Capítulo 7

"Eu tento ser tudo o que eu posso
Mas às vezes isso equivale a nada." — Come & Go, Marshmello ft. Juice WRLD

2014.

A professora Camila, de Geografia, possuía o mesmo nome que a minha irmã e essa era a única semelhança entre as duas. Minha irmã era legal, minha professora era insuportável.

Depois de duas provas abaixo da média, ela estava no meu pé. Cada movimento estranho que eu fazia durante a aula era motivo para chamar minha atenção. Eu sequer podia olhar para a janela sem ouvi-la chamar meu nome.

Nós havíamos acabado de receber o resultado de um trabalho escrito e voltei para a minha carteira cabisbaixo, pois havia tirado nota sete. Era quase certo de que eu ficaria de recuperação em Geografia.

Amanda estava sentada perto de mim e deve ter visto que minha cara não estava boa, pois inclinou o corpo para conseguir falar mais baixo comigo.

— Acha que vai ficar de rec em Geo?

— Eu tenho é certeza. — Abri a mochila apoiada na cadeira e joguei o manuscrito de qualquer jeito lá dentro.

— Relaxa, tu é inteligente, vai passar. — Ela piscou de forma bem rápida e desviou o olhar para o próprio trabalho em mãos.

Me acomodei no meu lugar e vi Robert me olhando da sua carteira, com um sorriso maldoso. Franzi as sobrancelhas e murmurei silenciosamente um "o quê?", mas ele só balançou a cabeça e ajeitou a postura, ficando de costas para mim.

Nas últimas semanas, as garotas estavam conversando mais vezes comigo. No início, fiquei com medo daquilo ser fruto de algum resquício do meu gênero – eu era uma pessoa feminina a ponto de ter um círculo social de garotas? Ou eu só era um garoto legal pra elas? Era o meu questionamento –, mas depois de um boato sobre uma conversa entre bilhetes em que uma das meninas revelou estar a fim de mim, eu parei de ver aquela proximidade como uma ameaça.

Era costume as garotas trocarem bilhetes durante as aulas, nem todo mundo usava um Smartphone bom para trocar mensagens. Contudo, elas se comunicavam usando codinomes, então quando o bilhete com aquela revelação vazou, eu não sabia de quem se tratava.

Os garotos zoavam, dizendo que eu só não pegava ninguém porque não queria. Eu ainda tinha um pouco de medo de ficar com alguém, pois eu não queria que a pessoa tocasse o meu corpo. Contudo, todo mundo só sabia falar sobre isso e eu precisava, pelo menos, perder o "BV". Não havia beijado ninguém ainda.

Quando a aula da professora Camila acabou, dei graças a Deus por ser o último horário e já estava com o material guardado e a mochila nas costas para sair. Os garotos eram os mais rápidos, malucos para passar pelo pátio e jogar uma partida de futebol; já eu, queria chegar logo em casa para almoçar.

Eu gostava de jogar com os meninos, mas na hora da saída eles dividiam os times entre os Com e Sem Camisa, e eu tinha medo de um dia cair no time Sem Camisa. Isso nunca poderia acontecer.

Usar faixa durante a manhã inteira era infernal. Não só ela; eu também usava uma prótese na cueca para usar o banheiro masculino sem preocupações. Mesmo assim, tudo era feito com cautela para ninguém desconfiar.

Já era o segundo ano naquela escola intacto, e eu queria que continuasse assim. E também, meu pai ficaria louco comigo se eu deixasse alguém saber.

Uma das garotas estava com dificuldade para levar suas coisas – era a Fabíola, uma das amigas da Amanda. Todos a chamavam de Fabi por ela não gostar do próprio nome, ela estava com uma pilha de livros na carteira, tentando encaixar o que era possível dentro da mochila lilás.

— Ô Fabi! Quer ajuda? — Perguntei ao passar por ela e recebi um aceno em resposta. Fabíola era negra e possuía alguns sinais de vitiligo nos braços. Eu me lembrava vagamente de que eles estavam apenas nas mãos no início do ano, até Setembro ele aumentou de forma considerável.

— Valeu, Jason, eu peguei esses livros na biblioteca hoje pra fazer o trabalho do Robson.

— Bah, tu me lembrou desse trabalho! Que saco. — Dei uma risadinha e segurei os seus livros de Sociologia da biblioteca enquanto ela colocava a mochila. A pior parte de começar o Ensino Médio era estudar Filosofia e Sociologia, eu detestava.

— Se quiser ajuda pode falar, eu amo essa matéria!

— Tá doida, tchê! Como que tu fala que ama aquilo?

Andamos lado a lado pelo corredor até chegar ao pátio e, por fim, a saída. Fabi perguntou se poderia ir comigo até a esquina, pois seu pai passaria por lá para buscá-la. Conversamos sobre a matéria do professor Robson enquanto caminhávamos e Fabíola ria bastante das coisas que eu falava.

— Aí, tu deve ser o único que consegue conversar com as guria' da sala sem parecer um idiotão!

— Ahn, obrigado? Isso foi um elogio? — Fiz uma careta e Fabíola riu de novo. Ela inclinou a cabeça para trás, mas quando voltou ao normal a tiara de tecido saiu do lugar.

— Ai, droga! — Ela tentou endireitar mexendo a cabeça, mas não conseguiu.

— Posso? — Ergui a mão e ela concordou, então eu mesmo ajeitei a tiara. Os olhos castanhos de Fabi me encararam atentos, então ouvi um grito conhecido atrás de nós.

— Olha só eles!!!! O Jason e a Fabi!!! Vai dar namoro, tchê!!!

Eram Robert e Thiago, que não tinham uma gota de maturidade.

— Teus amigos são um saco, olha! — Fabíola riu, mas ela também parecia sem graça. Já estávamos perto da esquina, cada vez mais longe dos nossos colegas.

— Foi mal por isso, eles são assim mesmo.

A conversa acabou e ficamos em um silêncio desconfortável por alguns segundos. Fabi abriu a boca algumas vezes, depois fechou, então finalmente voltou a falar.

— Aí, tu faz ideia de quem é a guria que gosta de ti?

— Eu não. — Dei de ombros. Chegamos na esquina, mas o pai de Fabíola não havia chegado então continuei com ela, segurando os livros.

— Tu não tem vontade de saber? — A garota ergueu uma das sobrancelhas, mas eu estava indiferente.

— Pô, eu nem sei, é que mesmo se eu soubesse eu nem poderia fazer nada, tá ligado?

— Então tu não é a fim de ninguém da nossa sala?

— Bah, eu não sei. — Ri baixo e abaixei a cabeça, um pouco envergonhado.

Então, eu sei quem é, mas eu não sou fofoqueira, não vou te contar.

Ergui a cabeça e vi Fabíola com o queixo levantado, me olhando divertida.

— Tu sabe, é?

— Sei sim, e ela vai tá na festa Beneficente da escola no sábado. Tu vai?

— Eu vou sim, pô. — Minha mãe gostava de ir pois ajudava na montagem das barraquinhas de venda de comida, e o dinheiro arrecadado era destinado ao Lar de Idosos da cidade.

— Eu vou avisar ela então, se tu quiser... Aí gente junta vocês!

Ergui as sobrancelhas para Fabíola, mas não tive tempo de falar nada sobre o assunto, pois um carro parou ao nosso lado na calçada e quase me assustou. Ajudei minha colega a colocar os livros no banco de trás e me despedi, com um aceno rápido ao seu pai também, que me agradeceu com um olhar desconfiado.

A festa Beneficente iria acontecer em três dias e, do jeito que Fabíola falou – e provavelmente contaria para suas amigas – eu tinha a chance de descobrir quem era a menina que gostava de mim, e quem sabe até rolaria alguma coisa. Muitos alunos aproveitavam essas festas da escola para fazer isso.

Eu não sabia como me sentir, se devia estar eufórico ou ansioso. Pensar em uma garota gostando de mim era estranho. O que eu deveria fazer nessas situações?

"Eu tenho que... Corresponder?!"

2020.

Quando abri a porta de casa, havia um aroma vindo da cozinha do que parecia ser frango e algum molho. Deixei os tênis no tapete ao lado da porta e coloquei o capacete no chão. Pus a jaqueta em cima da cadeira da mesa de jantar e tirei a máscara descartável para jogá-la no lixo.

Quando cheguei na cozinha e Charlie viu o que eu tinha na mão, arregalou os olhos e ergueu a concha de madeira em minha direção.

— Você não vai jogar essa máscara infectada na lixeira da cozinha não, né?!

— Mas não tá infectada!

— E como tu sabe?! Coloca aqui! — Ele achou uma sacola de supermercado em tamanho pequeno e me entregou, com seu corpo a um distância considerável do meu. — Joga isso lá fora, põe as roupas pra lavar e toma banho!

— Tu é exagerado, hein...

— Exagerado até alguém que a gente conhece se infectar com o coronavírus! — Ele gritou irritado após eu sair da cozinha e voltar ao lado de fora, apenas para deixar minha máscara na lixeira externa. Quando entrei novamente, retirei as roupas até ficar de cueca e coloquei as peças em um cesto vazio da área de serviço, que ficava no quintal de trás.

Depois de tudo isso, consegui tomar banho. Já era noite, Charlie estava fazendo o jantar e parecia acostumado com a casa de Paloma, até mais do que eu. Quando saí, usando apenas uma bermuda de algodão e regata, ele havia terminado a comida.

— O que tem pra hoje, chefe?

— Estrogonofe de frango e arroz, foi só o que consegui fazer.

— Faltou batata-palha.

— Que batata é essa? — Ele perguntou enquanto se servia, as panelas estavam no fogão.

— É uma batata que é bem crocante e fininha, tu compra num saco já pronta no supermercado, tipo um Ruffles triturado, sabe? É bem bom.

— Não vi nada disso aqui não. — Charlie guardou a concha do estrogonofe na panela e se serviu de arroz. — Foi mal não ter feito algo melhor.

— É comida assim que a gente gosta, tu já tá aqui há três anos, deve saber! — Aproveitei que uma das minhas mãos estava livre e coloquei em suas costas, como uma forma dele ver que eu estava ali para me deixar passar.

Contudo, Charlie olhou com surpresa para mim e deu um passo para o lado, o que me deu passagem para acessar as panelas, mas eu sabia que não era por isso que ele se afastou.

— Ahn, você... — Ele começou a gaguejar. — Por que... Você..?

— Te incomodou fazer isso?

— Não, não sei, foi mal. — A postura de Charlie mudou completamente e ele começou a sair da cozinha.

— Tu tá assim só porque eu te toquei? — Perguntei um pouco rude, sem querer.

— Eu só não gosto, não é nada. — Ele abriu a gaveta rapidamente e pegou um garfo, estava quase voando nos gestos para sair o mais rápido possível dali. — Eu vou comer no quarto.

— Não vai não! — gritei sem me incomodar se isso iria assustá-lo. Fui até a mesa de jantar, tirei minha mochila da cadeira e coloquei meu prato ali. Bati no tampo de vidro de forma leve para indicar onde ele deveria colocar o seu próprio prato também. — Senta aqui, que a gente vai conversar!

Charlie já estava no meio do caminho, quando pensou melhor e voltou para a sala de jantar. Aquele garoto estava escondendo alguma coisa desde que chegou – na verdade, desde quando o vi em Porto Alegre na loja. Eu não sabia se tinha a ver com a Samantha ou alguma outra coisa, mas eu queria que ele falasse.

O rapaz se sentou com cautela ao meu lado e mexeu na comida com o garfo. Ele olhou para mim, mas desviou quando viu que eu estava o encarando.

— Qual que é o problema?

Ele não respondeu, pois deu uma garfada no estrogonofe, moleque esperto. Fiquei esperando-o terminar de mastigar, ainda com meu prato intacto.

— Okay. — Ele engoliu e se encostou na cadeira com estofado cor vinho. Seu cabelo estava bagunçado e seu olhar, um pouco cansado. Só então notei as olheiras que estavam em seu rosto. — Quando eu fico ansioso demais, não gosto de ser tocado. É até bom falarmos sobre isso, porque enquanto eu estiver aqui você tem que saber dessas coisas.

Charlie falou com convicção nas palavras, mas seu olhar estava perdido.

— Entendi... Nenhum toque?

— Nenhum. — Ele tamborilou os dedos na mesa.

— Então tu tá ansioso?

— É, por aí.

— E por quê?

Charlie respirou fundo. Pegou o garfo e ficou mexendo na comida.

— Porque vou sair daqui a pouco.

— Sair? — Não era o que eu estava esperando. Sair era algo difícil até para mim, pois eu tinha medo do meu pai, mesmo com a ordem de proteção. Charlie não tinha essa medida, então ele estava mais vulnerável do que eu.

— É, não vou demorar, mas tô ansioso.

— Sair pra onde?

— Eu estou vendo isso.

— E sair com quem? — Eu me sentia um pai chamando atenção do filho.

Charlie estava afundando tanto na cadeira que eu tinha medo de que ele fosse se fundir nela.

— Eu vou falar com a Sammy.

O nome saiu pesado em sua boca. Me causou um desconforto que eu não sabia por quê. Encontrei Samantha naquele dia, após ela dizer que nunca mais falaria com ele, e acabei de ouvir que Charlie iria sair com ela.

Charlie vai sair com a Sammy.

— E por que tu vai fazer isso?

— Eu te disse que tinha algumas coisas pra resolver.

Ele continuava sem olhar para mim. Respirei fundo e, finalmente, peguei no meu garfo.

— Bom, tu sabe o que faz.

Ele não respondeu, e também não queria sua resposta. Eu estava sentindo raiva sem motivo algum.

Charlie veio para me ajudar e não para reatar um namoro, ou sei lá o que ele queria fazer.

E por que isso me incomodava tanto, cacete?!

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