Capítulo 39

"Eu não posso te ligar, eu não posso te amar e você sabe."
— My Time, Jungkook.

2020.

Todos os olhos me encararam surpresos no lugar quando me viram arrastar a porta de madeira escura e entrar, à procura de um rosto em específico.

— PJ tá aí? — perguntei em voz alta. O funk estava baixo e a brisa da erva de qualidade duvidosa estava tão forte que me deixou zonzo, eu não fumava aquilo há muitos meses.

— E quem que é tu pra querer saber, tchê?! — Um cara sem camisa e uma tatuagem tribal no peito se levantou, deixando as embalagens que montava de pó na mesa. Seu cigarro estava preso aos dentes e ele me olhou com raiva. — E como é que tu entrou aqui?!

— Deixa o Jason, Marquin! — A voz masculina conhecida fez o tal Marquin se virar assustado e balançar a cabeça. — Ele é de casa.

PJ apareceu por uma porta mais estreita com um cigarro na mão, os olhos vermelhos por estar chapado e a cabeça raspada. Sorriu animado para mim e estendi a mão para bater na sua, eu não estava surpreso por ninguém usar máscara por lá, mas eu ainda usava.

— Não tá com medo da covid não? — Perguntei ao guri enquanto ele voltava para a porta de onde saiu e o acompanhei, deixando os caras encarregados de empacotar nas mesas, trabalhando.

— Oxe, cearense em terra gaúcha tem medo é de outras coisa', guri.

Afastei o pensamento tenebroso que surgiu na minha cabeça e segui o velho conhecido, ciente de que Charlie entraria em surto se soubesse que eu estava na casa de um traficante. De qualquer forma, ele não saberia se eu não contasse.

— Tu sumiu, viado. — PJ deitou na cama e me sentei em uma cadeira de escritório surrada perto dele. — Foi só por causa da quarentena ou tem a ver com teu pai também?

— Caralho, todo mundo sabe dessa merda. — Ri baixo e cruzei os braços, encostando as costas na cadeira.

— Eu sei o que me contam, quero saber da tua versão ô lazarento.

— Bah, me conta o que tu sabe e eu te conto se é verdade.

PJ coçou a sobrancelha com um risco e concordou. Sua regata era bem colada ao corpo musculoso, coberto de cicatrizes causadas pelos confrontos com a polícia. Não só por ser um criminoso, mas eu sabia que o fato de ter vindo do Ceará e a cor de sua pele também pesavam no tratamento — e se havia uma coisa que boa parte dos conservadores de todo o sul do Brasil gostavam de fazer, eram ser racistas e xenofóbicos.

— A primeira parte foi fofoca, isso aí não liguei muito. — PJ se apoiou com os cotovelos na cama para se deitar e tragou do cigarro. — Que quando tu tava na Marie Curie, ficava se atracando com uns guri lá. Aí teu pai te deu uma surra tensa e tu denunciou ele, mas o povo da igreja achou que ele fez certo, né.

— Claro. — ri com desgosto. PJ fumou outra vez e soltou a fumaça para cima.

— Só que agora tão tentando fazer teu pai de vítima falando que tu era um bosta pra ele e teve gente falando até que tu que tinha batido nele primeiro, e ele só se defendeu.

— Eles não tem provas disso, nem é verdade.

— Não tem prova de que tu bateu nele, mas se quiserem cavar tua vida pra encontrar uns podres teus e te colocar na posição de bandido, conseguem fácil! Tu tá até na casa de um, guri. — Mordi o próprio lábio para afastar a raiva que sentia. — Teu pai pode usar isso contra ti e certeza de que ele tem provas.

— Não tô vendendo mais nada tem tempo. — Pressionei os dedos na minha própria mão, nervoso.

— E tu acha que alguém ligaria? Ô Jason, se eu decidir hoje parar de vender e tentar sair de casa igual um cara normal, acha que alguém vai ignorar as parada' que eu fiz? Não é assim, não! Tu tem o risco de se fuder pelas paradas que já fez, e antes fosse só por uma verdinha.

PJ se levantou e foi até a mesa de madeira ao meu lado. Abriu uma das gavetas e retirou um pino, deixando o pó branco cair no móvel tentando o manter em linha reta.

— Ele usa. — Não precisei explicar de quem eu estava falando, PJ sabia um pouco da minha vida na época da Marie Curie. Só não era mais presente como antes por eu ter escolhido parar de me envolver.

— Que merda, hein? E eu vi como ele ficou famoso na internet. Quem diria? — PJ riu e aproximou o nariz da mesa, virei a cabeça para o lado para não ver aquilo. — Todo mundo tem seus problemas. Tu tem os teus. E por que veio?

Era essa a pergunta que eu também me fazia. Cruzei as pernas e decidi ser honesto.

— Tá sendo sufocante ficar naquela casa com ele.

— Não tá em casa? Tá aonde? — Enruguei a testa em uma cara de repressão e ele levantou as mãos em rendição, fungando. — Não vou espalhar, não sou X9.

— Mesmo assim, não vou contar. Já tem alguém atrás de mim.

— Teu pai?

— Não sei e nem quero saber. — Me levantei e passei as mãos no cabelo. — Aqui... Pelos últimos pacotes, e pelo outro que quero agora.

Tirei a mão do bolso e entreguei uma nota de cinquenta para PJ, que pegou desconfiado.

— Achei que não usava mais nada.

— E eu achava que tu parou de ficar sendo chato com as coisas que eu faço. — Ri anasalado e ele fez o mesmo, abrindo a gaveta abaixo da anterior e retirando um pacote com a erva prensada.

— Essa é minha pessoal, peguei de um fornecedor melhor. Mas sabe a merda que isso pode dar se te pegarem com isso, né? Tu é branco mas não é intocável.

— Vai te fuder. — Revirei os olhos e me despedi com outro toque de mãos.

Passei pela sala sem me dar ao trabalho de olhar para os outros que trabalhavam.

A casa de PJ ficava aos fundos de um beco estreito que era o ponto da "boca" mais famosa da região. Alguns me reconheceram ao passar por ali de novo e apenas acenei a cabeça, já avistando minha moto na calçada. Tirei meu celular do bolso e haviam várias ligações de Charlie, mas eu já estava indo para casa então não retornei suas chamadas; iria falar com ele pessoalmente em breve.

Liguei o motor e contornei para sair dali.

Mas eu não queria voltar para aquela casa, sabendo que encontraria Charlie de braços cruzados e furioso comigo, além de outros problemas para resolver, como o fato de que na noite anterior eu havia revelado a ele minha confusão sobre meu próprio gênero.

Aquele não era um assunto que eu queria lidar, na verdade nem deveria. Eu precisava ter alguma coisa concreta na minha vida, que eu julgasse 100% como certa, e eu queria que pelo menos o meu gênero fosse assim.

Mas nem isso, porra, nem isso.

Quando o sinal ficou vermelho, coloquei os fones de ouvido por dentro do capacete e liguei o player de música, e uma intitulada Euphoria, novamente do Jungkook, apareceu.

"Cacete, não enche." falei em pensamento para o cantor. Dessa vez, pulei a faixa.

Para o meu bom e eterno Lil Peep, que me inspirou em uma das tatuagens.

Estava com saudade de fazer um desenho novo. Queria algo mais à mostra, pois o tempo sempre frio de Esplendor me forçava a estar agasalhado o tempo todo. Fora a pequena tatuagem de fênix na nuca, o resto era pouco visto.

Charlie nunca comentava sobre elas, coisa que as pessoas gostavam de fazer. Eu me lembro de quando abertamente falei sobre algumas, há muitos anos. Nunca mais havia feito desde então.

Cheguei rápido à rua de Paloma, com a casa que ficava ao fim desta e ficava no cruzamento entre a outra rua, mas tive que parar a moto bruscamente ao paralisar por ver a cena que se desenrolava há um quilômetro de distância de mim.

A porra do carro do meu pai estava estacionado em frente à casa da Paloma.

Dirigi ao contrário e torci para que o som do motor não fosse ouvido. Estacionei a moto atrás de uma caçamba grande de lixo e saí dela com o coração a mil. Tateei o celular ansioso e busquei o contato de Charlie, queria ligar mas tinha medo do toque soar alto e isso piorar a situação, então mandei uma mensagem.

— Tem um carro aí fora, não abre a porta e não faz barulho!

Ele não estava online, torci para que aparecesse logo.

Comecei a caminhar por entre as entradas das casas, devagar para não ser visto. Meu corpo tremia da cabeça aos pés, mas eu não podia me abalar, não naquela hora. Estava preocupado com Charlie.

Por que eu fui tão imbecil de sair de casa?! E ainda sem dar notícias?

Fazendo merda, como sempre.

Andei mais um pouco, cauteloso, até chegar perto o suficiente para me esconder atrás de um carro estacionado e ouvir a porta do veículo do meu pai sendo aberta.

A imagem de Maximiliano me dava náuseas.

Ele estava acompanhado de um colega, ambos usavam casacos grossos de algodão e Max segurava um papel dobrado em mãos. Seus cabelos estavam bem mais brancos desde a última vez que nos vimos e seu rosto estava abatido, mas era inegável que a expressão de ódio continuava.

— Tem certeza de que é aqui mesmo? A gente já veio outra vez. — Max coçou a barba mal feita, que também estava ficando branca.

— Te falei que segui os dois, é aqui. — Seu amigo riu e se apoiou no carro, logo as peças se encaixaram: era ele quem havia flagrado eu e Charlie no supermercado. E como ele tinha meu número novo para ter mandado aquela foto? Eu não entendia mais nada.

Max se aproximou da porta, olhei novamente a mensagem de Charlie e praguejei mentalmente, era certo de que ele atenderia pensando sobre algo sobre mim, deveria estar preocupado, mas eu não podia deixar aquele homem invadir nossa casa e nem tentar algo com o guri.

Antes que Max tivesse tempo de estender a mão para bater na porta, tomei coragem e saí de trás do carro.

— Fala logo o que tu quer! — Gritei sem falhar a voz para mostrar um pouco de autocontrole, e Max arregalou os olhos ao me ver se aproximar na calçada.

— Jason? — Ele enrugou a testa e detestei ver a semelhança em nossos rostos, até nossas reações eram sempre parecidas. — Por que tá aqui fora?

— Por que tá me procurando? — Cruzei os braços e cravei minhas unhas no tecido de couro do casaco. Max me deu um sorriso falso, seu amigo continuava encostado no carro.

— Eu só queria fazer um trato contigo. Posso entrar?

— Não vou fazer trato nenhum! Pode vazar!

— Isso é jeito de tratar teu pai, guri? — O outro homem riu e cruzou seus braços assim como eu.

— Esse merda não é meu pai. — falei entredentes com uma raiva absurda, sem tirar os olhos daquele homem mais alto do que eu.

— Mas "esse merda" pode fuder com tua vida... — Ele se aproximou e meu corpo falhou, dei um passo para trás e me odiei por isso. Max sempre me dava medo. — A não ser que tu arquive a denúncia e a gente volte ao normal.

Ele estendeu a mão para mim e mostrou a folha de papel dobrada ao meio. Tentei controlar o tremor nos dedos ao pegar o papel e me surpreendi ao ver a receita mais recente da minha reposição de testosterona, que ainda era válida.

Max sabia que eu iria querer aquilo de volta.

— Tu pode ficar com isso, com tua vida de volta, eu apago todas as provas que tenho de tu negociando com o teu fornecedor pra vender aquelas merdas na faculdade, não te entrego pra polícia e a gente finge que nada aconteceu.

— Tu é um babaca do caralho... — Sussurrei com os olhos semicerrados e rasguei o papel na sua frente, uma reação que Max não esperava. Amassei os papéis e joguei para ele, que obviamente não foram até seu peito pela distância e sim caíram no chão. — Tu deve tá com medo por que sabe que eu tenho algo pra te fuder também, né?

— Tu não teria coragem. — Ele sorriu para mim, mas vacilou um pouco.

A onda crescente de raiva em mim se tornou exponencial. Ver seus olhos confusos, mesmo que minimamente, me deu um atrevimento absurdo que eu sabia não ter mais volta depois que eu abrisse a boca.

Mas eu não podia evitar de amedrontá-lo, era o meu sonho.

— Sabe que eu tenho, eu tenho coragem e tenho alguém pra fazer isso virar um escândalo. — me lembrei da proposta de Charlie. Pela primeira vez, topei a ideia. — Vai ser lindo ver tanta gente revoltada quando ver um pai fodendo com a vida de um filho por transfobia. — falei a última palavra pausadamente e o rosto do meu pai se contorceu de desgosto.

— Cala essa boca. — Eu sabia que só de ouvir a palavra "trans" Max se irritava a níveis extremos. — Tu não vai expor nossa família. E mesmo se tentar, acha mesmo que alguém nessa cidade se importar de ti ser... Isso? — Ele sequer conseguia pronunciar a palavra.

— Aqui, não. Mas eu sei que muita gente no país todo vai se importar. — Max cerrou os olhos, mais confuso e ainda mais irritado. — Não esquece de quem tá do meu lado. Quem tá do teu? 

E como uma grande coincidência — ou não, pois ele deveria ter ouvido toda a conversa e sabia sobre o que eu estava falando — Charlie abriu a porta rapidamente, com o celular em mãos, sendo possível ver a câmera da sua rede social na tela.

— Vai embora ou eu vou começar a te filmar. — A voz de Charlie saiu tremida, mas isso não abalou o olhar que ele sustentava para meu pai. Max o encarou e depois voltou para mim, insatisfeito.

Porém não disse nada. Eu sabia que a sua maior fraqueza era a exposição, era a nossa arma contra ele.

Seu amigo abriu a porta do motorista e Max deu a volta no carro para se sentar no passageiro. Me lançou um último olhar, fervendo de ódio, e então entrou no carro.

Só notei o quanto eu estava ofegante quando o carro se afastou de vez e virou a rua.

Consegui tirar forças para locomover minhas pernas para dentro, Charlie me deu passagem para entrar. Assim que ele trancou a porta, me virei para ele ainda assustado.

E um segundo antes de falar qualquer coisa, senti um tapa me acertando em cheio no rosto, tão repentino que gritei mais de susto do que dor.

— CHARLIE?!

— VOCÊ QUER ME MATAR DE PREOCUPAÇÃO!!! — Ele me empurrou com as duas mãos para me afastar, ainda estava de pijama moletom e seus cabelos estavam um caos. — TU NÃO TEM NOÇÃO NENHUMA DAS COISAS!!!

— M-me desculpa, eu...

— EU NÃO QUERO DESCULPA! EU QUERO VOCÊ TRANCADO NO SEU QUARTO! TEM UM VÍRUS LÁ FORA, PORRA!

Minha boca se abriu incrédulo, quando me dei conta do risco que corri. Cometi um erro duas vezes: me expus e entrei dentro de casa, expondo Charlie também, quem não tinha nada a ver com isso.

E eu não podia nem tentar pedir desculpas com um abraço, porque o certo era manter distância. Eu sequer estava de máscara com meu pai, foi outro momento de uma possível contaminação.

Nunca me senti tão burro na vida.

Abaixei a cabeça, envergonhado, e caminhei rápido até o quarto. Charlie soluçava por um choro contido, mas não olhou para mim.

Mais uma vez, eu havia feito merda.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top