𝓒𝓪𝓹𝓲𝓽𝓾𝓵𝓸 𝓓𝓮𝔃
Demorou um pouco, mas Layla acabou ficando cansada e, assim, cada um retornou para o próprio quarto. A falta de percepção das horas era sufocante. Eu não conseguia determinar se já era tarde demais para procurar por Nat ou se o relógio ainda nem tinha cruzado a madrugada. No entanto, o que mais me perturbava era o mistério por trás da música que Layla havia mencionado.
Aquela melodia era de uma época que não deveria estar ao alcance dela, o que não fazia nenhum sentido. Por um instante, considerei perguntar como ela a conhecia, mas recuei. Havia o receio de despertar questionamentos que revelassem algo sobre meu "tempo".
Passados alguns minutos, permaneci sentado na cama, inquieto, numa angústia crescente para encontrar Nat e ainda curioso sobre a música, mas eu tinha que me preocupar com uma coisa de cada vez. Decidido a me mover, esperei até que mais estrelas enchessem o céu e saí do quarto
Os corredores estavam imersos em escuridão e absoluto silêncio. Para piorar, optei por não levar nenhum tipo de iluminação comigo. Dependia unicamente da tênue luz lunar. É claro que isso me trouxe dificuldade; não foram poucos os momentos em que esbarrei nos móveis. Mesmo assim, fazia o máximo para não gerar ruídos, esperando que todos estivessem dormindo.
Ao alcançar as escadas principais, desci com o máximo de cuidado, segurando firme no corrimão a cada passo. Quando meus pés tocaram o térreo, não perdi tempo: segui diretamente para os fundos. Foi aí que percebi uma luz, fraca, emanando da área dos funcionários. Caminhei até a cozinha, onde encontrei Nat, Otto — um rosto já familiar — e mais um homem, que me era desconhecido. Assim que me viu, Nat se levantou e sorriu.
— Até que enfim. Achei que tivesse ido dormir.
— Tive um contratempo — respondi, prestes a contar sobre a música que Layla rocou, mas ela não me deu chance. Antes que eu pudesse prosseguir, jogou-me uma capa rústica, feita de pedaços de sacos de legumes.
— O que é isso? — perguntei, confuso.
— Vista e cubra o rosto. E por nada nesse mundo abaixe o capuz, entendeu? — A seriedade em sua voz não deixava espaço para dúvidas — Ah e seja o que for que você ver, não reaja, ou vai nos colocar em perigo, está entendendo?
Apenas assenti, sentindo meu corpo gelar ao notar a apreensão estampada em seus olhos e nos olhares furtivos dos outros. Nat também vestiu uma capa semelhante, enquanto Otto e o outro homem erguiam cestas contendo alimentos. Nat, por sua vez, pegou recipientes de vidro. Quando Otto entregou-me outra cesta, mesmo sem entender o motivo, segurei-a e segui o grupo, que já avançava em direção à saída.
Um deles portava uma lamparina, cuja luz pouco iluminava o caminho. Passamos pelos jardins e ingressamos em uma trilha estreita. Eles se moviam em passos rápidos, e eu me obrigava a acompanhar o ritmo, apesar do crescente peso de um medo incontrolável, como se a cada passo algo inevitável estivesse para acontecer.
— Alto lá! — uma voz masculina ressoou com autoridade, paralisando meu corpo por completo. Instintivamente, ajustei o capuz, cobrindo ainda mais o rosto. Com dificuldade, enxerguei o dono da voz: o Sr. Hamilton, acompanhado por dois homens armados. Sua presença era intimidadora — estão atrasados.
— Sentimos muito, Sr. Hamilton — respondeu Otto, de cabeça baixa, como se evitar qualquer contato visual fosse a única regra naquele momento — tivemos problemas com as provisões, mas, com sua permissão, gostaríamos de prosseguir. Está tarde.
A tensão no ar era sufocante. Observei Otto e o colega mantendo as cabeças inclinadas, demonstrando submissão. Hamilton, porém, parecia determinado a impor seu domínio, e aproximou-se de Nat, segurando seu queixo. Mesmo na penumbra, consegui perceber a rigidez que tomou conta dela. Era como se aquela invasão de espaço fosse algo familiar, mas ainda assim, revoltante. Uma raiva cresceu dentro de mim, mas contive o ímpeto de agir. Percebi que qualquer movimento imprudente poderia colocar todos em risco.
— Por que não permitimos que os criados se ocupem de levar a comida, enquanto nos dedicamos a uma agradável conversa?— Hamilton sugeriu, sorrindo de maneira sinistra.
— Eu estou transportando remédios — respondeu Nat, recuando ligeiramente e conseguindo se soltar do toque dele — eles precisam de mim, senhor. Se puder nos dar licença.
Ele a observou por um instante mais longo do que o necessário, como um predador analisando sua presa. Mesmo assim, recuou, mas não sem lançar outra provocação.
— Ainda há de ser minha esposa, senhorita Eithar — declarou, com um sorriso pérfido.
Nat não respondeu; virou-se e seguiu em frente, deixando claro que suas palavras não a atingiram. Sabendo que aquele era o sinal para retomarmos a marcha, apressei o passo ao lado dela. Meus pensamentos fervilhavam de perguntas que eu queria desesperadamente fazer, mas sabia que aquele não era o momento certo. A forma como Hamilton a olhou, com um misto de posse e ameaça, deixava sugestivo que algo se estendia entre eles.
Enquanto caminhávamos, algumas luzes começaram a surgir ao longe, indicando que estávamos nos aproximando de nosso destino. No entanto, o simples vislumbre delas trouxe uma sensação de alerta. Havia mais homens armados ao redor, e meu sangue gelou, como se meu corpo soubesse o que minha mente ainda não tinha compreendido: o perigo nos rondava, e eu nem sequer sabia o motivo de estarmos ali.
Respirei fundo, tentando afastar o nó que subia pela minha garganta. Nat fez sinal para que eu continuasse quieto e deu alguns passos à frente, chamando a atenção de um dos capatazes que pareciam supervisionar o local. O homem se aproximou enquanto Nat mantinha uma postura firme. Mesmo tensa, ela parecia dominar a situação, o que me deu uma falsa sensação de segurança, embora eu soubesse que não estávamos no controle real do que acontecia ali.
Então eles abriram as portas e o mau cheiro nos atingiu, mas eles entraram e eu os segui, tendo a pior visão de todas.
Pessoas enjauladas, muitas pessoas, todas negras, em condições horríveis de vida. Mulheres sem roupas ou com trapos rasgados se amontoavam em um canto enquanto crianças choravam. Os homens ficavam separados, mas igualmente em situações precárias. havia uma escada que levava ao segundo andar e mais ao fundo uma outra porta. Um dos capatazes segurou uma mulher pelo braço, a obrigando a segui-lo para o segundo andar, enquanto a mulher chorava e dizia palavras em alguma língua que não reconhecia.
Eu achava que estava no inferno, mas essas pessoas vivem no inferno. Percebi que Nat junto a Otto e o outro homem iam até as pessoas feridas e decidi fazer o mesmo, para não levantar suspeitas.
Meus olhos, entretanto, continuavam vagando pelo ambiente, absorvendo os detalhes daquele lugar. Perto de uma das jaulas, um menino muito magro, talvez com uns oito ou nove anos, olhava em minha direção com olhos fundos, cheios de terror. Foi difícil encarar aquele olhar. Tentei desviar, mas era quase impossível ignorar a profundidade daquela dor silenciosa. Ele não disse nada, mas sua expressão era um grito mudo que me rasgava por dentro.
Enquanto isso, Nat conversava com aquelas pessoas, lhes oferecia comida e tentava ser gentil, apesar que nenhuma gentileza poderia suprir a tamanha barbaridade que aquelas pessoas foram submetidas.
Um movimento brusco me chamou a atenção. Em um canto da sala, dois homens carregavam à força um homem que parecia desmaiado. Ele tinha feridas visíveis nos braços e no rosto, como se tivesse sido espancado. A brutalidade do momento quase me fez romper o silêncio que prometi manter, mas as palavras de Nat ecoaram na minha mente: "Não reaja." Mesmo assim, meu punho se fechou involuntariamente, como se eu pudesse agarrar minha própria indignação.
De repente, Nat voltou, segurando meu braço com firmeza mais uma vez. Seus dedos estavam gelados, mas o olhar dela tinha foco. Ela sussurrou sem me encarar:
— Vamos sair daqui. Agora.
Engoli em seco e a segui quando ela começou a se mover em direção à porta pela qual havíamos entrado. Antes de sairmos, dei uma última olhada ao redor, mesmo sabendo que a cena ficaria marcada em minha mente para sempre. Vi rostos cansados, apáticos, como se a esperança tivesse sido arrancada deles há tempos. Havia uma mulher amamentando um bebê em meio à sujeira, uma imagem tão contraditória que me causou um nó no estômago. E o garoto que me olhou antes ainda estava lá, parado, os olhos me acompanhando, como se esperasse algo — qualquer coisa — de mim.
Assim que saímos para a trilha escura de volta, a tensão não diminuiu, mas mudou. Era como se o peso do que havíamos testemunhado nos envolvesse como uma sombra traiçoeira. Tentei falar, mas Nat levantou a mão, pedindo silêncio, enquanto andava em passos rápidos. Esperei até estarmos mais longe da construção, até que avistei novamente os jardins que cruzamos para chegar ali. Então, não pude mais segurar a pergunta que me sufocava.
— O que... o que era aquilo, Nat? Quem eram aquelas pessoas?
Ela parou abruptamente e se virou para mim. Seu rosto carregava um semblante de raiva, como se ela mesma não aguentasse carregar as respostas.
— Escravos, você é inteligente, estudou isso nos livros de história.
— A escravidão não foi abolida? — perguntei, mas minha voz falhou. No fundo, eu já temia a resposta. Tudo indicava que o pior ainda estava por vir.
Nat cruzou os braços, exalando uma frustração e cansaço reprimidos:
— Você realmente acha que aboliram a escravidão porque passaram a enxergar os negros como iguais? Por favor, Bang Chan, até no nosso tempo o racismo ainda existe. Imagine aqui — ela fez uma pausa, observando minha confusão antes de continuar — só aboliram a escravidão porque a coroa inglesa precisava mostrar ao mundo que o capitalismo era "superior". Para isso, você precisa colocar poder de compra nas mãos de todos, mesmo que seja mínimo.
A lógica fria de suas palavras me deixou gelado. Fiquei em silêncio, porque não sabia o que dizer. Tudo aquilo parecia inverossímil, e ao mesmo tempo estava ali — cruel, palpável, inegável. Aquelas pessoas não eram números em uma página de história ou personagens de um conto distante. Elas estavam vivas, sofrendo, bem diante de mim.
Nat observou Otto e o outro homem e logo entendi o recado. Ali não era o local mais indicado para mantermos uma conversa, então fomos para o meu quarto e, assim que entrei, perguntei:
— Então... o Arthur mantém escravos?
Ela bufou, com o semblante endurecido e entrou logo atrás, fechando a porta em seguida.
— Antes fosse só isso — fitou-me por um momento antes de avançar na explicação — a companhia marítima dos Evergreen foi fundada pelo tataravô de Arthur, logo após perderem a coroa para os Hanôver. O Sr. Evergreen criou suas primeiras frotas marítimas, negociando mercadorias entre diversos territórios. Mas não se limitavam a chás e temperos nas Índias. Também passavam pelo litoral da África, abarrotando seus navios de pessoas capturadas para serem vendidas como escravos. Dentro de pouco tempo, ficaram atrás apenas dos portugueses quando o assunto era comércio humano. Expandiram seus negócios para as treze colônias e o Caribe além de se tornarem a maior família escravocrata da Inglaterra. Se você precisasse de escravos, sabia com quem procurar.
Ela fez uma pausa, e eu mal conseguia absorver o que ouvia. Mas Nat continuou, a voz agora mais baixa, carregada de indignação amarga:
— Tudo caminhava bem para eles até que um dos navios, repleto de escravos, afundou em alto-mar, causando um prejuízo imenso à família Evergreen. Foi então que o avô de Arthur, August Evergreen, teve uma das ideias mais cruéis: obrigar os escravos a terem filhos para vendê-los como novos "produtos". E o negócio só cresceu, ainda mais quando a coroa proibiu oficialmente o tráfico de escravos. Essa prática monstruosa atravessou gerações, e aqui estamos, lidando com as consequências diretas disso.
Eu estava completamente paralisado. Não conseguia encontrar palavras para expressar o que sentia. A brutalidade daquela história superava até os piores cenários que eu poderia ter imaginado. A vilania dos Evergreen destruiu qualquer resquício de esperança que eu tinha na humanidade.
— É pior do que eu poderia imaginar — murmurei, passando a mão pelo rosto — Como eu pude ignorar algo assim? Como eu pude confiar nele? — Mal conseguia organizar meus pensamentos, sentindo a raiva crescer pelos Evergreen.
— Eu tentei te poupar da verdade — soltou Nat, sem paciência — mas você insistiu até não poder mais. Agora está ai todos os motivos que você queria para odiar essas pessoas e usá-las, tal qual vão usar você. Que se foda a Layla, use desse casamento pra sairmos daqui.
— Não pode jogar a culpa na Layla, Florence e Nathan. Ninguém nasce mau, a sociedade é quem os corrompe.
— Ah pelo amor de Deus Chris! Não tenha compaixão dessas pessoas, pois elas não terão de você. Quer pagar pra ver?
Andei até a janela do quarto, apoiando a mão na beirada e observando o céu começar a ficar alaranjado, um sinal claro de que o dia já ia nascer. Não adiantaria tentar fazer a Nat entender que se você é criado para se achar melhor que alguém, dificilmente você vai pensar diferente. Mas então, lembrei de algo e tornei a encarar a mulher que se livrava de sua capa.
— Se a escravidão foi abolida, por que ninguém denunciou Arthur? — insisti, ainda em busca de alguma lógica.
Nat revirou os olhos e respondeu com evidente cansaço:
— Você se esqueceu do que eu te contei? Arthur se casou com Dália justamente para garantir conexões políticas e judiciais. Todo mundo faz vista grossa. Além disso, ele é um conde! Ele manda e desmanda nestas terras. A verdade é que ninguém se importa de verdade com essas pessoas. Você nunca leu um livro de história, Chris? Coisas desse tipo para pior aconteceu por toda parte.
Eu não iria conseguir conter mais a minha indignação.
— Como você consegue ficar tão tranquila sabendo de tudo isso? — perguntei, inconformado.
— Tranquila? — Ela virou para mim, claramente irritada — Chris, eu sei que é horrível, mas estamos presos no passado. Não podemos mudar toda uma estrutura de poder. Faço o que posso. Convenci Florence a persuadir o pai a enviar alguns remédios e comida extra. Mas acha que tenho poder para mais que isso? Acha que não tenho pesadelo com as coisas que eu já vi lá?
— E como consegue dormir à noite sabendo que tantas pessoas estão sendo torturadas?
— Não me torne a vilã dessa história! — ela disparou, o tom firme cortando o ar — os únicos vilões aqui são os Evergreen! Não jogue essa responsabilidade em mim. Eu quero voltar para casa, e precisamos manter o foco no nosso objetivo. Você deveria fazer o mesmo.
Fiquei em silêncio, enquanto a indignação ardia dentro de mim, mas não era direcionada apenas a Nat. Era a tudo aquilo. Era a Arthur, ao sistema que permitia tamanha crueldade, ao fato de estar preso no passado. Recusando-me a ceder à resignação, disse:
— Precisamos fazer alguma coisa.
Nat riu, mas sem humor, como se a ideia fosse uma piada trágica.
— O que exatamente? Vamos morrer se tentarmos algo contra os Evergreen.
Sem hesitar, respondi:
— Então que eu morra tentando.
Eu não tinha energia para enfrentar o café da manhã. A única coisa que consegui fazer foi ir até os fundos, onde ficava a canaleta de onde retiravam água. Com esforço, enchi quatro baldes de madeira, consciente de que precisaria fazer duas viagens para levar tudo até o quarto. A ideia de pedir ajuda para carregar depois de tudo que descobri sobre os empregados dessa casa me pareceu absurda. A escravidão já estava impregnada demais neste lugar para que eu compactuasse, ainda que indiretamente.
Quando finalmente despejei toda a água na banheira, fiquei parado por alguns segundos, olhando para aquela água fria. Nem de longe era algo que eu desejava. Sou avesso a banhos frios, mas naquele momento não havia opção. Joguei alguns sais de banho na água, como se aquilo fosse melhorar a experiência, e entrei de uma vez, mergulhando como quem se joga em uma piscina gelada para minimizar o choque. Foi terrível. A água parecia cortar minha pele, e o desconforto só aumentava com a temperatura. Não fazia calor suficiente para tornar a situação suportável, mas eu teria que me adaptar.
Enquanto passava um pano úmido pelos braços, minha mente começava a vagar. As imagens dos últimos eventos me assombravam como um filme que se recusava a acabar. Da sala de piano com Layla até a descoberta terrível dos escravos nos fundos da propriedade. Eu revirava cada detalhe na tentativa de encontrar alguma conexão com o livro "Perdida", agarrando-me a qualquer pista que pudesse explicar o porquê disso tudo estar acontecendo comigo.
No livro, Sofia foi parar no passado após comprar um telefone. O que me trouxe até aqui, no entanto, foi uma suposta morte. Talvez, eu estivesse em algum tipo de coma, vegetando em uma cama, e tudo isso fosse apenas um grande delírio. Mas, se fosse esse o caso, como poderia parecer tão real? A água gelada contra a minha pele era incômoda demais para ser apenas fruto da minha imaginação. Apesar disso, tudo parecia um pesadelo do qual eu não conseguia acordar.
Ainda havia outra coisa que não me saía da cabeça: Layla tocou Rivers Flow in You, uma música que pertencia à minha era. Não havia absolutamente nenhuma chance de ela conhecê-la no contexto desse passado. Isso só reforçava minhas suspeitas de que tudo poderia ser uma alucinação. E quanto à Nat? Talvez ela fosse a personificação de alguém que eu desejei amar — tudo tão perfeito e confuso ao mesmo tempo.
Mas calma lá. Eu não estava apaixonado por Nat... não estava, certo? Era apenas confusão, misturada com o caos que se passava ao meu redor.
Enquanto minha mente girava nesses pensamentos, fui arrancado de minha bolha pelo som da voz de Nat, inesperada e alta demais para o ambiente silencioso.
— Aderiu aos banhos frios? — perguntou, com um sorriso divertido, sua voz ecoando pelo quarto e me pegando de surpresa.
Eu me mexi bruscamente, a água chacoalhando ao meu redor enquanto me sentava na banheira, surpreso pela audácia dela de entrar no quarto em meio ao meu banho.
— Porra, Nat! Não sabe bater na porta?
Ela apenas riu, despreocupada, enquanto permanecia parada, me encarando como se eu não estivesse completamente nu. Minha tentativa desesperada de cruzar as pernas apenas destacou ainda mais meu constrangimento, o que pareceu diverti-la ainda mais. Ela deu um passo para trás, ainda rindo.
— Me desculpe por aparecer assim e te pegar... nessa situação. Mas você não pode passar o dia inteiro aqui no quarto — decretou ela, com a mesma naturalidade de quem comenta o tempo — Layla já passou nessa porta umas três vezes, ponderando se devia te chamar ou não. Vão começar a desconfiar de alguma coisa.
— Eu realmente não ligo — murmurei, tentando alcançar a toalha que, para minha infelicidade, estava fora do meu alcance — Alguém já te falou que você é muito atrevida?
— Te incomoda? — Nat disse caminhando até a toalha, segurando-a. Mas ao invés de me devolver rapidamente, ela se aproximou da banheira, tentando olhar só para os meus olhos.
—Gostou do que viu? — falei, sendo tão atrevido quanto ela.
— Desculpa — disse ela, sem conseguir segurar um sorriso travesso. Então, completou com o tom provocativo que parecia ser sua marca registrada — É que sempre ouvi falar que asiáticos tinham o pau pequeno, fiquei morrendo de vontade de acabar com essa duvida.
Revirei os olhos, ela não mandou mesmo essa. Sem dizer nada, puxei a toalha das mãos dela e fui enrolando-a na cintura enquanto levantava e saía saía da banheira.
— Sempre me disseram que mulheres ocidentais eram fáceis demais e iriam pra cama sem muito trabalho. Devo sair repetindo isso por aí? — provoquei, usando um estereótipo, assim como ela usou em mim, enquanto caminhava até o biombo onde uma muda de roupas já me esperava.
Nat arqueou uma sobrancelha e respondeu, com o mesmo tom afiado de humor que sempre usava para me envolver em suas conversas:
— Calma lá, eu não iria pra cama com você só porque você tem essa pinta de ator de dorama. Eu iria se você me ganhasse no papo. E, pra constar, eu não transo com qualquer um. Tem que ter uma certa intimidade.
— Nós temos intimidade.
— Está dando de cima de mim? — Ela pergunta, de forma desafiadora
Ri baixinho, não só pelo jeito dela, mas pela facilidade com que derrubava qualquer tentativa minha de provocação. Enquanto terminava de vestir a calça, coloquei a camisa, ainda prendendo os botões do lado de dentro do biombo. Ao sair, continuei a conversa sem nem olhá-la diretamente:
— Por que estamos tendo esse papo? Precisa de sexo e não sabe como pedir? — Olhei-a de soslaio, levantando a sobrancelha em um misto de desafio e charme.
Ela riu, balançando a cabeça em negação, mas com um sorriso que mostrava que sabia exatamente o efeito que tinha sobre mim.
— Não, nem tente, você não faz o meu tipo. Gosto de homens altos, bem altos.
Fingi que tinha levado uma flechada no peito. Minha altura, sendo maior que a de muitas mulheres, mas ainda inferior à de muitos homens, sempre fora uma daquelas inseguranças incômodas, mesmo que eu não admitisse. Entretanto, o olhar divertido que ela lançou em minha direção era provocativo, quase como quem flerta. Isso me desarmou por um instante.
— Acho que temos uns assuntos mais importantes a tratar do que ficar falando sobre quem quer ir pra cama com quem — disse sentando na cama e calçando as botas.
— Tipo?
— Tipo como libertar aqueles escravos.
— Você ainda tá nisso? Se você não tem amor a sua vida, eu tenho — ela disse, se sentando do meu lado da cama e me olhando.
— Nat, somos do século XXI. Sabemos de coisas sobre o mundo que eles não sabem. Duas cabeças pensam mais que uma — terminei as botas e a encarei.
— Verdade, eu sei fazer napalm.
— Napalm? Isso não é crime de guerra?
— Pois é, se aprende de tudo no Tik Tok.
Não aguentei e comecei a rir, a contagiando. Nat pode ser atrevida o quanto que for, não me incomoda, a sua companhia é o que tornou reconfortante tudo que venho passando. Nossas risadas foram substituídas pelo silêncio. Aqueles olhos arrebatadores me pegaram de novo e me vi preso em seus mistérios. Não podia deixar de me perguntar se Nat também se sentia assim quando seus olhos me encontravam.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, três batidas firmes na porta nos arrancaram daquele momento leve, trazendo de volta o peso da realidade que nos cercava.
Nat rapidamente se movimentou, correndo para detrás do biombo, enquanto eu respirei fundo e caminhei até a porta. Ao abri-la, encontrei a rígida figura da Sra. Winkle, com seu traje típico de governanta — um vestido preto de mangas compridas, coberto de botões que pareciam militarizar ainda mais sua postura. Ela inclinou levemente a cabeça, numa reverência formal, e foi direto ao ponto, como sempre.
— O senhor Arthur solicita vossa presença, e, por obséquio, lembrai-vos de que o senhor Carlisle chegará em breve para vos tirar as medidas. Ele já deve estar a caminho, portanto, é importante que vos prepareis. — Fez uma pausa, mas não para ser interrompida — Ah, e avise a Srta. Eithar que Florence a espera no jardim.
Eu abri a boca, mas nenhuma palavra saiu. Fechei e abri novamente, atônito com o tanto de informações despejadas tão repentinamente.
— Como é? — consegui dizer, mas ela continuou sem dar muita atenção à minha confusão.
— Eu já observei que, sempre que a senhorita Eithar desaparece, é porque está em sua companhia. Tenho enorme estima por ela e, por isso, relevo. Contudo, assim como eu percebi, outros também podem notar. Reflita sobre isso, Sr. Bahng, ou quer mesmo arruinar a reputação de uma jovem serva?
Essa observação me deixou desnorteado. Rapidamente passei a me justificar:
— Mas... mas não acontece nada entre mim e a Nat! — As palavras saíram mais apressadas do que eu queria, quase como se fossem uma confissão.
Antes que eu pudesse me enrolar mais, Nat atravessou o ambiente com a mesma naturalidade com que reagia a qualquer conversa embaraçosa..
— Está tudo bem, Chris. Preciso mesmo encontrar Florence. A gente se vê depois — disse, com tranquilidade, enquanto passava por mim e seguia pelo corredor.
A Sra. Winkle não disse mais nada; apenas se retirou de forma discreta, deixando-me sozinho com meus pensamentos agitados. Fechei a porta e comecei a procurar um casaco entre os poucos que tinha para vestir. Minha mente, no entanto, estava longe de algo tão trivial. A governanta estava certa em algo: seria um problema se começassem a acreditar que havia um caso entre mim e Nat.
Mas era inútil negar o quanto gostava do jeito atrevido dela, das conversas carregadas de provocações inocentes, dos flertes jogados como quem não quer nada. Eu havia dado a ela essa liberdade a ela e não me incomoda que ela esteja sempre assim, flertando em meio a brincadeiras.
A verdadeira questão que ecoava em minha mente era outra: será que Nat percebia que, a cada dia, eu estava me envolvendo de verdade?
Hanôver - Era a dinastia britânica no século 19.
Ninguém nasce mau, a sociedade é quem os corrompe - Celebre frase de Jean-Jacques Rousseau que argumentava que os seres humanos nascem essencialmente bons e que a sociedade os corrompe. Por outro lado, alguns filósofos, como Thomas Hobbes, tinham uma visão mais cética e acreditavam que os seres humanos nascem com tendências egoístas e agressivas, e que a sociedade e as leis são necessárias para controlar esses impulsos.
Napalm - é uma substância incendiária que foi usada principalmente em guerras, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, consistindo em uma mistura de um gel espesso e combustível, que se adere às superfícies e queima intensamente. O uso de napalm é considerado crime de guerra.
Tik Tok - é uma plataforma de vídeos curtos que se tornou extremamente popular em todo o mundo. Os usuários podem criar e compartilhar vídeos de até 60 segundos, e a plataforma é conhecida por suas tendências virais, desafios e conteúdo diversificado, desde tutoriais e receitas até música e dança.
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Historicamente falando, não existe nenhuma dinastia britânica com o nome de Evergreen, mas a graça de escrever é justamente essa, né? Imaginar...
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