𝓒𝓪𝓹𝓲́𝓽𝓾𝓵𝓸 Q𝓾𝓪𝓽𝓻𝓸
𝕿𝖚𝖉𝖔 𝖊𝖗𝖆 𝖊𝖘𝖈𝖚𝖗𝖎𝖉𝖆̃𝖔. Não havia sons, nem dor. Eu não sentia nada, apenas a presença sufocante do vazio. Tentei falar, mas minha voz parecia presa em algum lugar dentro de mim, enquanto um formigamento estranho dominava meu corpo inteiro. Quanto mais me esforçava para me mover, mais desconfortável ficava, até que um pequeno ponto de luz surgiu à minha frente.
Apertei os olhos, tentando discernir o que era aquela luz. Era algo indefinido, sem forma concreta. Mesmo assim, forcei todo o meu ser para avançar em direção a ela, mas meu corpo não respondia. Senti-me preso, impotente. Continuei observando intensamente o ponto luminoso até perceber, com certa surpresa, que ele... era azul.
De repente, um vento frio soprou em minha nuca e me fez despertar. Abri os olhos devagar e, diante de mim, uma borboleta-azul batia as asas suavemente. Por instinto, tentei tocá-la, mas ela voou, me forçando a olhar ao redor. Foi aí que percebi que estava deitado sobre um gramado farto e verdejante.
A textura das folhas arranhava levemente minha pele, enquanto o cheiro forte, mas reconfortante, da terra úmida invadia minhas narinas. Apenas alguns passos à frente, vi dentes-de-leão balançando com a brisa. Foi nesse momento que percebi o óbvio: eu estava deitado, literalmente, com o rosto colado na grama.
Com dificuldade, levantei meu tronco e tentei compreender o que acontecia ao meu redor. Para onde quer que meu olhar se direcionasse, só havia grama, árvores e mais árvores. O céu acima de mim era de um azul limpo e vibrante, salpicado por poucas nuvens brancas que pareciam pinceladas. Era um dia que eu jamais veria na agitação urbana de Seul. A brisa continuava a acariciar meu rosto, e o ar... aquele ar puro e fresco era como um lembrete doloroso de algo estava muito errado...
Passei as mãos pelo meu corpo, confirmando, com alívio, que estava inteiro. Minhas roupas eram as mesmas que eu havia escolhido antes de sair: calça, jaqueta e meus sapatos confortáveis. Na mão, ainda segurava as violetas e o chocolate que pretendia entregar. Sem saber exatamente o que fazer, guardei os doces no bolso da jaqueta e segurei as flores com força, tentando discernir um significado para toda aquela situação.
Eu havia morrido? Que outra explicação lógica existiria? Me lembro do carro se aproximando em alta velocidade, seus faróis cegando minha visão, e depois disso "prados e campinas verdejantes". A confusão me dominava. Tentei despertar daquilo com métodos simples: dei tapas no meu rosto, puxei os cabelos, belisquei o próprio braço. Senti cada uma das dores. Não, eu não estava sonhando.
Tentei me levantar, embora minhas pernas ainda parecessem estranhas, formigando levemente. Olhei ao redor outra vez, totalmente perdido. Eu não fazia a menor ideia de onde estava, tampouco para onde ir. "Que situação mais maluca!", pensei. Se tivesse mesmo morrido, será que aquilo era o céu? Sempre imaginei que o paraíso de cada pessoa refletisse seus maiores sonhos. O meu, sem dúvidas, seria algo relacionado à música. Talvez um estúdio infinito, cheio de inspirações. Isso não fazia sentido.
Mas, se eu estava morto... e meus amigos? Minha família? Julie? E o Stay? Meu Deus... será possível que todos estejam arrasados agora? Esse pensamento foi como um soco. O desespero subiu à minha garganta. Droga. Eu não podia estar morto, não assim! Era cedo demais. Ainda havia tanta coisa que eu queria fazer, tantos projetos que não se concretizaram. Meu coração pesava de uma forma que nunca imaginei sentir.
Então, um barulho ecoou a uma distância incerta: cascos golpeando o chão. Meu corpo congelou por um instante. Olhei na direção do som e vi, para minha surpresa, um homem montado em um cavalo galopando rapidamente em minha direção.
Instintivamente, comecei a correr, ainda sem saber ao certo para onde. Não queria saber quem era aquele homem e, principalmente, o que ele queria comigo. No entanto, o cavalo disparava com velocidade impressionante, reduzindo rapidamente a distância entre nós. Ele me ultrapassou com facilidade e parou à minha frente, me forçando a recuar. O susto foi tanto que cai sentado na grama estragando as violetas.
— Alto aí, rapaz! — gritou o homem, com um inglês carregado de autoridade. Ele me analisava como se eu fosse uma criatura bizarra.
Olhei ao redor em desespero, buscando alguma coisa — uma pedra, um galho — qualquer coisa com que eu pudesse me defender. Mas não havia nada. Enquanto tentava formular um plano precipitado, reparei melhor nele: vestia calças pretas e botas gastas, uma camisa branca amarelada e um colete que parecia ter sobrevivido ao tempo. Sua barba por fazer e os cabelos longos completavam o ar de alguém saído diretamente de um filme antigo.
— Quem seria você? — a voz dele soou novamente, desta vez com um tom mais inquisitivo. — Ah, presumo que vós não compreendais o que estou a proferir. Vós, chineses, tendes um linguajar peculiar.
— Eu que tenho que perguntar isso. Quem é você, moço?! — respondi sem pensar, minha voz beirando o descrédito.
Sua reação foi de choque imediato. Parece que ouvir um asiático falando inglês era a coisa mais absurda que já presenciara. Sua postura ficou mais rígida:
— Quem ousa a interrogar sou eu! Vós tendes profanado as terras da família Evergreen. Diga-me, quem é você?!
Família Evergreen? Pelo sotaque, ele só podia ser britânico. Mas o que diabos um britânico estava fazendo no "meu paraíso"? Aquilo era ainda mais confuso do que já estava.
— Tá bom, meu nome é Bang Chan — disse num tom cauteloso.
A expressão dele continuou confusa. Parecia não entender o meu nome, e fiquei imaginando se teria que soletrar. Por via das dúvidas, reformulei:
— Christopher Bahng.
— Pois bem, senhor Bahng. E qual o propósito que traz um homem como vós a estas paragens?
— Quê? — O inglês do homem estava tão politicamente correto que era difícil compreendê-lo.
— Estais surdo?
Olhei para ele nervoso, só quero encerrar essa conversa. Antes que eu pudesse responder, ele desmontou do cavalo e, para meu horror, tirou uma corda da sela, vindo em minha direção como se eu fosse um animal para ser capturado. Não perdi tempo e me coloquei à correr.
— Pare agora! — bradou o homem, sua voz firme ressoando como uma ordem inegável.
O ignorei completamente. Movido pelo instinto, continuei a correr e meu coração batendo descompassado. As árvores ao meu redor eram borrões no campo de visão, e meus pulmões mal conseguiam acompanhar o esforço.
— Me deixa em paz! — gritei de volta, sem ousar olhar por cima do ombro.
Eu não tinha a menor ideia de para onde ir. Não existia um rumo, apenas o desejo desesperado de escapar daquele estranho que parecia determinado a me perseguir. No entanto, minha fuga teve um fim rápido. Antes mesmo que conseguisse raciocinar direito, senti um puxão brutal que me fez cambalear. Só então percebi: ele havia me laçado. Sim, laçado, como se eu fosse algum animal selvagem. A corda apertava meu corpo de forma incômoda, e a humilhação queimava tanto quanto o cansaço.
"Quem, no século XXI, laça pessoas?", pensei, entre incrédulo e furioso.
— Me solta! Maluco! — protestei, me debatendo inutilmente contra aquela amarração desconfortável.
— Me acompanharás até o senhor Evergreen — respondeu o homem com seriedade, ignorando meus apelos e movimentos de resistência.
Ele apertou a corda com firmeza e começou a puxar, obrigando-me a segui-lo como se eu não passasse de um prisioneiro. Soltei gritos pedindo ajuda, mas nem eu mesmo acreditava que alguém poderia surgir para me socorrer. Estava completamente à mercê daquele maluco. Enquanto era arrastados por aquele caminho interminável, tentei, pelo menos, entender onde estava.
O ambiente ao meu redor era completamente estranho. A vegetação era diferente de tudo que eu conhecia: árvores altas com folhagens densas, mais ao fundo matas que pareciam selvagens, e uma brisa de verão tão leve e fresca que seria agradável... em qualquer outra situação. Nada ali lembrava a Coreia do Sul. Era como se eu tivesse sido transportado para outro mundo. "Se este é o paraíso", pensei, confuso, "ele deveria fazer mais sentido."
Andamos por um bom tempo, e agradeci mentalmente por estar com um par de sapatos confortáveis. Mesmo assim, minhas pernas começaram a arder, implorando por descanso. O homem, claro, não parecia se importar. Esforcei-me para manter o ritmo do passo pesado dele, me recusando a demonstrar mais fraqueza do que já tinha. Foi quando alcançamos uma área cercada por longas cercas de madeira. Pude avistar outros homens cuidando de cavalos majestosos, enquanto o verde ao nosso redor parecia se alastrar infinitamente.
Passamos pelos homens, todos vestindo roupas parecidas com as do meu captor: calças grossas, botas de couro e camisas simples, que pareciam saídas de algum outro século. Eles me encaravam como se eu fosse uma criatura exótica. E, bem, fazia sentido. Até agora, eu não tinha visto outro asiático por ali. Todos eram brancos ou negros, e a minha presença parecia despertar curiosidade, como se eu fosse uma aparição incomum.
"Então é isso?", me perguntei. Estava num tipo de haras. Belos cavalos passeavam por ali, suas crinas brilhando sob a luz do sol. Certamente, o dono deste lugar devia ser alguém muito rico. Não era um cenário comum.
Logo à frente, um riacho apareceu emoldurando a paisagem. Atravessamos uma charmosa ponte de pedra, e as águas límpidas abaixo me chamaram a atenção com sua transparência impressionante — peixes nadavam tranquilamente ali, como em um filme. Contudo, assim que passamos pelo rio, uma visão ainda mais grandiosa fez meu coração quase parar: uma mansão colossal surgia no horizonte.
Era uma construção fascinante, como aquelas que só vemos em fotos de livros de história. A fachada era toda de pedra, detalhadamente trabalhada com esculturas intricadas. Havia torres e cúpulas que lembravam as mansões da Era Vitoriana. Suas janelas, emolduradas por vitrais belíssimos, lançavam reflexos coloridos ao redor. A entrada principal era formada por uma porta dourada, com ornamentos tão detalhados que pareciam obra de um artesão mestre. Suspirar diante a beleza da mansão foi inevitável.
"Eu só posso estar maluco", pensei, tentando absorver a enormidade daquele lugar. "Hyunjin adoraria ver isso..."
Contudo, não fui conduzido para a entrada principal. Fomos pelos fundos, entrando por uma área que parecia destinada aos funcionários. O ambiente mudou imediatamente. Não havia luxo ali. O piso era mais simples e o espaço pouco decorado. Pessoas passavam de um lado para o outro, a maioria negras, vestindo roupas típicas de servos de outra época: mulheres em vestidos longos e aventais, homens com calças, botas e suspensórios. Eles também me encaravam com curiosidade, como se nunca tivessem visto um asiático de perto. Sentia-me cada vez mais estranho.
Após cruzarmos essa área movimentada, seguimos para um corredor onde o piso tornou-se polido e as paredes se tornaram adornadas por papéis de parede florais. Quadros decorativos, cômodas antigas e arranjos de flores perfumadas começavam a dominar o espaço, deixando o ambiente mais refinado. Subimos uma escada estreita que, pelo aspecto, devia estar situada no fundo da propriedade. A partir do segundo andar, o luxo ficou ainda mais evidente.
As paredes brancas eram decoradas com pinturas emolduradas, e o cheiro das flores frescas dominava o ambiente. Passamos por mais corredores até pararmos diante de uma imponente porta dupla branca. O homem abriu as portas de forma abrupta, me empurrando para em um espaço que parecia um escritório.
O cômodo transpirava riqueza intelectual: dezenas de estantes cheias de livros ocupavam as paredes, enquanto, ao centro, uma mesa de madeira escura dominava o espaço. Atrás dela, sentado em uma poltrona elegante, havia um homem de meia-idade. Seus cabelos loiros já mostravam sinais de grisalhos, e sua barba bem-feita combinava com o traje impecável que vestia: uma camisa branca com um colete dourado, botões metálicos e um lenço amarrado na gola. Em suas mãos, ele segurava um curioso monóculo enquanto inspecionava alguns papéis.
Mas não era o único ali. Sentado com postura impecável em um sofá de veludo, havia um garotinho que não aparentava ter mais de sete anos. Ele era quase uma cópia jovem do homem atrás da mesa: cabelos loiros, olhos azuis penetrantes e um terno cinza impecável.
Assim que me viram, o menino apontou, boquiaberto:
— Papai, é uma daquelas pessoas de costumes engraçados!
O homem repreendeu imediatamente o filho:
— Nathan, não é educado apontar.
Ele então se voltou para o homem que me trouxe, dando um sorriso amistoso:
— Senhor Hamilton, tenha a bondade de elucidar a identidade deste cavalheiro e o motivo pelo qual se encontra em meu gabinete? Não é habitual recebermos visitas inesperadas em tais circunstâncias
Hamilton, meu captor, deu um passo à frente e, segurando firme a corda que me prendia, explicou:
— Senhor Evergreen, rogo vossa indulgência pela entrada abrupta. Encontrei este indivíduo perambulando pelas propriedades da família. Seu semblante é oriental mas sua linguagem sotaque é inglesa e possui um timbre incomum. Julguei por bem o trazer à vossa presença.
Piscava incrédulo ouvindo tal diálogo se desenrolar em minha frente, ninguém mais fala desse jeito. Eu já estava farto daquilo. Não aguentava mais ser tratado como se fosse uma aberração...
— Escuta, eu não quero causar problemas! — retruquei, com um tom apressado — nem sei como vim parar aqui. Só me digam como sair, e desapareço! Tá bom assim?!
Minha súplica ficou no ar. No fundo, eu sabia que sair dali séria mais complicado do que parecia.
O homem me olhou com espanto. Em seguida, levantou-se e caminhou até nós, sinalizando com um gesto das mãos para que a criança deixasse a sala. O menino obedeceu à ordem sem hesitar. Em um movimento cuidadoso, ele segurou a corda e começou a me desamarrar, seus olhos atentos percorrendo meu corpo para verificar se eu estava bem.
— Senhor Hamilton, não era necessário tratá-lo como um prisioneiro. Rogo-lhe desculpas por tal infortúnio. Temos maneiras mais cordiais de tratar aqueles que encontramos em nossas propriedades. Eu sou Arthur Evergreen — disse ele, em um tom de voz firme, embora educado. Após uma breve pausa, acrescentou com um vislumbre de curiosidade — impressiona-me realmente a clareza com que articulas o idioma inglês, embora com um sotaque peculiar. Tua pronúncia, de fato, é excelente. Poderias compartilhar quem foi o responsável por ensinar-te esta língua?
— Ah... meus pais? — murmurei, ainda me sentindo desconfortável e estranhando toda aquela situação. Juro que não consegui entender metade do que ele disse.
Hamilton rapidamente me soltou por completo, permitindo que eu esticasse os braços, aliviando a rigidez dos músculos. O homem que estava diante de mim aproveitou o movimento para tocar em minha jaqueta e, em seguida, analisar detalhadamente minhas roupas. Seu interesse parecia mais do que mera curiosidade.
— Poderia, por gentileza, informar-nos como vos chamais? — ele perguntou, olhando diretamente nos meus olhos.
— Meu nome é Christopher Bahng. Olha, eu realmente não quero problemas com ninguém... — respondi, tentando esconder o nó de ansiedade que apertava meu peito.
Ele inclinou levemente a cabeça, estreitando os olhos como se estivesse tentando desvendar um enigma em mim.
— Tendes feições que me remetem ao Oriente, da China para ser mais específico, porém, vossa fala e maneiras são distintas dos hábitos daquela terra. Poderias nos informar de onde vindes?— A voz do homem, que eu soube ser Sr. Evergreen, carregava uma curiosidade apurada, quase invasiva. Sua postura atenta me deixava ainda mais desconcertado. Instintivamente, belisquei meu braço mais uma vez, buscando a certeza de que não estava em um sonho.
— Desculpa aí, eu não entendo uma palavra sequer que você diz.
— O Sr. Evergreen quer saber de onde veio — foi o tal do Hamilton que disse.
— Eu sou australiano, na verdade. Mas vivi na Coreia do Sul por muitos anos.
— Perdão, disseste Coreia? — A intensidade no olhar do Sr. Evergreen aumentou, como se essa informação despertasse nele algo profundo. Sua reação me deixou ainda mais nervoso.
— Sim, Coreia... — respondi, antes de soltar um suspiro longo — olha, isso tudo tá muito estranho. Pode me dizer onde estou e em que ano? Porque, francamente, essa casa, essas roupa, essa forma de falar... Isso só pode ser alguma pegadinha, né? — Tentei, ainda que de forma desajeitada, esboçar um sorriso, mas ele só ergueu uma sobrancelha, visivelmente incrédulo com o que eu dizia.
— Poderia ser que este cavalheiro tenha sido vítima de um sequestro e, por conseguinte, tenha sofrido algum trauma? — Hamilton sugeriu, ignorando completamente minha indignação.
— Não sei se entendi corretamente as suas perguntas, Sr. Bahng... — O tom do Sr. Evergreen era medido, como alguém que tateia a verdade nas entrelinhas.
— Vocês que não estão entendendo! Eu exijo saber onde estou, agora! — Tentei manter a voz firme, mesmo que a confusão e o pânico pesassem em meu tom.
— Talvez você deva aceitar alguma bebida — sugeriu o homem, indo até uma mesinha. Lá, um decantador de cristal reluzia suavemente à luz da sala, com um líquido vermelho-escuro preenchendo seu interior.
— Eu não quero nada! Só quero saber onde estou! — rebati, minha paciência se esvaindo mais rápido do que deveria.
Os dois homens trocaram um olhar longo e silencioso, como se avaliassem se deveriam ou não me dar uma resposta. Por fim, o Sr. Evergreen suspirou profundamente e disse com uma calma desconcertante:
— Encontra-se em Bristol, no ano de 1858. Isso vos satisfaz, Senhor Bahng?
Congelei no lugar ao ouvir aquelas palavras.
— B-Bristol? Tipo... Inglaterra? Nem fodendo! — deixei escapar, minha voz se elevando em um misto de medo e desespero.
Ambos me olharam surpresos, enquanto minha mente tentava, em vão, racionalizar tudo aquilo. Eu estava em Seul há pouco, indo encontrar a Julie. Lembro nitidamente daquela luz... e, de repente, estou aqui. Isso não pode ser real. Ou estou em um pesadelo, ou... morri de alguma forma. Minha expressão de choque pareceu alertá-los, pois o homem se inclinou e perguntou:
— Estais tudo bem, Sr. Bahng?
Antes que eu conseguisse formular qualquer resposta, minha visão escureceu por completo. O ar parecia me escapar, e em um piscar de olhos, perdi completamente os sentidos.
Recobrei a consciência envolto em uma sensação de calor e conforto. Algo macio tocava minhas costas e, ao mexer o corpo, percebi que estava deitado em uma cama aconchegante. Um alívio me invadiu. Ótimo, era só um sonho. Eu devo estar na minha cama, em Seul.
Porém, mal abri os olhos e encarei a visão de uma garota loira ao lado da cama. Seus cabelos longos e ondulados emolduravam um rosto delicado, e sua pele era tão clara que suas veias se destacavam nitidamente nos braços. Ela parecia tão jovem, no máximo uns catorze anos.
Assustado, me afastei depressa, o que fez a garota recuar bruscamente e soltar um grito abafado. Seus olhos estavam arregalados, e o medo nos deixou em um curto impasse. Então, minha atenção se desviou para o ambiente ao meu redor. Ainda estava naquela mansão. O quarto era iluminado, com paredes brancas e um grande lustre pendurado no teto. Havia cômodas e mesinhas ornamentadas com esculturas e luminárias, um biombo no canto do cômodo e algo que parecia um ofurô de madeira. O pesadelo, ao que tudo indicava, estava longe de terminar.
— Está tudo bem, Florence? — perguntou uma voz familiar. Olhei para trás e reconheci o garoto que eu tinha visto no escritório antes. Ele era inegavelmente parecido com a garota, o que denunciava que eram irmãos.
— Sim... apenas me assustei — respondeu ela, sem ousar me encarar.
O garoto, por outro lado, apontou para mim, com curiosidade evidente.
— Suas roupas são tão estranhas — comentou, segurando minha jaqueta. Um segundo depois, os Kit Kats caíram do bolso dela.
— O que seria isto? — perguntou, confuso, enquanto Florence se aproximava para observar os chocolates no chão.
Antes que pudesse responder, uma voz feminina, carregada de autoridade, chamou atenção de todos:
— Florence! O que estás a fazer aqui?
Ao olhar para a fonte do som, dei de cara com uma mulher elegante. Seu coque perfeitamente alinhado e o traje preto impecável denunciavam sua posição de respeito. Ela caminhou até a jovem garota e a olhou com reprovação.
— Bem sabes que uma jovem dama com tua reputação não deve permanecer no aposento de um cavalheiro desta maneira — ela continuou.
— Peço desculpas, Senhora Winkle, é que eu nunca tinha visto um chinês tão de perto.
— Vamos, retornem aos seus aposentos, ambos.
Os irmãos retribuíram a ordem com expressões de leve desapontamento, mas acabaram saindo do quarto sem protestar. Enquanto isso, a mulher permaneceu na minha frente, me analisando com um olhar firme e, ao mesmo tempo, enigmático.
— Minhas mais sinceras desculpas pelo transtorno causado. O médico já está a caminho. Peço, por obséquio, que descanseis.
— Médico?
— Sim, como disse, ele está a caminho. Com a vossa licença.
Com essas palavras ditas, ela se retirou do quarto, fechando a porta atrás de si com um ruído suave, deixando-me sozinho, imerso no caos dos meus pensamentos e na grandiosidade absurda dessa situação. Estou farto de ingleses conversando com tanta formalidade perto de mim.
Se eu estava mesmo na Inglaterra do século XIX, tudo fazia sentido: o espanto com minha aparência, sempre enfatizando que é curioso que eu esteja aqui, além de todos me olharem como se fosse uma atração de circo.
Naquele tempo, as potências europeias estavam começando a espalhar sua influência pelos territórios asiáticos, mas dificilmente alguém por aqui veria, ao vivo, um homem de "olhos puxados". Além disso, por mais que meu inglês estivesse carregado de um leve sotaque australiano, eu conseguia entender as palavras deles, quer dizer, eu não entendo quando eles falam de forma tão polida, mas só de conseguir me comunicar, para eles, deve ser fascinante.
Suspirei, segurando a cabeça entre as mãos. O que quer que estivesse acontecendo ali, eu sabia de uma coisa: não pretendia ficar para descobrir. Após alguns instantes, esperei em silêncio, atento a passos ou vozes do outro lado da porta, até ter certeza de que ninguém voltaria. Então, me levantei da cama, determinado, com um único pensamento em mente: preciso ir embora.
Fui até a janela e a abri com cuidado, sentindo o ar frio da noite bater contra meu rosto. Minha garganta secou ao perceber a altura – eu estava no terceiro andar. As paredes eram revestidas por arestas e adornos de pedra, o que me deu uma ideia. Talvez eu pudesse brincar de ser o Ezio Auditore e escalar até o chão. Pular estava fora de cogitação. A última coisa que eu precisava era quebrar uma perna e acabar ainda mais vulnerável.
Virei o corpo para o armário ornamentado com figuras de anjos esculpidos na madeira. Fui até ele e encontrei exatamente o que precisava: lençóis. Pretendia amarrá-los e os prender na cama. Com sorte, seria o suficiente para descer com mais segurança. Sem pensar duas vezes, comecei a puxar os lençóis e a enrolá-los, um a um, formando uma corda improvisada. Depois de cada nó, puxava com força para garantir que a estrutura aguentaria o peso. Satisfeito com o resultado, amarrei-a firmemente na base da cama e me apressei até a janela.
No entanto, ao olhar novamente para o chão, algo chamou minha atenção. Uma borboleta-azul rodeava o espaço ali fora, flutuando delicadamente entre a luz da noite e a luz do quarto. Seu tom vibrante era idêntico ao daquela outra borboleta que eu tinha visto ao acordar nesse lugar misterioso.
Uma onda de calma percorreu meu corpo, como se aquela criatura minúscula carregasse algo além do que eu podia compreender. Na confusão do momento, seu voo sereno parecia oferecer um alívio, um refúgio à minha mente caótica por tantas coisas inexplicáveis acontecendo.
— Mentira! Deus ouviu as minhas preces e me mandou chocolate! — uma voz feminina soou de repente atrás de mim, rompendo o encanto. Girei o corpo rapidamente, paralisado ao me deparar com uma garota parada ali mesmo, tão próxima que quase me fez cair.
Sua pele parda destacava-se à luz do dia, enquanto os cabelos cacheados, presos parcialmente com um laço azul, tinham um brilho suave. O vestido que ela usava parecia saído de um romance de época, com detalhes em azul que combinavam com o laço e botinhas brancas que lhe conferiam um ar quase lúdico. Ela notou meu olhar fixo e arqueou as sobrancelhas antes de perguntar com um tom divertido:
— Tá planejando ir a algum lugar? Sinto muito em te dizer, mas você não vai muito longe.
— Quem é você? — rebati, ainda buscando compreender a súbita presença daquela figura inesperada.
Um sorriso convencido surgiu nos lábios dela. Seus olhos castanhos encontraram os meus, e, naquele momento, algo me acertou em cheio. A profundidade daquele olhar era desconcertante. Eles carregavam uma imensidão de sentimentos que eu não conseguia compreender, como se tentassem me dizer que, por mais caótica que fosse a situação, eu deveria estar exatamente ali. Havia algo estranhamente familiar naquele par de olhos, e, ao mesmo tempo, eles me provocavam uma sensação de conforto inexplicável.
— Que foi, garoto? Tá me olhando assim por quê? — ela perguntou, inclinando levemente a cabeça, ainda sorrindo.
— Você... já nos vimos antes? — As palavras saíram hesitantes, refletindo minha perplexidade com aquela garota.
— Duvido muito — respondeu, soltando uma leve risada — Meu nome é Natalie Eithar, sou dama de companhia da Florence. Finalmente! Não estou mais sozinha nesse hospício!
— O quê? Do que você está falando? — perguntei, ainda confuso, enquanto tentava processar todas as peças desse quebra-cabeça que parecia programado para não ter solução.
— Eu sou como você — disse ela, esticando o braço para pegar um Kit Kat que estava no chão. Abriu uma embalagem sem cerimônia e deu uma mordida, fechando os olhos de felicidade ao experimentar o sabor — hmmm, chocolate! Achei que nunca mais fosse comer isso...
— Como assim "como eu"? O que você quer dizer com isso? — pressionei, tentando decifrar sua expressão descontraída.
Ela terminou de mastigar e limpou a mão na saia do vestido, como se não desse a mínima para a formalidade que o lugar exigia. Então, encontrou meus olhos novamente, sorriu de forma enigmática e revelou:
— Eu vivia no Texas até acabar aqui. Sou do século XXI.
As palavras dela golpearam minha mente como um raio. Um silêncio pesado caiu entre nós enquanto eu tentava encontrar lógica em sua fala.
O que estava acontecendo?
prados e campinas verdejantes - Trecho retirado do famoso salmo 23 (tu és senhor o meu pastor)
Ezio Auditore - Ezio Auditore da Firenze é um personagem fictício e o protagonista da série "Assassin's Creed II", desenvolvida pela Ubisoft. Ele é conhecido por sua personalidade carismática, habilidades como assassino e uma rica narrativa que abrange vários jogos, incluindo "Assassin's Creed II", "Brotherhood" e "Revelations". A jornada de Ezio o leva de um jovem nobre na Itália renascentista a um mestre assassino, explorando temas de vingança, liberdade e a luta contra a opressão.
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