𝓒𝓪𝓹𝓲́𝓽𝓾𝓵𝓸 𝓼𝓮𝓽𝓮

𝕺 𝖋𝖎𝖓𝖆𝖑 𝖉𝖊 𝖘𝖊𝖒𝖆𝖓𝖆 𝖛𝖊𝖎𝖔 𝖆𝖎́, trazendo consigo a chegada de Layla para suas férias. Mal sabia ela que seriam as últimas, pois descobri que ninguém se deu ao trabalho de enviar uma carta avisando as péssimas novas. Não que a carta fosse chegar, afinal estou preso aqui há seis dias e duvido que uma carta chegaria na França em tão pouco tempo.

Durante os últimos dias, meus pensamentos giravam em torno das opções que me foram dadas. Não quero ser o vilão na vida dessa tal Layla e por isso não descartei a possibilidade de fugir. Cada vez que toco nesse assunto com Nat, ela apenas ri e afirma que é impossível, insistindo que eu não entendo quem são os Evergreen. E provavelmente ela está certa, eu não sei quase nada sobre essas pessoas. Mas Nat também não me fala abertamente sobre o porquê não consigo fugir, o que me causa dúvidas.

Nathan se destacou como o mais agradável entre eles. Sempre interessado, o garoto me faz perguntas sobre a Austrália e, toda hora, me procura para compartilhar suas ideias mirabolantes. Florence, por outro lado, é mais reservada, mas nas poucas vezes em que conversamos, sempre foi gentil.

Dália, por vezes, parece carregar um sorriso ensaiado, um exercício diário para manter as aparências, considerando as expectativas que as mulheres dessa época enfrentavam no relacionamento com seus maridos. Arthur, apesar de autoritário, é meio passional. É notório que ele possui uma frieza em suas ações, mas sempre fala e age de forma pacífica. Ele me aborda diariamente para discutir seus negócios, tentando me ensinar algo, e, apesar do tom firme, mantém a educação.

Nat costuma dizer que, ao me envolver com os Evergreen, acabei preso em correntes invisíveis, e que escapar deles agora não seria tão simples. Não sei até onde ela está sendo literal, mas tenho que descobrir. A verdade é que não consigo aceitar que minha única saída para resolver essa confusão e, quem sabe, descobrir respostas seja fingir gostar de uma garota e me casar com ela. Isso não pode ser o único caminho. Eu sei que já pensei nisso várias e várias vezes, mas deve haver alguma outra alternativa.

Talvez Nat esteja exagerando. Se eu tivesse fugido no meu primeiro dia aqui, será que hoje já estaria bem longe? Minhas teorias sobre este lugar continuaram confusas: magia, máquina do tempo, fada madrinha...

A única explicação que parece plausível é que morri e acabei no purgatório. Afinal, o paraíso não deveria ser assim e este lugar é calmo demais para ser o inferno. Talvez seja apenas um teste, uma prova que preciso superar esse tormento para merecer o céu.

Nessa manhã, me senti mais melancólico do que de costume. A saudade da minha família e dos meus amigos era esmagadora. Se realmente estou morto, eles estarão sofrendo muito com a minha ausência. Pensei também nos meus fãs. Eles deviam estar em desespero, e imaginar os danos que a  minha morte causaram me deixava mais deprimido.

Eu queria encontrar uma forma de me comunicar com eles, mas seria macabro, né? Quem está vivo não quer contato com os mortos. Será que é assim que surgem as assombrações? Almas incapazes de aceitar sua morte? Porque, se esse for o caso, eu definitivamente sou uma delas. Não posso aceitar meu fim, até porque eu não tenho nenhuma resposta. Só estou preso aqui.

Fiquei pensando até mesmo sobre a proposta que o J Y Park sunbaenim me fez. Tantas coisas me aconteceram que esqueci completamente das expectativas que ele despejou em mim. E não posso deixar de me questionar se o desfecho seria o mesmo se eu tivesse dito sim desde o início.

Talvez essa situação toda seja uma brincadeira do destino, como se eu merecesse estar aqui por não valorizar a oportunidade. Tinha que admitir que o sunbaenim estava certo; ele não pode confiar as suas ações a qualquer um. Mas, eu sempre quis ser apenas um cara que faz suas músicas no seu canto. Todo o sucesso que alcancei me deixou grato, mas pensar em ir além disso ainda me assusta.

Outra ideia me ocorreu: e se tudo isso for uma coincidência da minha mente, bagunçando os últimos acontecimentos da minha vida? Arthur fez uma proposta que, segundo ele, era irrecusável e o J Y Park também fez. Além disso, fiquei obcecado com essa coisa de nunca ter me apaixonado por alguém e agora estou em uma situação onde estão tentando me forçar a me casar com alguém. Tantas teorias e nenhuma resposta.

Três batidas na porta interromperam meus pensamentos. Levantei e, ao olhar para minhas roupas — uma simples camisa branca e calça preta — constatei que estava minimamente apresentável. Ao abrir a porta, encontrei Nat, usando o mesmo vestido azul de sempre. Não digo isso para ela, mas o contraste do tecido azul com sua pele a deixa muito bonita.

— O que você faz aqui? — perguntei, sendo direto.

— Bom dia pra você também. Layla chega hoje, não é? — ela respondeu, com sarcasmo.

— De acordo com Arthur, sim — disse, fechando a porta enquanto me espreguiço.

— Então, hoje começa a saga pela nossa liberdade. Será que, assim que vocês se casarem, Arthur vai te liberar para viajar?

— Não consigo aceitar essa ideia como minha única opção — retruquei, olhando-a. Talvez seja mais fácil para ela porque não é afetada pela situação diretamente. Nat já me confessou que é egoísta, e pessoas egoístas só enxergam o próprio lado — não quero me casar. Não quero iludir uma garota. Não quero nada disso.

— Vou ser sincera: eu não me importo o suficiente com Layla para sentir pena. Só estou preocupada com a gente e em como vamos conseguir sair daqui.

— Você vive dizendo que fugir é impossível, mas nunca me prova isso — se ela começasse a me dar respostas, seria ótimo e talvez me convencesse.

Nat suspira, visivelmente cansada, e caminha até a janela para observar o horizonte. Me aproximei e tentei enxergar o que ela via, mas seus olhos estavam fixos em algo muito além das colinas à frente.

— Existe muita maldade escondida atrás daqueles sorrisos perfeitos dos Evergreen. Arthur e Dália são pessoas ruins, e isso reflete em Florence e Layla. Nathan, por enquanto, é jovem, mas é só uma questão de tempo — quando ela se voltou para mim, seu olhar capturou minha atenção de forma quase hipnótica — Para mim, a pior maldade é a que permanece oculta. A gente nunca sabe quando será vítima dela.

— Eles já fizeram algo com você? — questionei, desconfiado.

— Eles já estão fazendo com você, e você nem se dá conta — afirmou enigmática, mas logo sorri de forma descontraída — mas não se preocupe, vai ficar tudo bem. O jogo vai virar. Vamos embora muito em breve. Só precisa manter sua atuação por mais um tempo.

Queria dizer que nada está bem, mas me sentia exausto, frustrado. Se pudesse, eu me esconderia no quarto pelo resto do dia.

Nat continuou conversando comigo até o sol começar a tingir o céu com tons dourados. Esse era o sinal para ela ir até Florence, que devia estar acordando. Do outro lado do quarto, vejo uma nova pilha de roupas esperando por mim na cômoda. Sem muita cerimônia, visto-as, surpreendendo-me com o fato de já estar aprendendo a amarrar o lenço corretamente.

Arthur parece estar me moldando a sua sombra como uma figura respeitável. Ele tinha que estar muito desesperado para controlar o mercado asiático. Só isso explicaria porque ele estava arquitetando tudo isso.

"Eles já fazem isso com você, e você nem se dá conta." 

Algo não está se encaixando. Toda a situação estava fácil demais. Precisava entender o que Arthur realmente quer comigo. Seria ótimo se Nat parasse de ser tão enigmática e dissesse o que sabia. A minha nova meta era descobrir o que tem de errado neste lugar.

Decidi sair do quarto e, para minha surpresa, não demorei a encontrar as escadas principais, estou começando a decorar o caminho. A cada funcionário que cruzava, desejava um bom dia. Todos me responderam de forma tímida, como se estivessem surpresos com minha gentileza.

Enquanto andava, observei um padrão curioso: por onde eu passava, objetos e detalhes em azul predominavam. No começo, achei que fosse apenas coincidência, mas, ao chegar na sala de jantar, o azul dominava tudo — o forro da mesa, os jogos de chá... muito estranho.

Ao entrar, avistei Nathan, que sorriu ao ver.

— Senhor Bahng! Que bom que chegou! Eu estava pensando naquela criatura curiosa que você me contou outro dia. Fiz alguns desenhos e gostaria que você desse uma olhada para ver se ficaram parecidos com a vossa descrição — disse ele com empolgação.

— Claro, mas antes, qual é a da cor azul? — Perguntei ainda intrigado.

Nathan deu de ombros, sem saber responder, e, no instante seguinte, começou a tagarelar sobre ornitorrincos, retomando sua animação. Antes que eu pudesse responder, vozes altas começaram a se aproximar e fiquei em silêncio, fazendo um sinal para Nathan também de calar e assim pudermos ouvir a conversa.

— Senhora Winkle, a limpeza dos aposentos encontra-se em um estado de lamentável atraso! Layla poderá adentrar esta casa a qualquer instante, e o seu quarto ainda não se encontra em condições adequadas! Não posso deixar de comentar que outrora sua eficiência era digna de aplausos! Solicito que redobre seus esforços! — exclamava uma voz ríspida, que logo reconheci como Dália.

— Senhora, rogo pela sua compreensão. As criadas estão exaustas da tarefa anterior que lhes foi dada. Trabalharam até tarde limpando todas as tapeçarias da casa. Acompanhei tudo de perto e elas trabalharam muito.  Mas precisam de um pouco mais de tempo para concluir a tarefa — respondeu à governanta com tom cauteloso.

— Ah, sempre a mesma justificativa, não é verdade? Essas pessoas desejam receber seus salários, mas, ao que parece, não têm a intenção de trabalhar com a devida dedicação! Tens até o almoço para que todas as tarefas sejam finalizadas. E, acredite, a última coisa que a senhora vai desejar é me ver irritada.

E então as duas apareceram na sala de jantar. A expressão da governanta era de submissão absoluta, a mesma que já vi em Nat quando está na presença de Dália e Arthur. Isso me incomodava muito. Assim que Dália notou minha presença, sorriu como se nada tivesse acontecido. Ignorando qualquer necessidade de resposta da governanta, ela decretou:

— Pode ir, senhora Winkle. Já terminamos nossa conversa.

Assim que a governanta saiu da sala, Dália voltou para mim com um sorriso.

— Senhor Bahng, que surpresa! Geralmente o senhor só desce para o desjejum quando é chamado.

— Estava entediado — respondi, segurando a língua, mas incapaz de ignorar a conversa que acabara de escutar — perdão, senhora Evergreen, mas ouvi direito? Seus empregados trabalharam até de madrugada limpando tapetes?

— Isso lhe incomoda? — ela rebateu, sem rodeios — se cumprissem suas obrigações com o zelo que se espera, poderiam repousar em paz ao final do dia. Contudo, não passam de indivíduos preguiçosos — sentou-se em sua cadeira habitual, ajeitando a postura com elegância — já se foi o tempo em que contávamos com criados competentes.

— Em que época? Na escravidão? — devolvi, num tom que não ocultava meu desgosto. Dália percebeu minha provocação, mas apenas sorriu de forma debochada.

— Senhor Bahng, deixe que com a criadagem eu me entendo. Sua única preocupação neste momento deve ser a iminente chegada de Layla. Concentre-se, por favor, em assegurar que tudo esteja em ordem para recebê-la.

Enquanto ela falava, a raiva crescia dentro de mim. Eu não consigo entender como alguém se sente tão superior a ponto de tratar outros assim. Meu estômago revirava, e todo meu apetite se foi. Quando o café da manhã foi servido, engoli apenas um pouco de chá para que ninguém fizesse perguntas do porque não queria comer. Assim que pude, retirei-me para o quarto, me sentindo impotente em meio a injustiça. Saber que pessoas estão sendo exploradas dessa maneira, sem ninguém para defendê-las, era revoltante.

Mas talvez houvesse algo que eu pudesse fazer.

Deixei o quarto determinado e percorri os corredores até avistar uma jovem de pele parda e cabelos negros presos em uma trança. Ela estava ajoelhada no chão, encerando o piso. Ao me aproximar, ela se assustou.

— O senhor precisa de algo? — perguntou, colocando-se na postura submissa que todos adotam nesta casa. Notei suas olheiras profundas, resultado do evidente cansaço.

— Preciso de outro pano como esse — respondi, apontando para o que estava em suas mãos.

Hesitante, ela olhou ao redor, pegou um pano de outro balde e me entregou. Agradeci com um sorriso e, sem cerimônias, me ajoelhei para ajudá-la com o chão. Sua expressão foi de puro desespero.

— Senhor! O que está fazendo?

— Quatro braços trabalham melhor do que dois. Nunca encerei um chão antes, mas parece que não é tão difícil, né?

— Senhor, isso é inadequado! Essa é minha tarefa, e o senhor vai acabar sujando vossas roupas.

— Qual é o seu nome? — perguntei, tentando tranquilizá-la.

— Marta... — respondeu com relutância.

— Então, senhorita Marta, poderia me ensinar como se faz? Assim terminamos mais rápido.

Ela insistiu em protestar, mas acabou cedendo. Relutante, ajoelhou-se novamente e explicou o processo. Trabalhamos juntos até todo o chão brilhar.

Eu teria ajudado mais, só que infelizmente a senhora Winkle me encontrou e exigiu que eu fosse trocar de roupa, pois as minhas estavam sujas. Não demorou até Arthur me chamar para mais uma de suas intermináveis conversas, repetindo histórias sobre Layla. Descobri que a jovem foi acolhida pela família depois de um trágico acidente que matou seus pais. Ele parecia ansioso para que eu considerasse isso um gesto nobre, como se quisesse minha validação.

Ele não fez mais do que a sua obrigação. Era sua sobrinha, independente se era afrodescendente ou não. Talvez seja essa a maldade que Nat vinha me alertando, são pessoas racistas e suas falas e gestos são preconceituosas, se sentem melhores que outros por serem brancos.

Quando finalmente fui liberado, escapei para a biblioteca, onde encontrei Nathan. Ele estava ansioso para jogar xadrez comigo. Não sou bom nesse jogo, mas Nathan domina a arte sem muito esforço e faz questão de evidenciar isso.

— Xeque! — exclamou, com um sorriso triunfante.

— Você é ótimo... ganhou mais uma de lavada — admiti, sorrindo sem surpresa.

— lavada? — ele arqueou a sobrancelha, sem entender o que quis dizer.

— Quis dizer que ganhou facilmente.

— Você precisa de mais técnica e análise. Sempre cai nas minhas armadilhas! — brincou enquanto reposicionava as peças.

Nathan gosta mesmo de passar seu tempo comigo. Imagino que, sem outras crianças ou adultos que pareçam interessados em lhe dar atenção, ele me veja como uma espécie de amigo — algo que, por mais improvável que seja nesta situação, também me conforta porque eu gosto dele.

Continuamos jogando até que a porta do salão se abriu, revelando a imponente figura da Sra. Evergreen. Ela vestia um elegante vestido branco, repleto de babados, com seus cabelos meticulosamente alinhados e o rosto coberto por uma generosa camada de pó de arroz. Sua presença trouxe na mesma hora um ar de autoridade.

— Senhor Bahng, lamento interromper o jogo, mas preciso que vá se trocar. Layla deve estar chegando a qualquer momento — anunciou, com um tom que não deixava espaço para questionamentos.

— Está roupa já não é o suficiente? — eu havia acabado de trocar de roupas porque as minhas sujaram com cera.

— Por favor, senhor Bahng. É esta a maneira com que se apresentará a uma dama? No quarto, deixei dispostas vestes mais condizentes com a ocasião. Vamos, apressem-se os dois, pois ambos devem se preparar com a devida urgência para este encontro!

— Mas mamãe, estamos jogando! — protestou Nathan, ainda que ambos soubéssemos que a reclamação seria inútil.

— Sem "mas". Você também necessita trocar de roupas. A senhora Winkle já dispôs tudo em seu quarto e eu não irei mandar de novo — decretou com firmeza.

Nathan me lançou um meio sorriso de desânimo antes de caminhar em direção à porta. Levantei-me, resignado, e segui para o corredor, acompanhado pela Sra. Evergreen, que logo começou a falar:

— Escolhi trajes muito elegantes para o senhor. Eu tomei a liberdade de providenciar a presença de Carlisle amanhã. Ele irá lhe confeccionar roupas novas.

— O quê? — perguntei, surpreso com a menção do nome desconhecido.

— Carlisle é o melhor alfaiate da região. Ele garantirá que estejas bem-vestido e à altura de nossa família.

— Senhora Evergreen, não precisa disso. Eu não quero roupas novas — falei o mais rápido que pude, ainda que, no fundo, soubesse que realmente não tinha nada no guarda-roupa.

Não queria que gastassem dinheiro comigo, tampouco criar mais obrigações ou dívidas com essa família.

— Ora, não sejas tolo, Senhor Bahng. É claro que as roupas de meu marido lhe caem muito bem, mas vós serás um de nós, precisa estar à altura.

Chegamos à porta do meu quarto e um jovem esperava pacientemente.

— Charles irá ajudá-lo. Espero que as roupas sejam de seu agrado — disse a Sra. Evergreen, antes de se afastar com elegância.

Entrei no quarto e notei as roupas organizadas sobre a cama. Apesar da minha vontade de dispensar a ajuda do tal Charles, ele ficou na minha cola, impossibilitando qualquer chance de me vestir sozinho. Pouco a pouco, ajustamos as peças no meu corpo e, ao me olhar no espelho, devo admitir que o resultado era impecável.

A calça marrom escura combinava perfeitamente com o colete da mesma cor, enquanto a gola vinho destacava-se sob o lenço branco. O sobretudo marrom finaliza o conjunto com classe. Queria usar meus tênis, mas Charles sequer me deu brecha para essa possibilidade, deixando claro que os sapatos sociais eram indispensáveis.

Enquanto ele terminava de ajeitar meu cabelo em frente ao espelho, a porta se abriu de repente, e Natalie entrou com sua energia usual.

— E aí, Charles! — cumprimentou com naturalidade.

— Nat, o que a senhorita está fazendo aqui? — Charles verbalizou o que estava na minha mente, parecendo tão surpreso quanto eu.

— Cumprindo ordens. Layla chegou. Precisamos ir lá para baixo agora! — informou, apressada.

— Não acredito que realmente vou fazer isso — murmurei, soltando um suspiro pesado. Parte de mim achava que talvez eu merecesse ser cancelado por estar cedendo a essa situação absurda. A outra me dizia que ninguém podia me julgar, pois estou apenas tentando sair daqui.

— Pois acredite — rebateu Natalie brevemente, controlando o tom, já que Charles ainda estava presente. Tínhamos concordado que seria prudente disfarçar o quão próximos somos.

Agradeci a Charles pela ajuda e segui Natalie pelos corredores. Ela usava os cabelos presos em um coque modesto, uma pena, pois eu preferia vê-los soltos e levemente bagunçados, o que parecia combinar mais com sua personalidade. Mas já notei que as mulheres daqui só usam seus cabelos soltos se estiverem em momentos descontraídos.

Quando nos aproximamos da escadaria principal, minhas pernas pararam repentinamente. A ansiedade tomou conta de mim, e precisei encostar na parede, inspirando fundo para tentar me acalmar.

— Chris! O que está fazendo? Você precisa descer — Natalie reclamou, impaciente.

— Eu não posso fazer isso, Nat. Não posso fingir gostar de alguém e, muito menos, me casar apenas para sair daqui. Não é justo nem comigo, nem com ela...

— Por que se preocupa tanto com Layla? Preocupe-se com você — ela interrompeu, incisiva.

— Eu...

— Se você falar sobre fugir outra vez, juro que te dou um soco, Christopher! Não faz muito tempo que três empregados desta casa morreram de forma misteriosa, justamente porque tentaram escapar. Já te disse que Arthur e Dália são pessoas ruins. Se quer sair daqui em segurança, o melhor que pode fazer é cooperar e seguir o fluxo. E mais uma coisa: você nem precisa tocar em Layla. Apenas seja agradável e tudo estará resolvido. Por favor, não desperdice a chance que a vida nos deu...

Seu pedido me desarmou de vez. Natalie me olhou diretamente nos olhos, e naquele instante senti o peso de sua tristeza. Ser forçada a viver aqui durante três anos, como uma serva, quando havia sido uma mulher livre no século XXI, era devastador. Tudo o que ela tinha sido, tudo o que deixara para trás — amigos, emprego, talvez até um relacionamento — parecia perdido. Por algum motivo, eu havia me tornado sua última esperança de sair desse pesadelo.

Suspirei e assenti. Assim como ela, eu queria encontrar uma saída, mas também não posso perder a oportunidade:

— Eu farei tudo o que me for imposto, para termos nossas vidas de volta, com uma condição.

— Não é hora pra isso, Chris...

— Você vai me contar o que acontece de errado nessa casa. Contar não, mostrar. Estou cansado dessa sua afirmação de, são pessoas ruins, mas não me provou o contrário. A meu ver, são só pessoas com costumes da época. Então se quer mesmo meu apoio, vai ter que ser mais convincente.

Nat ficou em silêncio, apenas me encarando, mas faz que sim com a cabeça:

— Eu queria te poupar da verdade, mas você tem razão. Me encontre hoje a noite na cozinha e eu te mostro — ela disse de forma séria e virou o meu corpo em direção às escadas — mas agora você precisa ir até lá.

Respirei fundo e segui em direção as escadas, me sentindo um pouco mais leve porque teria algumas respostas. Caminhei até chegar ao topo da escadaria principal. Foi aí que meu olhar encontrou Layla pela primeira vez.

Ela estava no hall, cumprimentando os tios com um sorriso educado. Ela me encarou com curiosidade e pude notar como ela era bonita. Sua pele negra brilhava de forma radiante, e os cabelos, presos sob um discreto chapéu, possuíam mechas soltas que caíam ao redor do rosto. O vestido branco que usava era adornado com flores azuis delicadas, complementado por mangas bufantes e uma gola alta decorada com pedras brilhantes — não havia dúvidas de que eram preciosas.

A cada passo que eu dava, sua figura se tornava mais nítida: lábios carnudos e bem desenhados, um nariz levemente arrebitado, olhos grandes e bem escuros e sobrancelhas pequenas, porém bem marcadas. Engraçado, no quadro que vi, os seus olhos eram azuis.

Layla interrompeu a conversa ao me ver se aproximar. Assim que a Senhora Evergreen notou minha chegada, deu um sorriso satisfeito e fez um sinal para me aproximar mais. Florence e Nathan também estavam ali, vestidos como se estivessem indo para um baile, a necessidade de manter as aparências de riqueza eram gritantes nessa família.

Engoli em seco, sentindo a garganta apertada, e lancei um olhar a Natalie. Em resposta, ela me deu um empurrão encorajador, quase forçando meus pés a se movimentarem, e se colocou ao lado de Florence. Cada passo me fazia sentir ainda mais errado, como se estivesse infringindo várias regras. Minha mente estava um caos, ofuscada pela ansiedade que crescia com rapidez.

Espero, sinceramente, que isso seja a chave para sair daqui, porque a última coisa que quero é ter que realmente me casar com uma garota tão jovem – e ainda por cima fingir que estou interessado nessa absurda união.

Layla manteve seu olhar curioso enquanto me posicionava ao lado de Dália. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a voz de Arthur soou firme e autoritária:

— Layla, querida, lamento não ter lhe escrevido para comunicar-lhe as notícias de grande importância. Contudo, creio que o que está por vir lhe agradará bastante. Este jovem à sua frente é o senhor Christopher Bahng, um nativo da Austrália, uma das colônias inglesas. Sei que sua curiosidade acerca dos olhos puxados do rapaz é grande, mas asseguro-lhe que ele se expressa muito bem na nossa linguagem.

Eu nunca vou entender porque as pessoas de antigamente falavam desse jeito. Ele parecia estar lendo um texto para anunciar que sou asiático, mas falo inglês. Por um momento, ela apenas me olhou, como se estivesse tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça.

— Eu deveria conhecê-lo? — questionou, com uma mistura de curiosidade e frieza no olhar.

Senti o peso dos olhos dela varrendo cada detalhe meu, analisando-me de forma minuciosa, como se já estivesse me julgando em seu silêncio. Lá estava eu, sem a menor ideia do que fazer. Será que deveria cumprimentá-la com um sorriso? Manter-me sério e formal? Minha hesitação só ficou mais evidente pelo fato de tanto Arthur quanto Dália fixarem seus olhares em mim, claramente esperando alguma ação.

— E-Encan... Encantado em conhecê-la, senhorita Evergreen — gaguejei, minha voz soando quase tão desajeitada quanto minha postura ao tentar esboçar alguma formalidade.

Layla fez uma leve reverência, mantendo sua expressão neutra, antes de responder:

— Nunca tive a oportunidade de ver um chinês ou seus descendentes por aqui.

— Não sou descendente de chinês... sou descendente de coreano, mas isso não importa agora — corrigi, tentando soar mais firme.

— E onde fica a Coreia? — perguntou, com um tom que oscilava entre a curiosidade genuína e a indiferença.

— Perto da China — respondi rapidamente, pensando que seria mais fácil encurtar a explicação.

— Portanto, és quase um chinês — disse ela, arqueando uma sobrancelha de forma discreta, mas que ainda parecia carregada de julgamento — e não é para a Austrália que a coroa envia todos os piores prisioneiros? Assassinos, ladrões de banco, inimigos do rei... em qual desses você se encaixa senhor Bahng?

Antes que eu pudesse responder algo, Arthur interferiu, tentando conduzir a conversa para onde queria.

— Layla, querida, peço-te encarecidamente que não se mostre indelicada para com o Senhor Bahng. Ele será meu assistente e terá a honrosa incumbência de me representar nas terras da Ásia, onde se empenhará em fechar negócios de grande importância.

Layla manteve o olhar fixo em mim, como se estivesse tentando fazer uma autópsia minha e me desmanchar todo. Seus olhos, embora calmos, transmitiam uma irritação. Por fim, com o mesmo tom distante, respondeu de forma cortante:

— Mais um vassalo seu, não me interessa. Gostaria de ir retirar para meu quarto agora, se me derem licença.

Arthur não parecia satisfeito em deixá-la partir tão rapidamente e aproveitou para revisitar o verdadeiro motivo daquela apresentação forçada.

— Layla, eu decidi que o Senhor Bahng deve estar casado uma moça de boa índole. Alguém que lhe confira respeito e fortaleça nossos laços. E quem, senão você, poderia ser a escolha mais apropriada? Sendo membro de nossa família, juntos poderão alcançar a posição e consideração que almejamos. Por tal razão, declarei que o senhor Christopher Bahng se unirá em matrimônio a ti.

Naquele instante, Layla voltou a me examinar dos pés à cabeça como se tivesse ouvido a coisa mais ofensiva de sua vida. Dessa vez, suas emoções foram mais difíceis de esconder. Apesar da expressão neutra que carregava no rosto, havia ódio em seus olhos. O silêncio que se seguiu foi quase sufocante.

Eu devia ficar feliz, pelo visto não foi só eu que achou a ideia absurda.

— Estás a brincar comigo? Tentando me rebaixar me forçando a se casar com ele? — a forma como me olhou não me deixou mais dúvidas.

Layla estava sendo xenofóbica. O olhar indiferente que ela me lançou o tempo todo era de nojo e ficou mais evidente. Não posso evitar rir e seu olhar afiado de voltou a mim novamente.

— Não consegui entender a graça.

— Você está sendo preconceituosa comigo, porque sou asiático? Esperava um pouco mais de empatia vindo de você — não consigo evitar dizer e seu olhar se volta para o ódio, mas ficamos em silêncio.

Depois de um tempo, Layla quebrou a tensão com um tom cortante e disse:

— Estou deveras cansada. Melhor me retirar para ter um descanso adequado antes do jantar. Com licença.

E, com passos rápidos, deixou o local sem olhar para trás. Ficou óbvio que aquilo havia sido uma fuga. Arthur me chamou para conversar no escritório e o segui, indo em direção às escadas. Quando passei por Florence e Nat, a minha amiga não perdeu a oportunidade de me cutucar:

— Eu te disse que ela não era um doce.

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