Capítulo 6

Ao invés de citação de música, hoje tem só um desabafo de um autor que tá vivendo um turbilhão de emoções por se descobrir arromântico. Quase todo mundo sabe que eu sou bi, mas isso não era suficiente pra entender o que eu sentia e como eu queria me relacionar. Ainda tô tímido pra falar sobre isso e tenho medo do preconceito, mas queria compartilhar isso com vcs. O espectro aroace vai ser bem discutido nesse livro e espero que gostem de acompanhar essa nova parte da minha vida <3


2013.

Eu havia acabado de completar quinze anos.

Mesmo sem acreditar em astrologia, eu achava engraçado o fato de que eu era um pisciano com ascendente em peixes também. Eu era duplamente pisciano, mas não fazia ideia do que aquilo significava.

Eu já deveria estar entrando no Ensino Médio, mas graças ao ano fora da escola eu estava no último ano do Ensino Fundamental. A essa altura, a maior parte dos meus amigos já tinha alguma noção do que fazer da vida, enquanto a minha única preocupação era "quando vou tomar hormônios." Depois disso, era "quando vou fazer a mastectomia."

Eu estava prestes a sair de casa para ir a pé até a escola, depois de ajeitar a faixa em meu corpo. Aquilo me incomodava, mas eu precisava usar. Todos já me viam como um garoto e eu não queria que isso mudasse.

As duas linhas feitas no barbeiro, acima da orelha, estavam sumindo por meu cabelo crescer. Fiquei me olhando no espelho, pensando em como eu ficaria legal se tivesse umas duas ou três tatuagens. Talvez eu até poderia platinar meu cabelo e colocar um piercing, talvez na sobrancelha. Os garotos tinham esse estilo e eu achava maneiro, queria fazer igual.

Não demorou muito para ouvir minha mãe gritando que eu iria me atrasar se não saísse logo de casa.

Coloquei os fones de ouvido durante o caminho a pé e cantarolei Grenade, do Bruno Mars. Eu só ouvia músicas pop quando não estava na escola, pois eu não queria que meus amigos soubessem do meu gosto musical. One Direction era assunto para as minhas amigas da sala, os garotos nem falavam sobre artistas - exceto os de futebol. Inclusive, no ano seguinte seria Copa do Mundo no Brasil e todos estavam à beira de um surto coletivo de euforia.

Antes de atravessar o portão do colégio, retirei os fones e desliguei o celular. Faltavam poucos minutos para o sinal tocar e todos estarem em suas salas. No nono ano B, era sempre um caos com os garotos provocando as garotas e fazendo palhaçada.

Eu não era popular, mas queria ser. Para isso, eu precisava estar na "boca do povo". A forma mais fácil de conseguir isso era através das meninas: se elas te achassem interessante, iriam falar de você e te dar mole. Não que eu quisesse ficar com alguma delas, mas seria legal receber essa atenção.

Antônio e Robert estavam travando uma queda de braço em uma das carteiras quando cheguei, e por pouco Antônio perdeu. Robert gritou vários xingamentos e os garotos deram tapas na nuca e na cabeça de Antônio, que ficou com raiva por ter perdido. As meninas do outro lado da sala olhavam para os meninos como se fossem um bando de homens das cavernas.

— E aí, Jason! — Thiago gritou e os garotos me cumprimentaram, eu sempre era um dos últimos a chegar por andar devagar até a escola.

— Qual é a boa? — Fechei a mão em punho e cumprimentei a de Thiago, escolhi me sentar na carteira atrás dele.

— Cara, o nono A tá de zoeira com a gente! Tão falando que vão tomar nossa vaga na olimpíada de escola, aqueles fudidos!

A treta da olimpíada escolar era antiga e interminável. Cada sala representava uma equipe com seus times de futebol, porém a nossa turma era grande demais e dividida em duas, então uma sala sempre ficava de fora da competição.

No sétimo ano, a turma A conseguiu a vaga. No oitavo ano, também. No nono ano, a gente queria uma revanche. Ela acontecia depois da aula, uma semana antes da olimpíada, na quadra de futebol do pátio.

— E o que que cê' tá pensando em fazer? — Robert perguntou ao Thiago.

— Tem que treinar mais, né, véi! Ô Jason, você consegue ficar depois da aula com a gente pra jogar?

— Claro, pô. — Me encostei na carteira. — Esse ano é nosso!

Fomos interrompidos por Clarisse, a professora de Geografia. Os burburinhos foram cessando até ela nos cumprimentar e pedir para abrirmos nosso livro.

O primeiro horário seguiu tranquilo, até a hora do recreio. Quando o sinal tocou, todos saíram correndo para o pátio.

Observei as garotas rapidamente antes de sair da sala, reparando em como elas eram bem mais tranquilas do que os garotos. Algumas estavam pegando produtos de maquiagem e outras seguravam livros do Percy Jackson.

O grupo das garotas que estavam com os livros no colo andou rapidamente para a porta da sala e passou por mim. Eram três garotas, uma loira e duas de cabelo castanho. A loira sorriu ao ver que eu estava olhando para elas.

— Ei aí, Jason! Hein, sabia que tem um personagem com seu nome em Percy Jackson?

— Ah, é? — Franzi as sobrancelhas. Eu quase nunca falava com as garotas, pois elas sempre estavam entretidas com seus próprios assuntos. ± Não cheguei nesse livro da série não.

— Você já leu algum livro? — Uma das garotas de cabelo escuro arregalou os olhos. Ela tinha uma maquiagem um pouco carregada e uma tiara brilhante na cabeça.

— Ei, eu não sou tão burro! Eu leio sim! — Soltei uma risada sem graça; não estava esperando por aquela conversa. Eu não sabia como agir perto delas.

— Garotos que lêem são mais bonitos! — A loira comentou com as bochechas um pouco cor-de-rosa e as suas amigas esconderam a cara com os livros, de vergonha. Elas empurraram a garota para se afastarem de mim.

Repara não, Jason, que ela é doida assim mesmo!

Fiquei rindo enquanto via as três alunas correndo para fora da sala. Eu não sabia os seus nomes, mas pelo visto elas reparavam em mim o suficiente para saber o meu. Até recebi um elogio de uma delas.

Então essa era a sensação de ter as garotas a fim de mim? Isso seria interessante.

2020.

Estacionei a moto no local próprio para os veículos menores e deixei o capacete no braço, apoiado de forma a deixar minha mão livre. O vento estava gelado naquela tarde, então não retirei a jaqueta. Algumas pessoas já usavam máscara dentro da faculdade e eu coloquei a minha, por precaução.

O clima entre as pessoas era estranho, como se soubessem que algo ruim estava por vir. As únicas notícias veiculadas eram sobre a pandemia mundial da Covid-19. Ela havia começado na China e se espalhado por toda parte, e vários países já estavam em quarentena. Bolsonaro dizia na mídia que era só uma "gripezinha", mas a quantidade de pessoas que estava morrendo de forma rápida não me fazia acreditar nisso. Não havia vacina nem um tratamento específico, por isso o cenário era preocupante.

Mas havia outro motivo para o ambiente estar tão estranho para mim: Max estava em liberdade.

Desde que meu pai saiu da cadeia, eu observava todos os lugares com o dobro de atenção. Tinha a sensação de que ele poderia aparecer a qualquer momento, mesmo com a medida protetiva que o proibia de chegar perto de mim. Minha vigilância era constante e eu prestava atenção a qualquer movimento estranho perto de mim.

Por isso, quase dei um pulo ao sentir uma mão em meu ombro enquanto eu caminhava para a sala da empresa júnior, o que me fez virar bruscamente e olhar assustado para Caio.

— Mas que porra, Jason! Eu só ia te cumprimentar! — Meu colega de turma exclamou irritado. O seu cabelo loiro escuro, antes cacheado, agora estava raspado.

— Eu levei um susto, cacete! Mas foi mal, e aí? — Nos cumprimentamos de forma um pouco afastada.

— Bah, tchê, eu soube da parada do teu pai, eu sinto muito. Ele te deu uma surra, né, véi.

Caio, como sempre, era bastante incoveniente.

— Acho que não tô a fim de falar disso não, irmão.

— Não, tranquilo, tá de boa, eu tô do teu lado. Bah, cê tá ligado, né?

— Valeu, cara. — Ele estendeu a mão para mim e me puxou pelo braço para me deu um abraço de lado, daqueles rígidos e duros como homens faziam entre si quando queriam demonstrar afeto.

— A aula começa daqui a pouco na 317, beleza?

— Tá ok, daqui a pouco tô lá.

— É nois'! — Caio piscou e se virou para ir no sentido contrário ao meu. Segui caminho para o prédio de Comunicação, pois precisava resolver algumas coisas na Beta antes de começar a aula.

Eu já era conhecido pelos alunos de Jornalismo e Publicidade, e vez ou outra ainda esbarrava com um dos antigos colegas de Charlie. João Vitor era um deles, e mesmo que nunca tenhamos conversado, ele acenava a cabeça levemente quando passava por mim como uma forma de cumprimento.

Eu não sabia se ele e seus outros colegas ainda mantinham contato com o Charlie, e eles deviam sentir o mesmo em relação a mim. Charlie Stewart se tornou uma incógnita desde a mudança para Porto Alegre. Talvez eles nem soubessem que ele havia voltado.

— Samantha!!!! — Um grito feminino me fez olhar para a garota que estava gritando, o som vinha de dentro do banheiro feminino e eu podia vê-la parada na porta. — O Charlie tá na cidade! Você sabia disso?!

"É, pelo visto eles sabiam."

— E pra que eu ia querer saber disso, Marina?!

Era a ex-namorada do Charlie dentro do banheiro.

O bebedouro ficava perto da porta dos banheiros, então fingi ir para lá beber água. Se Charlie não queria me contar o que havia acontecido entre os dois, eu ia saber de outro jeito.

— Bah, eu sei lá, tu ficou chorando quando ele foi embora, achei que queria que ele voltasse!

— Não fiquei chorando porque eu queria que ele voltasse! Te manca!

Tirei a máscara e me abaixei para beber água, torcendo para o assunto continuar.

— Ai, olha, Samantha, não te entendo não! Vocês eram tudo complicado! Mas se ele te chamar pra conversar, tu aceitaria?

— Fala sério, né Marina! Nem se ele viesse pintado de ouro!

Eu já estava bebendo água por tempo demais, precisava interromper a intromissão. Fechei o bebedouro e me levantei, mas no momento em que eu estava me afastando do banheiro, as duas garotas fizeram o mesmo. O corpo de uma delas se chocou contra o meu e quando vi a expressão assustada da negra de dreads, percebi como eu tinha tanta sorte no mundo.

— Jason?! — Samantha me olhou com fúria. Nós evitávamos de nos falar, nunca fomos próximos.

— Tudo bem, linda? — Mantive a postura e passei os dedos ao redor dos lábios para secar a boca. Ouvi a respiração acelerada de sua amiga ao fundo.

— Não me chama de linda, tu tava ouvindo nossa conversa?

— Eu só tava bebendo água, se vocês não sabem falar baixo aí o problema não é meu. — Me afastei da garota, sem cortar o contato visual com ela. Samantha era bonita, seus cabelos estavam coloridos e ela se vestia com cores vibrantes, orgulhosamente afro.

A garota revirou os olhos castanhos e se voltou para a amiga, que me observava atenta.

— Já chega de falar de caras tóxicos por hoje, né Marina? Marina?!

Samantha estalou os dedos para a garota, que se despertou. Ela passou os braços ao redor da amiga ruiva e a fez caminhar para longe de mim.

Caras tóxicos, Samantha? O que foi que eu te fiz?

Ou melhor... O que o Charlie te fez?

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