Capítulo 45
"Nos momentos em que ouço minha voz
Mas não me sinto eu mesmo
Queria poder te abraçar, é só você."
2020.
Minha cara estava péssima.
Meus braços cruzados e o corpo apoiado no batente da porta endureceram enquanto eu observava Charlie vestir seu único sobretudo marrom, com uma blusa de gola alta preta por baixo e uma calça skinny jeans apertada. Ele estava separando o mínimo possível para usar ao sair de casa e guardando nos bolsos internos do sobretudo.
— Pode levar a chave, não vou sair. — falei pela décima vez na última hora.
— Sei que tu quer ver tua mãe. — ele respondeu a mesma coisa, pela décima vez também.
— Depois de tudo, não quero mais. — Levei uma mão até minha própria boca e comecei a mexer nos lábios, sentindo-os ressecados pela queda brusca de temperatura em Porto Alegre naquele dia.
— Depois de tudo, seria até melhor falar com ela, devem ter coisas que tu ainda não sabe.
— Sei muita coisa já. — Revirei os olhos e encarei o chão, notei que Charlie se aproximava de mim vendo seus pés.
— Escuta, eu também tenho coisas na minha vida pra resolver e eu não tive oportunidade de fazer isso ainda. — Ele tirou minha mão da boca e ergueu meu rosto para me ver. Quando ele falava daquela forma, usando aquelas roupas, parecia até mais velho do que eu. — Se eu tivesse a chance de poder fazer isso, eu faria sem nem pensar.
Eu podia imaginar do que ele estava falando: a pausa na sua faculdade, seus pais, talvez Samantha... Charlie também tinha suas pendências.
— Vou pensar. — Minha resposta diferente o fez sorrir e se inclinar para beijar minha bochecha. Senti o seu perfume cítrico e me controlei para não puxá-lo em um beijo de verdade, sabia que ele precisava trabalhar.
— Vai me dando notícia, tá? Vou chegar umas sete horas.
— De boa. — Sorri e me desencostei da porta para acompanhar Charlie até o corredor do prédio. O guri colocou o crachá da Dotcom no pescoço e se despediu de mim com outro selar na bochecha.
Parecíamos até casados.
Quase um dia havia se passado desde a chegada em Porto Alegre e eu não parava de pensar em minha mãe. Na última vez que nos vimos, eu era uma pessoa totalmente diferente e não tinha noção de tudo o que havia acontecido, mas depois de Charlie e as coisas que ele me ajudou a enxergar, tudo havia mudado. Eu queria fazer perguntas e confrontar minha mãe a respeito de várias coisas, mas me faltava coragem e organização de ideias também.
Me lembrei de Camila, minha irmã. Ela estava em Uruguaiana, pelo menos antes da pandemia. Outra pessoa que eu sentia falta, mas não fazia questão de manter contato. Até sobre ela eu queria perguntar para minha mãe e entender o motivo delas não se gostarem.
Respirei fundo e fui ao banheiro lavar o rosto. Iria reunir coragem para ver Andressa Matias.
"Deixei sua chave embaixo do tapete, só por questão de emergência. Acabei de entrar no prédio da minha mãe. Qualquer coisa eu te aviso."
Digitei a mensagem rápido e enviei para Charlie enquanto subia as escadas. Meu coração parecia prestes a pular da boca e eu me sentia incomodado, mas sabia que precisava fazer aquilo.
Não precisei bater na porta para minha mãe ouvir meus passos e me receber. Estava de máscara, assim como eu, e notei seus olhos lacrimejando por me ver.
— Ai, filho! — Ela abraçou os próprios braços e deu espaço para que eu passasse. — Não acredito que veio me ver desse jeito! Tá muito perigoso!
— Eu tô me cuidando, mãe. — Procurei com os olhos algum lugar que me deixasse distante o possível para me sentar e conversar com ela, mas então me lembrei de que ela era mais velha do que eu e corria mais risco caso eu tivesse me infectado, então decidi ficar em pé. Minha mãe se sentou na mesa do centro da cozinha e prendeu os cabelos em um coque.
— Queria ter te visto numa situação melhor. O que aconteceu pra ter vindo pra cá?
— Charlie tinha umas coisas pra fazer aqui. — Coloquei as mãos no bolso da calça jeans e fingi estar descontraído.
— Tu tá tão diferente... Não quer sentar?
— Não sei se eu posso. — Soltei uma risada abafada pela máscara e Andressa se levantou para pegar uma garrafa de álcool em gel e um pano em cima da bancada da cozinha.
— 1 metro de distância já é ótimo! Aqui, olha. — Ela pegou uma cadeira e higienizou o estofado, revirei os olhos pois não era necessário aquilo, eu poderia ficar em pé. Contudo, agradeci minha mãe e me sentei em uma distância considerável dela. — E me conta quando foi que tu passou a andar arrumado!
— Bah, mas eu sempre andei arrumado. — Ri e abotoei o primeiro botão superior da blusa marrom listrada, que eu me lembrava estar desabotoado pois colocava meus óculos pendurados ali. Tirei a armação e deixei aberta, presa acima dos cabelos.
— Não andava não! Parecia aqueles garotos que gostam de ficar rasgando as roupas pra parecer maneiro, agora tá com mais cara de adulto. Tá até usando relógio! — Ela ergueu a mão para apontar meu pulso e ri ao olhar o objeto prateado que Charlie me deu por puro capricho de mais uma compra online. — E tu nem tá usando aqueles tênis surrados mais, aquelas calças horrorosas sem cor nenhuma!
— Vai ficar reclamando das minhas roupas agora? — Pendi a cabeça para o lado com uma expressão engraçada e comecei a rir, minha mãe deu uma gargalhada, ainda em pé andando pela cozinha.
— Não é isso, filho! Só tô dizendo que ficou melhor agora, só isso! Sempre foi um gato.
— Sei... E a avó? Tá aqui?
— Não... — falou de costas para mim enquanto lavava o pano e o torcia na pia. — No hospital.
— Nunca me contam nada, caramba... — Meu humor animado desapareceu num instante.
— Tu nunca foi de perguntar, Jason. Essa personalidade tua de pessoa que se importa é novidade pra mim. — Raramente minha mãe ralhava comigo e foi estranho ouvir aquilo dela. — Tá namorando com aquele guri? — Ela voltou a se sentar e balancei a cabeça.
— Não, é... Complicado de explicar.
— Tu nunca teve vontade de namorar, né? — Andressa repousou os dois braços na mesa e me observou, atenta. — Sempre foi diferente.
— Mãe... Eu preciso entender algumas coisas.
— Eu sei. — Ela balançou a cabeça e respirou fundo, seus ombros se mexeram. Notei como seus olhos estavam fundos. — Gostei do teu cordão. — Ela se referiu ao colar de miçangas com as cores da bandeira não-binária, eu o usava o tempo todo.
— Tu sabia. — Minha frase saiu mais acusatória do que eu gostaria.
— Max era insuportável com esse assunto, dizia que não queria ter um filho andrógeno...
— Não sou andrógeno. — Cortei. — Sou não-binário.
Pela primeira vez, eu havia dito aquilo com tanta confiança que nem eu me reconheci.
— É... Desculpa. — Minha mãe balançou a cabeça de novo, estava nervosa. — Mas os médicos não iam entender isso na época. Eu sei que pessoas assim existem há muito tempo, mas ainda é tão pouco falado e eu e seu pai tínhamos a mente tão fechada na época...
— Tá tudo bem, essa parte já superei. — falei rápido e me encostei na cadeira, angustiado pela máscara no meu rosto.
— E como é ser assim?
— Assim como?
— Não-binário. — Andressa disse com um tremor na voz, eu sabia que era difícil para ela também.
— Charlie consegue explicar isso melhor do que eu, e ele nem é. — Ri ao pensar no guri e cruzei os braços. Comecei a me focar em outras coisas para olhar pela cozinha, não queria encarar minha mãe.
— Eu devia ter notado mais cedo que tu nunca me disse que era um garoto. — Andressa se lembrou e sua voz saiu mais triste. — Na verdade, antes das ideias do teu pai tu nunca havia se importado com gênero. Essa reprodução de costumes acaba saindo mais dos pais do que de qualquer outro lugar.
— E eu não sei lidar com isso ainda.
— O que tu vê quando te vê no espelho? — Minha mãe quis saber. Engoli em seco e voltei a olhar para ela.
— Alguma coisa que não sei explicar.
— Tu acha que não tem nenhum gênero?
— Eu tenho gênero, mãe, eu só... — Respirei fundo e soltei o ar pela boca, exasperado. — Não consigo explicar. Achei que a senhora iria entender mais sobre isso do que eu.
— Eu não sei termos técnicos, história, bandeiras, essas siglas... Só sei que tu era uma criança especial desde sempre, mas tiraram isso de ti. Até eu tirei. — Andressa abaixou a cabeça. — Meu maior arrependimento foi não ter insistido para tu morar comigo, não sei como deve ter sido viver com Max lá em Esplendor.
— Bah, tu sabe sim. Eu sei que te contavam. — Provoquei minha mãe e eu sabia que ela estava envergonhada pelo olhar rápido que me deu. — Tu sabia o que ele fazia e raramente interviu.
— Não intervi na tua frente, Jason, porque eu não deixava tu saber como teu pai era comigo. — O tom na última fala da minha mãe saiu ainda mais doloroso e eu entendi na mesma hora.
Me mexi na cadeira, desconfortável. Eu não queria saber das coisas? Agora estava sabendo, maravilha.
— Eu não imaginava.
— Eu sei, nunca deixei saber. — Andressa falou mais decidida, mas seus dedos tamborilavam trêmulos na mesa de madeira. — Também nunca denunciei teu pai porque eu tinha medo de não conseguir te sustentar sozinha e ainda manter teus médicos. Não reclamei quando ele foi embora contigo e com Camila junto, porque na pior das condições ainda seria melhor do que ficar comigo, sem nada pra te oferecer. Hoje é diferente, consegui um trabalho, mas demorei pra chegar até aqui.
— E a Camila? — Mudei o rumo do assunto. — Por que não se dão bem?
— Tem certeza de que quer saber? — Minha mãe ergueu as sobrancelhas. Apenas concordei com a cabeça. — Bom... Eu não sei se tu vai lembrar da Fabiana, mãe da Camila... Mas eles iam se casar quando eu engravidei de ti, e ela tinha acabado de nascer.
Meus olhos se arregalaram na mesma hora. Camila e eu tínhamos pouca diferença de idade e eu nunca havia pensado no que aconteceu para existir aquela relação estranha.
— Meu pai tava noivo e traiu a tia Fabiana contigo. — Resumi sua história em voz alta para que eu pudesse entender. — E por que tu aceitou ficar com ele?
— Eu tava grávida, Jason! Acha que eu tinha alguma noção das coisas? Eu fiquei desesperada e Max parecia tão apaixonado e culpado que jurou ficar comigo, terminou o noivado com a Fabiana e ela me odeia até hoje.
E eu achando que as fanfics do Charlie tinham enredos complexos, a história da minha família conseguia ser ainda mais maluca.
— É coisa demais, meu Deus. — Ri e inclinei a cabeça para trás. — Eu gostava da Camila, mas a gente não se fala. Na verdade, nem conheço direito meus parentes! O Charlie reclama que a família toda dele tá longe, mas eu nem sei qual é a minha família.
— Isso daí já foi escolha tua. — Minha mãe falou mais dura comigo e se levantou da cadeira. — Desde que eu e teu pai nos separamos, tu não quis contato com nenhum parente. Eu só tinha notícia sua abrindo teu perfil e te vendo se acabando em... Essas coisas que tu usa. — Ela abriu a geladeira e retirou uma jarra de água.
— Mãe, tu quer entrar nesse assunto?
— Sempre quis, mas você quer? — Ela devolveu o olhar e colocou a jarra na pia. — Eu ia te oferecer, mas acho que não vai querer tirar a máscara.
— É, melhor não. — Andressa balançou a cabeça levemente e abaixou a máscara para beber um gole de água longo, mas em alguns segundos já estava com ela de volta, guardando a jarra na geladeira. Éramos dois preocupados em nos contaminar.
Minha mãe voltou a se sentar e colocou as mãos no próprio colo.
— Bom... Quero saber o que tu usa. E o que já fez também. Sem ter vergonha de falar, sou tua mãe e preciso saber. Quero saber quando começou e se tu já se envolveu com coisa errada.
— E tu não vai me julgar? — Ergui as sobrancelhas em uma expressão desconfiada. Andressa negou.
— Se isso te ajudar a ter mais confiança em mim, eu não vou... Quero ser presente na tua vida de novo. Me conta tudo o que aconteceu contigo.
Passei a ponta da língua ao redor da boca escondida pela máscara e relaxei os braços. Respirei fundo e abri o jogo com minha mãe, sobre tudo: coisas que sequer Charlie Stewart sabia e nem precisava saber, porque eram parte do passado.
E eu esperava enterrar tudo aquilo, na conversa mais sincera possível com minha mãe — e que provavelmente seria a única.
Jason começando a resolver a própria vida... Quero ver quando for a vez do Charlie
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