamento desenvolvido pela Castle Industrial, e a minha voz saiu como num ofego:

— Finalmente!

A porta de vidro estava fechada hermeticamente e apenas um botão com comando elétrico em um painel lateral era capaz de abri-la. Eu sabia que qualquer tentativa minha de invadir aquela câmara resultaria num alerta ao guarda do lado de fora e, posteriormente, aos seus colegas que invadiriam o depósito em um pelotão. Eu tinha pouco tempo para agir e apostei tudo num único movimento.

Todo o meu traje era capaz de ficar invisível por um processo de painéis elétricos em sua camada externa que refratavam a luz ao seu redor, mas eu não tinha a capacidade de manter nenhum outro objeto camuflado da mesma maneira. Assim que acionei o botão no painel e a porta de vidro se abriu automaticamente, eu me lancei para dentro da câmara e passei a encher os bolsos traseiros do meu cinturão com peças eletrônicas retiradas dos trajes da Brigada de Elite.

Um alarme começou a soar dentro do depósito e, em menos de um minuto, o guarda do lado de fora estava de pistola em punho olhando abismado em direção à sala especial ao fundo do ambiente. Eu já havia saído de dentro da câmara antes que o policial percebesse e, com os compartimentos das pochetes recheados de componentes, circuitos, eletrodos e placas, comecei a correr em direção à porta de saída.

A luz de fora quase me cegou quando me vi obrigada a desativar as lentes noturnas do meu visor. O alarme agora era ensurdecedor e parecia ecoar dentro do meu crânio, pressionando o meu cérebro. Além do ruído externo, o alerta de exaustão do gerador em minha fivela continuava apitando em meu ouvido e eu tinha menos de dois minutos antes que um disjuntor no sistema energético se desarmasse e eu voltasse a ficar visível.

Menos cautelosa desta vez e tendo em vista que a minha invasão à câmara protegida dos trajes da Brigada de Elite havia chamado bastante a atenção de todos dentro do complexo, embarquei até o andar térreo de elevador e cheguei ao saguão principal com o coração quase explodindo dentro do peito.

Um batalhão de soldados engatilhando as suas espingardas começou a se precipitar para os andares mais altos do complexo na esperança de agarrar o possível invasor, e muitos deles passaram apressados por mim sem nem saber que eu estava ali. Portas de aço começavam a descer do teto automaticamente para selar o local e o eco dos alarmes estremecia as paredes ao meu redor.

Nunca corri tanto em minha vida e, enquanto tentava alcançar o lado de fora, o meu pensamento era só um:

Aguenta mais um minutinho, gerador! Mais um minutinho, por favor!

Eu já conseguia sentir as células elétricas do traje se desativando internamente pelo desgaste da sua fonte energética e, quando alcancei a caminhonete que apenas por um milagre eu sabia que ainda estava estacionada no pátio, eu me joguei para dentro da caçamba e, foi então que o disjuntor se desarmou e a minha roupa preta tornou-se visível outra vez.

Cacete!

Eu ouvia vozes exaltadas ao meu redor e passos apressados. Um pedaço de lona jazia entrouxado num canto da caçamba e eu não pensei duas vezes antes de me cobrir com ela, aguardando que as células de energia se carregassem logo e eu pudesse mais uma vez me valer da minha invisibilidade tática.

Eu não fazia ideia do que estava acontecendo dentro do complexo ou que tipo de medidas os policiais estavam tomando para caçar o suposto invasor que havia entrado dentro da câmara hermética do quinto andar e acionado os alarmes de emergência. Seja lá o que estivesse acontecendo, demorou o tempo necessário para que o meu uniforme se autoenergizasse e eu pudesse voltar a me camuflar com segurança.

Quando o motorista da caminhonete rumou em direção à saída do depósito e eu cruzei o portão principal depois de uma rápida inspeção de dois guardas dentro da caçamba, a noite já havia caído sobre a minha cabeça e só então eu pude respirar aliviada. Estava exausta ao final daquele dia desgraçado, mas tinha também uma rara sensação de dever cumprido.

O meu retorno à base de operações no bairro da Mooca foi de certa maneira triunfal. Eu tinha levado aos cientistas que trabalhavam com Toni Maranelli a tão sonhada amostra da tecnologia japonesa que a Castle Industrial utilizava em seus designs de trajes táticos, e eu nunca tinha visto o doutor Wagner Heister tão sorridente quanto naquele dia em que apareci com os tais componentes eletrônicos em mãos. Era como se a Alemanha tivesse ganhado a Copa do Mundo ou como se Hitler tivesse conseguido invadir e dominar a Rússia em mil novecentos e quarenta e cinco.

— É mesmo um equipamento incrível. Pena que a fräulein não conseguiu trazer um traje completo para análise!

Eu o encarei de maneira furiosa e não consegui segurar a minha língua:

— Da próxima vez, vai você no meio de um batalhão de policiais e tenta descolar uma armadura completa!

Os olhos azuis me fitaram com a habitual arrogância, mas em seguida, o sujeito sem cabelos deu de ombros e mandou que a sua equipe laboratorial iniciasse o desmantelamento das peças das armaduras para que fosse feita a sua engenharia reversa. A Die Maschine tinha pressa para desvendar os segredos que o equipamento fabricado nos laboratórios da Castle Industrial possuía, e eles precisavam dar uma resposta imediata a Maranelli se era possível ou não replicar em seus laboratórios aquela tecnologia.

Enquanto o cientista descendente de alemães analisava os componentes eletrônicos que eu havia surrupiado, Tóth, o engenheiro-chefe, arranjou um tempo para me indagar como o traje da Ferina havia se comportado durante toda a missão em Marechal LaRocca e, mais uma vez, usei de ironia para responder:

— Desta vez eu consegui usar sem ser chamuscada, mas o gerador na fivela ainda pinica a minha barriga por dentro. Dou duas estrelinhas pelo esforço de vocês. Melhorem!

Ninguém ali era dado a brincadeiras ou a tiradas sarcásticas, e eu me divertia praticamente sozinha com as minhas ironias. Desde sempre, eu tinha usado aquele comportamento como um mecanismo de defesa. Eu me sentia desprotegida a maior parte do tempo em meio a homens perigosos e, sacaneá-los com as minhas palavras era tudo que eu tinha ao meu favor.

Em todos aqueles anos, apenas um cara realmente decente havia me passado total segurança em minha vida, mas ele estava a milhares de quilômetros de mim e eu não esperava voltar a vê-lo tão cedo, infelizmente.

Ainda naquela noite, eu estava de banho tomado após guardar o traje da Ferina em uma bolsa e estava prestes a me mandar para o meu apartamento quando a Jéssica surgiu pelo corredor dos vestiários pedindo para que eu a acompanhasse.

— O senhor Maranelli quer vê-la.

Jéssica parecia ser a única pessoa que me tratava feito gente dentro daquele complexo, e eu tinha certa simpatia por ela. Muito discreta, usava sempre modelitos de tailleur e saia social alinhados ao corpo esguio. Era apenas alguns centímetros mais alta que eu e a sua voz era doce, porém, firme.

Eu acompanhei a secretária do capo até o andar onde ficava o seu escritório e, logo na entrada do corredor, eu fui observada de cima a baixo pelo olhar incisivo do chefe de segurança de Maranelli.

Rocco era um sujeito atarracado e troncudo de cabelos aparados à máquina cuja boca eu nunca tinha ouvido soar uma palavra que fosse. Me olhava sempre de um jeito intimidador através das órbitas miúdas e nunca ficava a menos de cinco metros de distância do chefe. Agia como a sombra do velho e me espantava que aquele dia estivesse tão distante do seu escritório.

Jéssica abriu a porta e esperou que eu entrasse para que, só então, a fechasse às minhas costas. Me vi sozinha diante da figura corpulenta espremida atrás da sua mesa e me sentei à sua frente. Diferente das demais visitas que tinha feito àquele lugar, Maranelli não estava cercado de seguranças e empregados. Estava solitário em seu canto e pensamentos sádicos começaram a passear pela minha cabeça.

Eu poderia matar esse velho desgraçado sem nenhum esforço. Ele não parece muito ágil e o Rocco não chegaria a tempo de me impedir. Eu só precisaria apanhar uma de minhas facas, mirar em seu pescoço e deixá-lo agonizando em sua cadeira... Eu ia adorar assistir esse terno branco sendo tingido de vermelho!

Para a sorte do capo, eu não tinha aquele instinto assassino, e apenas joguei a minha mochila de lado para prestar a atenção no que ele tinha a me dizer.

— Você se saiu muito bem em sua última tarefa, mia piccola. Invadir um depósito da polícia não me parece tarefa fácil e eu quero parabenizá-la por seu esforço e competência.

Então pare de ameaçar a minha família e me deixa ir embora, seu porco italiano de uma figa, pensei, sem mexer um músculo da face.

Vagarosamente, Maranelli começou a deslizar uma pasta de documentos que ele tinha mantido ao centro da mesa envernizada bem à minha vista. Tinha medo de saber o que encontraria ao abri-la, mas ele me confortou.

— Não se preocupe, bambina. Não é nenhuma ameaça. Quero que abra essa pasta e veja com os seus próprios olhos a missão especial que irá desempenhar na próxima semana.

Outra missão, que ótimo! pensei, sarcástica.

Havia uma pilha de documentos e cópias xerocadas de reportagens de jornal no interior da pasta. Alguns dos artigos tinham sido retirados de publicações espanholas como El Pais e El Mundo, outras, pareciam artigos científicos publicados em inglês e até em japonês. Todos aqueles impressos apresentavam, no entanto, apenas um nome em comum e que aparecia com bastante destaque nas manchetes: Maximus Valente.

— Quem é esse tal de Valente e o que eu tenho a ver com isso tudo?

Continuei de olho nos recortes sem perder de vista também as expressões do homem enorme sentado na poltrona adiante. Sua testa se franziu segundos antes de ele responder:

— A chamei aqui em sigilo porque preciso que a ragazza faça uma investigação particular em meu nome sobre o geneticista a quem leu nesses artigos. Maximus Valente é um dos mais renomados cientistas do campo da biogenética mundial e os seus estudos já foram comprovadamente testados na teoria, embora a comunidade científica tenha certo receio de aplicá-los na prática. Muitos dizem que um sem-número de regras éticas precisariam ser quebradas antes que os avanços científicos propostos pelo homem fossem aceitos...

Havia um artigo tirado da revista Scientific American falando que Valente havia mapeado o genoma humano quase uma década antes dos segredos do DNA serem desvendados, e que ele era um vanguardista no que se referia a mutações de genes e doenças degenerativas.

— E por que é que eu nunca ouvi falar desse cara?

Maranelli riu.

— Aceite as minhas desculpas, mia cara, mas duvido muito que estudos científicos fossem o forte dos miseráveis que moravam com você naquele lixão que chamava de casa!

Eu tinha ficado ofendida, mas não podia simplesmente subir sobre a mesa e chutar a cara daquele homem asqueroso. Em vez disso, controlei a pulsação e mudei logo de assunto.

— E qual é a minha missão?

Ele juntou as mãos sobre a mesa e disse, pacientemente:

— Um dos documentos em sua mão vai te dar a localização exata do complexo em São Paulo onde Maximus Valente montou, há alguns anos, o que chama para a imprensa de "Centro de Pesquisas Científicas". Há poucas informações sobre o que realmente o cientista faz dentro desse lugar além do que ele permite ser divulgado pelos jornalistas, mas as minhas fontes descobriram que ele é dono de meia dúzia de laboratórios farmacêuticos pelo mundo e que financia o tal centro com a venda dos medicamentos que desenvolve. A sua missão, bambina, é se infiltrar nesse complexo e desvendar os segredos que permeiam a sua existência, revelando assim, o que ele realmente oculta.

— O que exatamente espera que eu encontre nesse complexo?

Maranelli colocou as duas mãos entrelaçados sob o queixo e disse, com tom bastante confiante:

— Armas, mia bambina. Quero que encontre as armas que vão me tornar capaz de rivalizar com a Brigada de Elite e o Máquina Brutal. Traga-as para mim e eu te darei a sua tão sonhada liberdade.

Eu tinha ficado profundamente intrigada com aquela proposta e estava decidida a agarrá-la com todas as minhas forças.  

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